Corpo, política e lazer: a exemplo do processo de redemocratização no Uruguai (1985-1990)

Abstract

Introdução: Se a partir dos séculos XVII e XVIII o poder sobre a vida se organizou em direção às disciplinas do corpo e das formas de regulação da população, podemos dizer que na modernidade o corpo se apresenta como objeto e lugar de poder, de maneira que se pode afirmar que sua delimitação como produto da sociedade, da história e da cultura estaria fortemente vinculada às condições econômicas e políticas. Busca-se que os corpos sejam dóceis e, para alcançar tal intento, a disciplina aparece em primeiro plano, já que aumenta "[...] las fuerzas del cuerpo en términos económicos de utilidad y disminuye esas mismas fuerzas en términos políticos de obediencia (FOUCAULT, 1975, p. 127). Estas operações sobre o corpo se estabeleceram, em grande medida, pelos dispositivos educativos, de forma que, segundo Rodríguez Giménez, nas construções curriculares do século XX o lugar desde o qual o corpo foi ensinado [...] ha reducido explícita e implícitamente el cuerpo a su dimensión imaginaria, a partir de una preocupación centrada fuertemente en el intento performativo del discurso biomédico y su despliegue higienista (RODRÍGUEZ, 2008, p. 153). Concordamos com a ideia segundo a qual [...] la experiencia del cuerpo ha sido secuestrada por un proceso de racionalización (FOLGAR; RODRÍGUEZ, 2001, p. 105). Corresponde ao processo a partir do que as ciências biomédicas, com metáforas da maquinaria fisiológica e anatômica, se ocupam de cada tempo e espaço do corpo e da vida. Estes discursos que se tornam hegemônicos em princípios do século XX na forma do higienismo, principalmente constituem a matriz epistêmica sobre a qual se funda a educação física no Uruguai, institucionalidade e identidade disciplinar na que é possível pensar uma gênese da recreação naquele país. Se é muito difícil delimitar as formas que o lazer encontra para sua realização, uma vez que apresenta diferentes enfoques conceituais e suas propostas práticas têm as mais variadas formas (CNEF, 1988, p. 5), é possível dizer que em sua origem se encontra fortemente vinculado ao desenvolvimento das sociedades modernas e à seu crescente industrialização.Sobretudo no caso uruguaio, é interessante o desenvolvimento do lazer na segunda metade do século XX, caracterizado pela irrupção de novos enfoques além dos marcadamente higienistas de princípio do mesmo século característicos do impulso modernizador o que não implicou na substituição, mas na ampliação do leque de ofertas e alternativas para a ocupação do tempo livre, coexistindo e sustentadas por diferentes instituições, fundamentadas nas mais diversas visões sobre o lugar que ocupam as práticas recreativas na vida do indivíduo e nos processos de subjetivação. Objetivos: A investigação centra-se na análise de discursos sobre recreação presentes nas políticas em Educação Física desenvolvidas pelo Estado uruguaio no período entre 1985 e 1990. Procura-se observa-las como políticas do corpo em sua relação com as modernas estratégias de governo. Para tanto, a pesquisa se ocupa, principalmente, dos Programas Curriculares da Comisión Nacional de Educación Física no supracitado período, tentando identificar quais seriam os elementos que dão forma à recreación e qual é seu conteúdo, tanto no plano conceptual, como naquele das práticas que propõem. Neste sentido, se apresentam como objetivos pesquisar sobre os discursos formulados sobre recreação a nível das políticas em Educação Física no referido período, partindo da identificação de elementos que caracterizarem o discurso sobre recreação em ditas políticas enquanto fenômeno específico, tendo como centralidade a indagação a respeito da matriz discursiva sobre a que se fundamenta nesse recorte um discurso acerca da recreação ou o recreativo. Metodologia: Em plano metodológico, este trabalho toma alguns elementos da perspectiva arqueológica de Foucault. A partir daí, faz-se a indagação acerca da formação discursiva sobre a recreação nos marcos das políticas em Educação Física, tentando aportar elementos empíricos e conceituais que permitam identificar continuidades e rupturas nos discursos da CNEF - sempre visualizando a possibilidade de outras arqueologias, o qual também em certo nível não nos mantém fiéis à perspectiva foucaultiana mais clássica. Tal operação tem a possibilidade de descrever uma rede de relações entre