Mapeamento socio etnobotânico, análise do perfil químico e avaliação da atividade antimicrobiana da macela (Achyrocline satureioides) do Sul do Brasil

Abstract

A espécie vegetal Achyrocline satureioides, conhecida como macela ou marcela, é uma planta medicinal sul-americana tradicionalmente utilizada para tratar distúrbios do sistema gastrointestinal, além do uso em banhos, cosméticos e artesanalmente na confecção de travesseiros aromáticos. As atividades biológicas da planta incluem ação hepatoprotetora, sedativa, anti-inflamatória, antioxidante, antitumoral, antiviral e antimicrobiana. Estas propriedades despertam crescente interesse comercial e científico na macela para as mais diversas aplicações ? cosmética, alimentícia e fitoterápica. Como alternativa aos agentes químicos e antibióticos, na agricultura e pecuária, tem sido investigada para desenvolvimento de novos agentes terapêuticos. Para a mastite bovina, um hidrogel à base de macela com ação antimicrobiana foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa do Laboratório de Bioquímica e Produtos Naturais da Universidade Federal de Santa Catarina, para o qual tem-se o pedido de registro de patente junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Diante desta e outras inovações, da consequente demanda de matéria-prima e possível pressão ecológica sobre a espécie, de uma perspectiva agroecológica, o presente estudo teve como objetivos coletar dados etnobotânicos; mapear locais de coleta e/ou cultivo de A. satureioides, os atores e a organização social envolvida neste processo; bem como caracterizar o perfil químico da macela de diferentes origens geográficas do sul do Brasil e correlacioná-lo com a atividade antibacteriana contra Staphylococcus aureus, agente etiológico da mastite bovina. A primeira etapa da pesquisa, realizada no período de março a junho de 2023, envolveu a coleta/recebimento de amostras e entrevista aos produtores/coletores/comerciantes de macela dos três estados da região sul do Brasil. A segunda etapa, experimental, consistiu no preparo dos extratos brutos das amostras, que foram analisados quanto aos teores totais de compostos polifenólicos (TPO) e flavonoides (TFL) através de métodos colorimétricos, bem como realizada identificação e quantificação dos marcadores químicos da espécie, i.e., quercetina (QCT), luteolina (LUT), 3-orto- metil-quercetina (3OMQ) e achyrobichalcona (ACB) por cromatografia líquida de alta eficiência. A atividade antibacteriana das amostras foi verificada frente a S. aureus (ATCC 25923) por meio do ensaio de microdiluição em caldo e determinação da concentração inibitória mínima (CIM). Na etapa de mapeamento, participaram das entrevistas (n= 31) produtores orgânicos (80,6%), lideranças dos povos indígenas Kaingang (6,4%), pessoas assentadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ? MST (6,4%), produtora não orgânica (3,2%) e feirante não produtor (3,2%). Todos os entrevistados relataram coletar a planta que nasce espontaneamente (extrativismo) e 25,8% também realiza plantio (semeadura e colheita). Nos três estados, houve referência à tradição da colheita na Sexta-Feira Santa e esteve presente na maioria das falas (54,8%). Embora ainda seja encontrada e coletada em abundância em algumas localidades, foi relatada dificuldade em encontrar a marcela e menor disponibilidade da planta na safra de 2023. A quantidade coletada variou de 0,2 Kg a 60 Kg. A maioria (61,3%) dos entrevistados informou comercializar a erva fresca ou flores secas em feiras livres, feiras de produtos orgânicos, casas de produtos naturais, ou ainda venda direta a clientes e visitantes, na forma de pacotes de 5 g a 50 g ou em arranjos (molho, maço, buquês, feixes). O valor de venda informado chegou a variar de R$68,00 a R$1.000,00 por Kg de flores secas. As ?flores? (inflorescências) foram citadas como a parte mais usada da planta em todas as entrevistas, sendo predominantemente utilizadas na forma de ?chá? (infusão ou decocção em água), principalmente para problemas digestivos. Na etapa analítica, o conteúdo de TPO variou de 203,6 (± 19,8) a 362,7 (± 20,2) mg/g de amostra seca e o teor de TFL variou de 75,6 (± 6,2) a 198,5 (± 15,5) mg/g de amostra seca coletada dos municípios Florianópolis (SC) e Mandirituba (PR), respectivamente, para ambas as classes de compostos. Em relação aos marcadores químicos, as concentrações (mg/g) de QCT variaram de 10,4 (± 8,1) a 30,3 (± 7,7), LUT ? 9,3 (± 8,3) a 28,5 (± 10,0), 3OMQ ? 8,8 (± 8,7) a 38,6 (± 9,1) e ACB ? 5,6 (± 3,6) a 20,5 (± 4,8). A CIM variou de 7,81 a 31,62 µg/mL, com pouca variabilidade entre as amostras, i.e., 70% das amostras apresentou CIM de 15 µg/mL. Por meio da análise de agrupamento hierárquico e de correlação de Pearson foi possível identificar três grandes grupos de amostras em função da altitude (2 a 160 m; 465 a 660 m; 790 a 990 m) e metabólitos secundários ? correlação (p < 0,05) entre altitude e TFL, bem como para QCT e LUT (p = 0,05 em ambas); os compostos 3OMQ e ACB, por sua vez, apresentaram correlação (p < 0,05) com o clima (Cfa e Cfb predominantes). A análise multivariada dos dados e de correlação mostrou que, dentre os compostos analisados, TFL mostrou influenciar a atividade antibacteriana (p < 0,05). Por outro lado, não foi encontrada correlação significativa da atividade antibacteriana com o TPO ou com os conteúdos dos metabólitos isoladamente (p > 0,05), sugerindo haver para a atividade antimicrobiana do extrato, efeito sinérgico entre os metabólitos secundários contra S aureus. Estes resultados demonstraram a constância da atividade farmacológica de interesse em amostras de origem geográfica distintas, mesmo sob processo de extração manual. Apontaram ainda a possibilidade de simplificação do controle de qualidade do extrato padronizado, uma vez que dispensa a separação e identificação de metabólitos, reduzindo tempo e custo. Com este trabalho, foi possível mapear grupos de coletores e produtores como potenciais fornecedores de macela da região sul do país, sendo o extrativismo a principal forma de obtenção desta planta. A baixa variabilidade da atividade antibacteriana contra S. aureus observada entre amostras sugere a possibilidade de obtenção de um extrato padronizado de macela oriunda do extrativismo de diferentes localidades do sul do Brasil.

