"A culpa foi dela": problematizações sobre a rede enunciativa que confere inteligibilidade ao feminicídio

Abstract

O tema do feminicídio, assim com o da violência contra as mulheres, tem se mostrado um importante campo de pesquisa em todo o mundo. No campo acadêmico, os estudos feministas têm tentado apontar a estrutura social que ao longo da história naturalizou o assassinato feminino. Seguindo essa linha teórica, nesta pesquisa, busquei problematizar a rede enunciativa que tornou o feminicídio um ato legítimo para homens condenados pelo crime. O estudo foi conduzido a partir do discurso desses homens, e desenvolvido à luz das teorias de gênero e masculinidades. Participaram três homens condenados por feminicídio ou tentativa de feminicídio. Foram realizadas entrevistas na penitenciária em que os participantes se encontravam presos, bem como a análise do processo judicial de cada um deles. Os resultados foram organizados a partir de estudos de casos. Os acontecimentos e enunciados que compõem o arquivo são problematizados a partir da análise foucaultiana do discurso. No primeiro caso, são explorados os enunciados sobre honra e religiosidade usados pelo participante para justificar seus atos, visto que ele alega que as motivações do crime são a traição da companheira e uma suposta possessão desta por espíritos malignos. Há um forte discurso religioso produzido na moralidade neopentecostal. No segundo caso, é o enunciado de masculinidade desafiada que aparece como plano de fundo para a agressão. O tio da vítima, a pedido dela, ameaçou o participante solicitando que este se afastasse da sua sobrinha. Aqui são elencados também enunciados de paternidade e promiscuidade feminina para conferir inteligibilidade ao crime diante do júri. No terceiro caso, o uso de medicamentos controlados associado ao consumo excessivo de bebidas por parte da parceira são usados como justificativa para o crime. Há uma importante correlação entre masculinidade e trabalho produtivo nesse último caso, na medida em que o participante recorreu ao enunciado de homem trabalhador em oposição a mulher relapsa para legitimar o lugar de bom homem ocupado por ele. A análise dos casos aponta que há um campo associado que confere inteligibilidade ao crime de feminicídio, que faz uso de enunciados produzidos pelos saberes psi, pelos dispositivos jurídicos e instituições religiosas. Esses enunciados ganham coerência social na medida em que se ancoram no sistema sexo-gênero, e definem os lugares sociais que produzem homens e mulheres.

Abstract: The theme of femicide, as well as the violence against women, has proved to be an important field of research worldwide. In the academic field, feminist studies have tried to point out the social structure that throughout history has naturalized female murder. Following this theoretical line, in this research, I tried to problematize the enunciative network that made femicide a legitimate act for men convicted of the crime. The study was conducted from the discourse of these men, and developed by the light of theories of gender and masculinities. Participated three men convicted of femicide or attempted femicide. Interviews were carried out in the penitentiary where the participants were imprisoned, as well as the analysis of the judicial process of each one of them. The results were organized based on case studies. The events and statements that make up the archive are problematized based on Foucault's discourse analysis. In the first case, are explored the statements about honor and religiosity used by the participant to justify his acts, since he alleges that the motivations of the crime are the betrayal of his partner and her supposed possession by evil spirits. There is a strong religious discourse produced in neo-Pentecostal morality. In the second case, it is the statement of challenged masculinity that appears as a background for aggression. The victim's uncle, at her request, threatened the participant by asking him to stay away from his niece. Here are also listed statements of paternity and female promiscuity to make the crime intelligible before the jury. In the third case, the use of controlled drugs associated with excessive consumption of alcohol by the female partner are used as a justification for the crime. There is an important correlation between masculinity and productive work in the last case, insofar as the participant resorted to the statement of a working man as opposed to a unproductive woman to legitimize the place of a good man occupied by him. The analysis of the cases points out that there is an associated field that confers intelligibility to the crime of feminicide, which use statements produced by psis knowledge, legal devices and religious institutions. These statements reach social coherence as they are anchored in the sex-gender system and define the social places that produce men and women.