A Filosofia da Educação e a Análise de Conceitos Educacionais (1)

Eduardo O C Chaves


Conteúdo

I. Filosofia Analítica e Filosofia da Educação

1. Filosofia Analítica

2. Filosofia da Educação

II. Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem

1. Pode Haver Ensino sem que Haja Aprendizagem?

2. Parêntese: A Questão da Intenção

3. Parêntese: O Conceito de Ensino

4. Pode Haver Aprendizagem sem que Haja Ensino?

III. Educação, Ensino e Aprendizagem

1. O Conceito de Educação

2. Pode Haver Ensino e Aprendizagem sem que Haja Educação?

3. Um Parêntese

4. Pode Haver Educação sem que Haja Ensino e Aprendizagem?

IV. Educação Formal e Informal e a Questão dos Objetivos da Educação

1. Educação Formal e Educação Informal

2. A Questão dos Objetivos Educacionais

V. Educação e Doutrinação

1. Considerações Gerais

2. O Conceito de Doutrinação

3. Observações Específicas

VI. Observações Finais: Filosofia da Educação e Teoria Educacional


I. Filosofia Analítica e Filosofia da Educação

Em que consiste a filosofia da educação? A resposta a esta pergunta pode variar, dependendo do que se entende por filosofia (e, naturalmente, também do que se entende por educação, mas a própria conceituação de educação já envolve um certo filosofar sobre a educação). Ao leigo pode parecer incrível que filósofos profissionais não tenham conseguido chegar a um acordo a respeito do que seja a filosofia, isto é, acerca de seu próprio objeto de estudo, mas esta é a pura verdade. A questão da natureza e da tarefa da filosofia já é, ela própria, um problema filosófico, e, como tal, comporta uma variedade de respostas. A muitos pode parecer que esta proliferação de respostas seja indicativa do próprio fracasso da filosofia. Outros vêem nesta situação a grande riqueza do pensamento humano, que, para cada problema que lhe é proposto, é capaz de imaginar uma variedade de soluções, todas elas, em maior ou menor grau, razoáveis e dignas de consideração, e todas elas contribuindo, de uma maneira ou de outra, para uma compreensão mais ampla e profunda dos problemas com que se depara o ser humano. Concordamos com estes últimos, e somos da opinião de que, embora muitos problemas filosóficos milenares não tenham (ainda?) sido solucionados, nossa compreensão deles, hoje, não é idêntica à dos filósofos que os formularam pela primeira vez, sendo muito mais profunda e ampla em virtude das várias respostas que já lhes foram sugeridas. Isto significa que há progresso na filosofia, apesar de este progresso não poder ser medido quantitativamente, em referência ao número de problemas solucionados, podendo somente ser constatado através de uma visão qualitativa, que leva em conta o aprofundamento e a ampliação de nossa compreensão desses problemas.

Não cremos, portanto, ser impróprio oferecer uma tentativa de "definição" da filosofia, se se mantém em mente que esta sugestão de definição não é feita dogmaticamente, como se fosse a única possível, ou mesmo a única razoável. Outras propostas de definição da filosofia existem que são plausíveis e razoáveis, e que, possivelmente, ao invés de se contraporem àquela que vamos sugerir, como alternativas, justapõem-se a ela como maneiras complementares de ver a filosofia.