Abstract: he plant species Achyrocline satureioides, commonly known as macela or marcela, is a South American medicinal herb traditionally used to treat gastrointestinal disorders. It is also employed in baths, cosmetics, and artisanally in the making of aromatic pillows. Its biological activities include hepatoprotective, sedative, anti- inflammatory, antioxidant, antitumor, antiviral, and antimicrobial effects. These properties have sparked growing commercial and scientific interest in macela for various applications?cosmetic, food, and phytotherapeutic. As an alternative to chemical agents and antibiotics in agriculture and livestock, it has been investigated for the development of new therapeutic agents. For bovine mastitis, an antimicrobial macela-based hydrogel was developed by the research group of the Laboratory of Biochemistry and Natural Products at the Federal University of Santa Catarina, for which a patent application has been filed with the National Institute of Industrial Property. In light of this and other innovations, the resulting demand for raw material and potential ecological pressure on the species, this study ? guided by an agroecological perspective ? aimed to map collection and/or cultivation sites of A. satureioides, gather ethnobotanical data, identify the actors and social organization involved in the process, and characterize the chemical profile of macela from different geographic origins in southern Brazil, correlating it with antibacterial activity against Staphylococcus aureus, the etiological agent of bovine mastitis. The first phase of the research, conducted from March to June 2023, involved sample collection/receipt and interviews with macela producers/collectors/vendors from the three southern Brazilian states. The second, experimental phase consisted of preparing crude extracts from the samples, which were analyzed for total polyphenolic compounds (TPC) and flavonoids (TFL) using colorimetric methods. Chemical markers of the species ? quercetin (QCT), luteolin (LUT), 3-O-methyl- quercetin (3OMQ), and achyrobichalcone (ACB) ? were identified and quantified via high-performance liquid chromatography. Antibacterial activity against S. aureus (ATCC 25923) was assessed using broth microdilution and determination of the minimum inhibitory concentration (MIC). In the mapping phase, 31 individuals were interviewed: organic producers (80.6%), Kaingang Indigenous leaders (6.4%), members of the Landless Workers' Movement (MST) (6.4%), a non-organic producer (3.2%), and a non-producer vendor (3.2%). All reported harvesting the spontaneously growing plant (wild collection), and 25.8% also practiced cultivation (sowing and harvesting). In all three states, there was reference to the tradition of harvesting on Good Friday, mentioned in most interviews (54.8%). Although still found and collected abundantly in some areas, difficulties in locating macela and reduced availability during the 2023 harvest were reported. Collected quantities ranged from 0.2 kg to 60 kg. The majority (61.3%) of respondents reported selling fresh herbs or dried flowers at street markets, organic fairs, natural product stores, or directly to customers and visitors, in packages ranging from 5 g to 50 g or as arrangements (bundles, bouquets, bunches). Sale prices varied from R$68.00 to R$1,000.00 per kg of dried flowers. The inflorescences were cited as the most used part of the plant in all interviews, predominantly prepared as infusion or decoction in water, mainly for digestive issues. In the analytical phase, TPC content ranged from 203.6 (± 19.8) to 362.7 (± 20.2) mg/g of dry sample, and TFL content ranged from 75.6 (± 6.2) to 198.5 (± 15.5) mg/g of dry sample collected from Florianópolis (SC) and Mandirituba (PR), respectively. Regarding chemical markers, concentrations (mg/g) of QCT ranged from 10.4 (± 8.1) to 30.3 (± 7.7), LUT from 9.3 (± 8.3) to 28.5 (± 10.0), 3OMQ from 8.8 (± 8.7) to 38.6 (± 9.1), and ACB from 5.6 (± 3.6) to 20.5 (± 4.8). MIC values ranged from 7.81 to 31.62 µg/mL, with little variability among samples ? 70% showed MIC of 15 µg/mL. Hierarchical clustering and Pearson correlation analysis identified three major sample groups based on altitude (2 ? 160 m; 465 ? 660 m; 790 ? 990 m) and secondary metabolites ? correlation (p < 0.05) between altitude and TFL, as well as QCT and LUT (p = 0.05 for both); 3OMQ and ACB showed correlation (p < 0.05) with climate (predominantly Cfa and Cfb). Multivariate and correlation analysis revealed that among the compounds analyzed, TFL influenced antibacterial activity (p < 0.05). On the other hand, no significant correlation was found between antibacterial activity and TPC or individual metabolite contents (p > 0.05), suggesting a synergistic effect among secondary metabolites in the extract against S. aureus. These results demonstrate consistent pharmacological activity of interest across samples from different geographic origins, even with manual extraction processes. They also suggest the possibility of simplifying quality control of the standardized extract, eliminating the need for metabolite separation and identification, thus reducing time and cost. This study successfully mapped collector and producer groups as potential suppliers of macela in southern Brazil, with wild collection being the main method of obtaining the plant. The low variability in antibacterial activity against S. aureus among samples suggests the feasibility of obtaining a standardized macela extract from wild collection across different locations in southern Brazil.