A construção da vítima no contexto da judicialização da "Violência contra a Mulher": uma etnografia no sistema judiciário em Santa Catarina

Abstract

A presente tese de doutorado propõe uma antropologia crítica da vitimização. Consiste em uma etnografia de audiências judiciais relacionadas a casos abrangidos pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e pela Lei de Feminicídio (Lei 13.104/15) realizadas em um fórum no estado de Santa Catarina no ano de 2019. A pesquisa desenvolvida teve como objetivo refletir sobre a produção, constituição e disputas em torno do ?sujeito vítima? no contexto da judicialização da ?violência doméstica contra as mulheres? no âmbito judicial brasileiro. Para isso, investigaram-se os significados que permeiam o ato de se tornar (ou não) vítima nesse cenário, analisando-se como esses significados são construídos e reivindicados por meio de diferentes estratégias e discursos, de acordo com quem ocupa posições centrais de fala ou protagonismo durante as audiências que compõem um processo judicial. A partir da pesquisa, foi possível identificar três discursos principais através dos quais os réus e aqueles que os defendem disputam de maneira preponderante o lugar de vítima: o consumo de substâncias; questões ligadas à saúde mental do réu; e, por último, situações em que, com base em convenções de gênero e códigos de honra, a vítima aparece como alvo de críticas. Esses elementos revelam que ?ser vítima? não é um atributo fixo, mas uma construção processual e dinâmica, intrinsecamente ligada a valores sociais, convenções de gênero, normas culturais e demandas jurídicas. A partir do descrito, argumenta-se que tal construção ocorre no próprio contexto judicial, sendo atravessada por disputas e negociações que tornam evidente a complexidade desse processo. Por último, esta pesquisa está ancorada numa epistemologia feminista, que contempla três questões essenciais: a ideia de ?saberes localizados?; o exercício da reflexividade; e a importância de se trabalharem as emoções e o modo como elas circulam nos espaços em que realizamos nossa observação participante. Esses três eixos permitiram desenvolver um trabalho desde as coordenadas que me contemplam, considerando que toda pesquisa atravessa escolhas e implicações teóricas, epistemológicas, éticas e políticas.

Abstract: This doctoral thesis proposes a critical anthropology of victimization. It consists of an ethnographic study of judicial hearings related to cases covered by the Maria da Penha Law (Law 11.340/06) and the Femicide Law (Law 13.104/15), conducted in a courthouse in the state of Santa Catarina in 2019. The research aimed to reflect on the production, constitution, and disputes surrounding the \"victim subject\" within the context of the judicialization of \"domestic violence against women\" in the Brazilian judicial system. To this end, the study explored the meanings attributed to becoming (or not becoming) a victim in this scenario, analyzing how these meanings are constructed and claimed through different strategies and discourses, depending on who occupies central speaking roles or protagonism during the hearings that constitute a judicial process. The research identified three main narratives through which defendants and their advocates predominantly dispute the position of victim: substance use, issues related to the defendant's mental health, and, lastly, situations in which, based on gender conventions and honor codes, the victim becomes a target of criticism. These elements reveal that \"being a victim\" is not a fixed attribute but a dynamic and procedural construction, intrinsically linked to social values, gender conventions, cultural norms, and legal demands. This construction occurs within the judicial context itself, shaped by disputes and negotiations that highlight the complexity of this process. Finally, this research is anchored in a feminist epistemology, addressing three essential aspects: the idea of \"situated knowledge,\" the practice of reflexivity, and the importance of engaging with emotions and how they circulate in the spaces where participant observation is conducted. These three axes enabled the development of this work from the coordinates that encompass my position, acknowledging that every research endeavor involves theoretical, epistemological, ethical, and political choices and implications.