1. Filosofia Analítica

A filosofia, do ponto de vista pólo analítico, é aquela atividade reflexiva, realizada, através de análise e de crítica, pelo ser pensante, no exame do significado e dos fundamentos de conceitos, crenças, convicções e pressuposições básicas, mantidos por ele próprio ou por outros seres pensantes. Essa caracterização geral da filosofia deixa entrever que a atividade filosófica é uma atividade reflexiva de segunda ordem. O que se quer dizer por isto? Quer-se dizer que a filosofia pressupõe outros tipos de atividade, na verdade outros tipos de atividade reflexiva, como a ciência, a história, a religião, a política, etc., e mesmo o chamado senso comum. Por exemplo: o objeto de reflexão do cientista natural é, em linhas gerais, a natureza; o do historiador é a história; e assim por diante. Essas atividades de reflexão são de primeira ordem: concentram-se em diferentes aspectos da realidade, ou do "ser". Elas partem, naturalmente, de certas pressuposições (por exemplo, de que os fenômenos do mundo natural estão causalmente relacionados, de que é possível ter conhecimento de eventos que não são mais objetos de nossa possível percepção, como é o caso de eventos históricos, etc.), e resultam em certas crenças e convicções (como, por exemplo, acerca da natureza da matéria, ou a respeito de uma certa seqüência de eventos históricos). O filósofo analítico não reflete sobre as mesmas coisas que são objeto de reflexão por parte do cientista natural e do historiador -- se o fizesse, estaria deixando de ser filósofo e passando a ser cientista natural ou historiador (algo, por sinal, perfeitamente possível). Ele reflete sobre as reflexões do cientista natural e do historiador, buscando trazer à tona (se necessário for), elucidar, e criticamente examinar os conceitos e as pressuposições básicas destes últimos, procurando, no processo, entender seus modos de argumentação e inferência, etc. Em poucas palavras, a filosofia analítica é reflexão (de um certo tipo) sobre a reflexão, é o pensamento pensando sobre si próprio. Para dar um tom mais contemporâneo a essa caracterização, poderíamos dizer que, desde que a reflexão e o pensamento se expressam através de linguagem, através do discurso humano, em suas várias manifestações, a filosofia analítica é discurso sobre o discurso: o filósofo reflete, não sobre a natureza e a história (para continuar com nossos exemplos anteriores), mas sim sobre o que cientistas naturais e historiadores dizem acerca da natureza e da história. Por isso é que chamamos a atividade filosófica de uma atividade reflexiva de segunda ordem: ela se exerce sobre outras atividades reflexivas, que se constituem, portanto, no objeto da filosofia.

É desnecessário enfatizar que o próprio cientista natural (ou o historiador) pode refletir sobre aquilo que está dizendo acerca da natureza (ou da história). Quando assim reflete, porém, está realizando atividade reflexiva de segunda ordem -- está, portanto, nessas ocasiões, provavelmente, filosofando, e não fazendo ciência (ou história).

Parece desnecessário, também, acrescentar que a filosofia não se preocupa somente com o discurso científico e histórico, como poderiam sugerir nossos exemplos. O filósofo reflete sobre qualquer tipo de reflexão de primeira ordem: reflexão moral, reflexão religiosa, reflexão artística, etc., e também sobre as reflexões do senso comum (2). Por isso, há muitas "filosofias de ...": filosofia da ciência (que pode ser ainda mais especializada, havendo a filosofia das ciências naturais, das ciências biológicas, das ciências humanas), filosofia da história, filosofia da religião, filosofia da arte, filosofia do direito, e assim por diante, incluindo-se aí, naturalmente, também a filosofia da educação.

É necessário, porém, ressaltar que nem toda atividade reflexiva de segunda ordem é, necessariamente, filosófica. O sociólogo, por exemplo, ou o psicólogo, pode refletir sobre a atividade do cientista, e sobre ela fazer e responder perguntas que sejam estritamente sociológicas, ou psicológicas, e não filosóficas. A sociologia da ciência não faz as mesmas perguntas sobre a atividade do cientista que são feitas pela filosofia da ciência. Se, porém, há outros tipos de atividade reflexiva de segunda ordem, além da filosófica, o que é que caracteriza as perguntas distintamente filosóficas? A resposta já esta contida no que foi dito acima: a filosofia busca elucidar e examinar criticamente os conceitos, as convicções e pressuposições básicas, os modos de argumentação e inferência, etc. existentes dentro de uma dada área de atividade intelectual.

