Pelos becos da memória jurídica: as escrevivências de Eunice Prudente e Dora Bertulio nas relações entre o campo científico e a formação do quilombo jurídico direito e relações raciais

Abstract

Embora se possa cogitar da mobilização institucional do Direito e da subversão de sua (onto)lógica moderno-colonial para fins emancipatórios, por pessoas negras, no Brasil, pelo menos desde Esperança Garcia, em 1770, e Luiz Gama, em 1869, é com as pesquisas desenvolvidas por Eunice Aparecida de Jesus Prudente (1980) e por Dora Lucia de Lima Bertulio (1989) que é possível identificar no país a formulação precursora de uma crítica racializada e sistematizada ao pensamento jurídico tradicional. Deslocando para o centro do debate jurídico a problemática do racismo na sociedade brasileira, mediante o combate à neutralidade racial do Direito e à meritocracia, o conhecimento produzido por essas juristas influenciou gerações e possibilitou que, atualmente, haja uma profusão de pesquisas que questionam e aprofundam as análises a respeito da instrumentalização do Direito e do Sistema de Justiça para sustentação da ordem racial vigente. Com a fundação do campo teórico-prático denominado Direito e Relações Raciais, Eunice Prudente e Dora Bertulio contribuíram de modo ovular para o desenvolvimento, sistematização e organização acadêmica do pensamento jurídico afrodiaspórico brasileiro, dando ensejo à formação de uma contracultura jurídica nacional. Por intermédio da desestabilização da cultura jurídica tradicional, criou-se um quilombo jurídico comprometido com a práxis emancipatória. Portanto, a categoria quilombo é mobilizada para classificar esse movimento porque, a partir de Abdias Nascimento, Clóvis Moura e Beatriz Nascimento, é possível pensar os quilombos para além da experiência histórica em que se consubstanciaram, para percebê-los também enquanto tecnologia político-social. Nesse sentido, a pesquisa pretende sistematizar as formas de atuação e as contribuições dessas intelectuais para a fundação e sedimentação do movimento teórico-prático Direito e Relações Raciais, responsável pela inclusão do debate racial no âmbito das ciências jurídicas. Para tanto, utiliza-se, metodologicamente, das funções da teoria crítica dos direitos humanos, proposta por Herrera Flores (2009), para o qual a função epistemológica buscaria visibilizar as relações sociais e as desigualdades existentes; a função ética visaria desestabilizar o status quo injusto e opressor; e a função política, transformar a realidade. Assim, em uma postura acadêmica que milita contra o genocídio epistêmico, pretende-se, mediante revisão bibliográfica e entrevistas abertas de história de vida, visibilizar a situação das mulheres negras na sociedade brasileira e os meandros da academia jurídica; demonstrar o quanto a atuação, as produções e o legado dessas intelectuais negras desestabilizaram o pensamento jurídico brasileiro hegemônico; e analisar quais foram as transformações promovidas pelo campo teórico-prático por elas fundado, na academia jurídica e na prática do Sistema de Justiça.

Abstract: it is possible to consider the institutional mobilization of Law and the subversion of its modern-colonial (onto)logy for emancipatory purposes, by black people, in Brazil, at least since Esperança Garcia (1770) and Luiz Gama (1869), it is only with the research carried out by Eunice Aparecida de Jesus Prudente (1980) and by Dora Lucia de Lima Bertulio (1989) that it is feasible to identify in the country the precursory conception of a racialized and systematized criticism of traditional legal thought. By shifting the discussion of racism in Brazilian society to the center of the legal debate, through the fight against the racial neutrality of law and meritocracy, the knowledge produced by these jurists influenced generations and allowed the current existance of an abundance of research that debates and examines the analyzes regarding the instrumentalization of Law and the justice system to support the current racial order. Along the foundation of the theoretical-practical field called Law and Race Relations, Eunice Prudente and Dora Bertulio contributed in an essential way to the development, systematization, and academic organization of Brazilian Afro-diasporic legal thought, opening opportunities to the formation of a national legal counterculture. Through the destabilization of the traditional legal culture, a legal quilombo community committed to emancipatory actions was created. Since, the quilombo category is stimulated to classify this movement because, from Abdias Nascimento?s, Clóvis Moura?s, and Beatriz Nascimento?s points of views, it is possible to think of the quilombo communities beyond the historical experience in which they embodied and also perceive them as political-social technology. In this context, this research aims to organize the ways of acting and the contributions of these intellectual researchers for the foundation and sedimentation of the theoretical-practical movement of Law and Racial Relations, responsible for the inclusion of the racial debate in the scope of the legal sciences. For that, methodologically, the functions of the critical theory of human rights, proposed by Herrera Flores (2009), are used, for which the epistemological function would seek to make visible the existing social relations and inequalities; the ethical function would aim to destabilize the unfair and oppressive status quo; and the political function to transform the reality. Thus, in an academic stance that fights against epistemic genocide, this study is intended to make visible the situation of black women in Brazilian society and the specificities of the legal academy through a bibliographical review and open-ended interviews about their life history; to demonstrate how much the performance, productions, and legacy of these black intellectual researchers destabilized the hegemonic Brazilian legal thought; and to analyze what were the transformations promoted by the theoretical-practical field founded by them, in the legal academy and in the practice of the justice system.