Lavra de autor: o dispositivo literário e suas profanações

Abstract

O presente trabalho pretendeu rastrear e discutir os efeitos do gesto de Raduan Nassar, escritor brasileiro que interrompe o fazer literário ainda no auge do reconhecimento de sua obra, recusando muitas das expectativas, protocolos e prescrições que vieram a se estabelecer em torno da autoria e da celebridade no universo das letras. Tal gesto provocou curiosidade entre os intelectuais, diagnósticos os mais diversos sobre a natureza desse ato, e releituras críticas das obras, por vezes combinados a certas doses de escrutínio e de constrangimento midiáticos. Aqui esses efeitos foram lidos e contextualizados à luz dos mecanismos da autoria e da transgressão, elucidados pelas pesquisas de Michel Foucault, do conceito de profanação conforme resgatado por Giorgio Agamben na Antiguidade Romana, e das noções em torno dos dispositivos, trabalhadas tanto por esses autores como por Gilles Deleuze. Aquilo que emerge das análises realizadas são cenários politicamente complexos. Ainda que, ao interromper suas criações literárias, Raduan efetivamente deixe de ser um escritor, ele não desaparece enquanto autor, pois a função discursiva associada a seu nome segue operante. De fato, essa função passa a ser reforçada, quando sua postura de recusa desperta ainda maior interesse e visibilidade, tanto sobre o nome como sobre a obra. Mas a derradeira profanação empreendida por Raduan seria outra, pelo menos no sentido agambiano. Ele não apenas abandona a produção de literatura, mas passa a se dedicar exclusivamente à produção rural, ocasionalmente ocupando, em entrevistas e declarações oferecidas através dos anos, o papel de orador herético, tecendo críticas e ironias às instituições e convenções literárias, e fazendo-o frequentemente recorrendo a figuras de linguagem simples, que aludem à vida no campo. Essas intervenções sugerem a restituição ao uso comum de algo que geralmente permanece apartado da experiência da maioria das pessoas, culturalmente sendo reservado e consagrado a poucos: a criação literária.

Abstract: The present work intended to track and discuss the effects of the gesture of Raduan Nassar, a Brazilian writer who interrupted his literary work while still at the height of recognition, refusing many of the expectations, protocols and prescriptions that came to be established around authorship and celebrity in the universe of letters. This gesture provoked curiosity among intellectuals, the most diverse diagnoses about the nature of the act, and critical reinterpretations of the works, sometimes combined with certain doses of media scrutiny and embarrassment. Here these effects were read and contextualized in light of the mechanisms of authorship and transgression, elucidated by Michel Foucault's research, the concept of profanation as rescued by Giorgio Agamben in Roman Antiquity, and the notions surrounding the devices, worked on by both these authors as by Gilles Deleuze. What emerges from the study carried out are politically complex scenarios. Even though, by interrupting his literary creations, Raduan effectively stops being a writer, he does not disappear as an author, as the discursive function associated with his name continues to operate. In fact, this function becomes reinforced when his refusal stance arouses even greater interest and visibility, both in the name as in the work. But the ultimate desecration undertaken by Raduan would be other, at least in the Agambian sense. He not only abandoned the production of literature, but began to dedicate himself exclusively to rural production, occasionally occupying, in interviews and statements offered over the years, the role of heretical speaker, criticizing and ironizing literary institutions and conventions, doing so often using simple figures of speech, which allude to life in the countryside. These interventions suggest the return to common use of something that generally remains apart from the experience of most people, culturally being reserved and consecrated to a few: literary creation.