os elementos antes descritos, que configuram a historicidade comprovável do objeto e, em certa medida, os elementos centrais que constituem o discurso sobre a recreação no recorte empírico realizado. Consideramos importante focar nas implicações de certa evocação à ludicidade em relação às propostas de educação do corpo em um tempo determinado, como sugere o novo modelo de Educação Física que se tenta estabelecer a partir dos programas da CNEF de 1988. Uma das possibilidades de análise foi a identificação de diferentes tipos de enunciados sobre a recreação e o recreativo nos documentos que materializam tais políticas, como também alguns elementos que cobram centralidade na análise delas, a saber: o corpo, o tempo e o lúdico. Tomar os discursos na sua positividade é o recorte arbitrário que realizamos da perspectiva arqueológica, para nos introduzir em outras formas de arqueologia, uma arqueologia do corpo e de como este é considerado por formas de governo onde a noção de repressão se apresenta insuficiente para analisar os mecanismos de poder em termos positivos que atuam sobre o corpo e o produzem, mecanismo no qual a noção do recreativo toma espaço e sentido. A arqueologia, enquanto [...] pone de manifiesto unas relaciones determinadas entre las formaciones discursivas y unos dominios no discursivo (FOUCAULT, 2013, p. 211), é uma possibilidade para pensar o lugar que ocupa a recreação a nível estatal, mais especificamente nas políticas em Educação Física. Resultados e Discussão: A investigação parte da análise de documentos oficiais, procurando identificar práticas vinculadas ao tempo livre dos indivíduos e descrever quais as formas que tomam as estratégias de exercício de biopoder. Tais estratégias se deixam visibilizar a partir da relação entre o corpo e o lúdico em sua relação com o tempo, constituindo os conceitos articuladores que confrontamos com o material empírico. A pergunta pelas condições de possibilidade para que o discurso sobre recreação comece a ocupar um lugar nas políticas em Educação Física não é outra senão aquela sobre as formas em que a política moderna se ocupa do corpo e, particularmente, a educação física, no marco das estratégias modernas de governo, onde no cruzamento das categorias corpo, lúdico e tempo, encontramos a possibilidade de refletir sobre o espírito dessas formas que tomam as políticas do corpo. Os programas analisados foram elaborados a partir de um seminário sobre desenho curricular realizado no ano de 1986. Estes programas representam uma nova visão para a Educação Física que esperava ocupar a cidade com diferentes atividades recreativas e esportivas que abrangeram a totalidade da população (SERÉ, 2014, p. 64). Nessa nova visão , dois elementos aparecem em um lugar central, o novo rol do professor de educação física e um novo modelo de educação física . O atrativo das propostas em relação à visão anterior que fundamentava e orientava as atividades levadas a cabo pela CNEF, estaria na mudança que iria da ginástica ao esporte, e deste à recreação, onde consideramos que ganha lugar a significação que se dá ao componente lúdico das propostas desenvolvidas. Entre estes, encontra-se o Programa de Recreação , que se pode dizer que a nível estatal é o principal documento elaborado na época em matéria de recreação. Por sua vez, também encontramos as memórias da CNEF da gestão correspondente ao período 1985 1990. Elas contêm um anteprojeto de lei sobre Educação Física, esportes e recreação. É em relação a esses documentos e ao primeiro período de governo pós-ditadura que optamos por este recorte temporal, mesmo conscientes de um certo grau de arbitrariedade presente em tal eleição. Considerações Finais: A partir das análises dos documentos consultados, foi possível identificar e descrever práticas vinculadas ao tempo livre dos indivíduos que, a nível propositivo, poderíamos dizer da população = que tomaram forma e sentido nas estratégias de exercício do biopoder, solidárias ao espírito de uma época, caracterizado por um Estado comprometido com o reestabelecimento da democracia. Em consequência, reconhecemos, para o caso uruguaio, a constituição de uma corrente da educação física que, ao mesmo tempo em que explicita sua qualidade lúdica por meio de sua característica recreativa, instaura uma separação com o que se começa a constituir como campo da recreação no Uruguai. É facilmente visualizável uma apropriação por