"Se eu passar despercebido o baile não prestou": visibilidade e resistência viada no interior de Santa Catarina

Abstract

O objetivo deste trabalho foi investigar e problematizar como homens nascidos entre os anos 1950 e 1970, que vivem em cidades do interior de Santa Catarina, constituíram-se, identificaram-se e foram reconhecidos socialmente como viados; além das formas como geriram, negociaram e agenciaram a visibilidade em torno de suas homossexualidades, resistindo à heteronormatividade. A pesquisa insere-se no campo de estudos sobre as sexualidades e, a partir de marcos da teoria feminista e queer, adota uma perspectiva interdisciplinar, interseccional e desconstrutiva, interrogando e problematizando o que se nomeia construção da identidade homossexual . O corpus da pesquisa foi composto por nove sujeitos, oito homens brancos e um negro, com idades entre 42 e 66 anos, de diferentes extratos de classes médias (oriundos de famílias da classe trabalhadora) e católicos (muitos deles praticantes). Como metodologia, além da revisão bibliográfica e de levantamento de trabalhos acadêmicos sobre homossexualidades em cidades do interior do Brasil, associei a história oral, através de entrevistas não-diretivas produzidas a partir de histórias de vida, com práticas da pesquisa etnográfica. Explorando suas experiências de vida considerando, entre tantos outros fatores importantes, o gênero, a raça e a classe, bem como a pessoalidade e a fofoca, tão presente em contextos interioranos identifiquei que as estratégias de gestão de visibilidade homossexual se deram mediante permanentes negociações centradas por diferentes formas de discrição e por cautelas, evidenciando, ao mesmo tempo, uma conformação e o desafio à heteronormatividade. Avançando na investigação, procurei compreender melhor o regime de visibilidade homossexual com o qual os sujeitos dialogaram, destacando, com base nas memórias construídas, alguns aspectos do contexto histórico correspondente: a) o cenário social, cultural e moral de suas infâncias e juventudes vinculado ao período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), b) o impacto do pânico sexual e moral desencadeados pelo surgimento da AIDS, nas décadas de 1980 e 1990, c) a ascendência moral e a relação ambígua que mantêm com a religiosidade católica e d) a importância da televisão, principalmente em cidades do interior, como principal fonte de informação e lazer. Com base nas fontes que emergiram no trabalho de campo, investiguei e destaquei a importância dos shows de auditório e das telenovelas como produtores e difusores de representações homossexuais estereotipadas (incorporadas por personas bichas e viadas, e também pelas transformistas) e de representações modelares (através de personas e personagens gays discretos), que disputaram por espaço e deram sustentação a um regime de visibilidade homossexual que, de modo geral, prevaleceu nos anos 1970-2000. A partir da constatação de um regime de representação bastante restritivo, especulei sobre possíveis processos de subjetivação, identificação e gestão da visibilidade homossexual, ressaltando a necessidade de pensá-los de forma dialógica, encadeada, complexa e misturada. E destaquei que a sujeição à heteronormatividade e às forças de controle e normalização dela irradiadas, deu-se simultaneamente à adoção de práticas de resistência e agência plurais, dinâmicas e negociadas, com destaque àquelas nas quais as identidades de gênero revelaram-se ambíguas, transitivas e, ao lado de práticas indicativas de uma fluidez de desejos, colocaram em xeque o próprio binômio hétero-homossexualidade no contexto estudado.

Abstract : This work intended to investigate and discuss how men born between 1950 and 1970 and living in country towns of Santa Catarina have become, identified and socially recognized as fagots. It was also our focus to examine how they managed, negotiated and worked for the visibility of their homosexual choice, resisting normativity. By following an interdisciplinary, intersectional and deconstructive perspective, this research questions and addresses the problem known as \"construction of homosexual identities\" supported by a feminist and queer theoretical framework. The corpus of the study consisted of nine subjects: eight white men and one black, aged 42 and 66, coming from different social middle-class groups (working class and Catholic families, many of them churchgoers). In addition to the bibliographical review and survey of academic works on homosexuality developed in country towns around Brazil, the methodology combined oral history, collected through non-directive interviews based on life histories, with ethnographic research practices. By exploring these subjects' life experiences taking into account gender, race, social class, personal nature and the typical country gossips, just to name a few of several other relevant variables it was possible to identify that homosexual visibility management strategies took place through permanent negotiations centered around different forms of \"discretion\" and caution, revealing both some conformation and challenge towards heteronormativity. Furthering the investigation, we sought to better understand the regime of homosexual visibility the subjects interacted with by highlighting some aspects of the corresponding historical context, based on the informants' constructed memories: a) the social, cultural and moral scene of their childhood and youth associated to the period of military dictatorship in Brazil (1964-1985); b) the impact of sexual and moral panic triggered by the emergence of AIDS in the 1980s and 1990s; c) the moral influence and ambiguous relationship they keep with Catholicism; and d) the importance of television, mainly in country towns, as a primary source of information and leisure. According to the sources arising from the fieldwork, we then investigated and stressed the importance of talk shows and soap operas as tailoring and broadcasting means of stereotypical homosexual representations (performed as gay and fagot personas, let alone transformistas ) and model representations (by means of personas and discrete gay characters), which fought for space and sustained the regime of homosexual visibility most largely prevailing in the 1970s-2000s. Furthermore, building on the observation of a somewhat restrictive representation regime, we speculated on possible processes of subjectivation, identification, and management of homosexual visibility, emphasizing the need to think them from a dialogic, chained, complex and mixed perspective. Last, we emphasized that the subjection to heteronormativity and the forces of control and normalization resulting therefrom co-occurred to the adoption of pluralistic, dynamic and negotiated resistance and agency practices. In particular, those in which gender identities have proved to be ambiguous, transitive and, along with practices indicative of a fluidity of desires, put in check the very binomial hetero-homosexuality in the context studied.