Silêncios na História e disputas entre memórias: os processos de reconhecimento identitário e titulação territorial das comunidades quilombolas

Abstract

O processo Constituinte (1986-1987) e as comemorações em torno do centenário da Abolição da Escravidão propiciaram um momento oportuno para discussões sobre as narrativas acerca da história da construção da nação brasileira. Neste contexto, memórias que até então haviam sido silenciadas tiveram voz e confrontaram a narrativa histórica oficial, que ainda trazia em seu bojo a ideia de que a nação tinha sua origem fundada na ?democracia racial?. Tais discussões refletiram na Constituição de 1988, em forma de dispositivos legais que foram aprovados, entre os quais os artigos 215, 216 e, especialmente, o artigo 68, que tornou o Estado obrigado a reconhecer a identidade e emitir o título dos territórios das comunidades quilombolas. Nesta pesquisa, procuramos estudar a história dos processos de reconhecimento identitário e de titulação territorial das comunidades quilombolas, a partir do estudo de caso da Comunidade Invernada dos Negros (Campos Novos/SC). Da análise destes processos, se abriu a possibilidade de um novo modelo de arquivo, aqui denominado ?arquivo quilombola?. Este arquivo é composto pelos gestos de vários atores, entre os quais, estão, especialmente, os moradores das comunidades, antropólogos, historiadores, geógrafos e operadores do direito. Buscamos delimitar as relações e transações envolvidas nesta composição. No ?arquivo quilombola?, o conceito de quilombo está em disputa, e as memórias dos moradores das comunidades se tornam operadores políticos. São também intervenientes na construção do ?arquivo?: os historiadores, através de suas séries documentais e da história oral; os antropólogos, através da etnografia, numa relação muito profunda com as memórias inscritas nos territórios; os geógrafos, dando visibilidade espacial às comunidades no território nacional; todos em interação com os operadores do direito e outros agentes públicos que constroem ?provas? que legitimam a veracidade da identidade e da demanda territorial das referidas comunidades. O arquivo se apresenta, assim, como lugar de encontro e confronto entre culturas e saberes.

Abstract: The Constituent process (1986-1987) and the commemorations of the centenary of the Abolition of slavery provided an opportune moment for discussing narratives concerning the building of the Brazilian Nation. In that context, memories that thus far had been silenced were able to speak out and challenged the official narrative of history, the core of which was still permeated with the idea that Nation?s origin had been founded based on ?racial democracy?. Those discussions were reflected in the 1988 Constitution, in the form of sanctioned legal provisions, including articles 215, 216 and, especially, article 68, which bound the State to recognize the identity of the quilombola communities and grant them the tenure of their territories. In this research we sought to study the history of the processes of recognition of the identity of the quilombola communities and granting of territory deeds to them, based on a case study of the Invernada dos Negros Community (Campos Novos - SC). Analysis of these processes opened up the possibility of a new archive model, referred to here as the ?quilombola archive?. This archive is composed of the gestures of several players, including in particular the community dwellers, anthropologists, historians, geographers and legal practitioners. We sought to delimit the relations and transactions involved in this composition. In the ?quilombola archive? the concept of the quilombo is in dispute, and the memories of the community dwellers become political operators. They are also stakeholders in the building of the ?archive?: historians through their documental series and oral history; anthropologists through ethnography in a very profound relationship with the memories inscribed in the territories; geographers by giving spatial visibility to the communities in the national territory; all of them interacting with legal practitioners and other public agents who build ?proof? that legitimizes the veracity of the identity of the quilombola communities and their territorial demands. The archive therefore emerges as a place of encounter and confrontation between cultures and wisdom.