parte da CNEF das diferentes tematizações e abordagens tanto conceituais como práticas presentes nos principais enfoques sobre recreação que se desenvolveram no Uruguai durante o século XX. A recreação enquanto conteúdo específico e o recreativo aparecem como qualidades e abordagens que deveriam apresentar algumas práticas historicamente vinculadas ao campo da Educação Física neste caso, ressaltamos as danças, os esportes e a ginástica. Isto se constitui nas evidências que permitiram identificar elementos para realizar uma análise conceitual. Se em um primeiro nível nos documentos apareciam noções como corpo, lúdico e tempo livre, como um motor de análise, em um segundo nível e mais especificamente sobre o conceito de recreação, são as noções de tempo livre, livre eleição e busca do prazer as que vão aparecer como elementos constantes nas diferentes abordagens sobre a temática. Assim, a recreação vai se apresentar como uma busca de emoções que se diferenciem da vida cotidiana por meio de espaços que constituem uma estratégia socialmente estabelecida e aprovada, que apresenta a possibilidade de expressão das emoções, em uma sorte de mimetizações da vida ordinária. Enquanto prática fundamenta-se e cobra sentido como ferramenta, estratégia, meio ou metodologia, sempre com referência ao uso. Apresenta-se como uma preocupação com os usos do tempo livre e do corpo ou, mais especificamente, o uso do corpo em seu sentido mais amplo no tempo livre. Cabe ressaltar que os fundamentos da recreação tomam elementos tanto dos discursos higienistas do final do século XIX quanto da sociologia, reproduzindo e dando transcendência a estes, onde, talvez na atualização dos discursos sobre recreação, também é possível identificar uma atualização do discurso higienista. Em sua preocupação em promover o desenvolvimento tanto físico quanto humano, deixa visualizar sua inquietude tanto com o indivíduo como com a sociedade. Os programas da CNEF são, então, um território que permite identificar certa heterogeneidade e indefinição em relação ao discurso sobre a recreação. Compensação e complementaridade em relação à esfera do tempo social que representa o sério se traduz em preocupação com um uso apropriado do tempo livre, onde sua característica mais própria aparece constituída pelo seu caráter lúdico, articulado com preocupações a nível de desenvolvimento humano e a democratização da cultura, onde a natureza como sujeito e uma visão de sujeito como unidade bio-psico-social aparecem em um lugar de relevância. Nesta indeterminação é que a CNEF realiza uma síntese conciliatória que integra as diferentes abordagens sobre a recreação.

Abstract : This study intends to deepen the understanding about the ways in which the education of the body s materializes in contemporary politics, specifically when the bodily practices are the object of educational and cultural policies. These policies are presented as dispositifs in which the disciplines of the body and the regulation of populations are articulated, as forms in which the exercise of power over life is materialized in government strategies. Body and life as objects of political intervention in the return to democracy and in the establishment of a neoliberal system (1985-1990) in Uruguay is a reality that demands to be analyzed. In this sense, we propose to investigate the relationship between Physical Education policies and body education in Uruguay, inquiring about the playful component of these policies, as a correlate of modern government strategies - in which the forms of power will find less harsh ways of exercise on the body and more attractive ways of exercise over the population, when is no longer the norm that define the normal, but is the normal that act according to the norm. If it s in the presence of notions like recreation where the playful component of the Physical Education policies is materialized, then, it s in the forms that the recreation takes that enable us to identify a discourse concerned not only about the playful quality of these policies, but that has also a strong concern about the rational use of free time - of individuals and of the population. Thus, in this form of the modern politics are configured, we understand that the approach of the body carried out particularly at the level of policies in Physical Education can be comprehended in the crossing of three categories: the body, the playful and time.