Assim sendo, um psicólogo pode fazer vários tipos de pergunta acerca da atividade científica: Como é que, do ponto de vista psicológico, alguém chega a descobrir ou formular uma lei ou uma teoria? Quais os mecanismos psicológicos que estão envolvidos na criatividade e inventividade científicas? É a criatividade científica diferente, do ponto de vista psicológico, da criatividade artística? Da mesma maneira, um sociólogo pode perguntar sobre a relação existente entre ciência e sociedade, acerca da medida em que teorias científicas são condicionadas pelo meio-ambiente em que aparecem, a respeito do papel da ciência e do cientista na sociedade, etc. As perguntas que o filósofo que reflete sobre a ciência faz, porém, são do seguinte tipo: O que se entende por ciência? Quais são os critérios de cientificidade? O que diferencia teorias científicas de outros tipos de teoria (digamos, teorias metafísicas e especulativas)? O que leva cientistas a considerar uma teoria melhor do que a outra, quando ambas se propõem a explicar os mesmos fenômenos? Qual a relação entre teoria e observação? Existe verdade na ciência, ou apenas probabilidade? O alvo da ciência é produzir teorias altamente prováveis ou pouco prováveis, mas de alto poder explicativo e preditivo? Existe objetividade e racionalidade na ciência? Se não, por quê? Se sim, em que sentido e em que medida? E assim por diante.

Pode-se ver, imediatamente, que virtualmente todas essas perguntas filosóficas poderiam ser resumidas na seguinte questão: em que sentido e em que medida se pode falar em conhecimento científico? Essas perguntas são todas epistêmicas (episteme é o termo grego que se traduz por "conhecimento"): buscam analisar e elucidar a noção de conhecimento científico e os conceitos e premissas que constituem os fundamentos desse conhecimento. Perguntas semelhantes podem ser feitas em relação a qualquer atividade intelectual. É isto que faz com que a epistemologia, a teoria do conhecimento, ou seja, aquela área da filosofia que investiga a natureza, o escopo (ou a abrangência) e os limites do conhecimento humano, em geral, seja de suma importância no estudo da filosofia.

2. Filosofia da Educação

Mas falemos agora em filosofia da educação. A filosofia analítica da educação, seguindo a caracterização apresentada nos parágrafos anteriores, não discorre sobre o fenômeno da educação, como tal, mas sim sobre o que tem sido dito acerca desse fenômeno (por exemplo, por sociólogos da educação, psicólogos da educação, ou por qualquer pessoa que reflita sobre a educação). Não resta a menor dúvida de que uma das primeiras e mais importantes tarefas da filosofia da educação, a partir da caracterização da tarefa da filosofia sugerida acima, é a análise e clarificação do conceito de "educação". Fala-se muito em educação. "Educação é direito de todos", "educação é investimento", "a educação é o caminho do desenvolvimento", etc. Mas o que realmente será essa educação, em que tanto se fala? Será que todos os que falam sobre a educação usam o termo no mesmo sentido, com idêntico significado? Dificilmente. É a educação transmissão de conhecimentos? É a educação preparação para a cidadania democrática responsável? É a educação o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo? É a educação adestramento para o exercício de uma profissão? As várias respostas, em sua maioria conflitantes, dadas a essas perguntas são indicativas da adoção de conceitos de educação diferentes, muitas vezes incompatíveis, por parte dos que se preocupam em responder a elas. Este fato, por si só, já aponta para a necessidade de uma reflexão sistemática e profunda sobre o que seja a educação, isto é, sobre o conceito de educação.

Assim que se começa a fazer isso, porém, percebe-se que a tarefa de clarificação e elucidação do conceito de educação é extremamente complexa e difícil. Ela envolve não só o esclarecimento das relações existentes ou não entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização, etc. Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura possam existir entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista, parecem ser seus parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento, condicionamento, etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido dessas noções, dos critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre si e com outros conceitos educacionais é tarefa da filosofia da educação e é condição necessária para a elucidação do conceito de educação.

Mas há ainda uma outra família de conceitos que se relaciona estreitamente com a educação: a dos conceitos de ensino e aprendizagem. Qual a relação existente entre educação e ensino, entre educação e aprendizagem, e entre ensino e aprendizagem? Façamos uma lista de possíveis perguntas a serem feitas acerca do relacionamento dessas noções:

Tem se criticado muito uma visão da educação que coloca muita ênfase no ensino (e, conseqüentemente, no professor). O importante, afirma-se, não é o ensino, e sim a aprendizagem. Os mais exagerados chegam quase a afirmar: "Morte ao ensino! Viva a aprendizagem!" Outros fazem uso de certos slogans meio obscuros: "Toda aprendizagem é auto-aprendizagem". Incidentalmente, faz-se muito uso, em livros e discursos sobre a educação, de slogans cujo sentido nem sempre é muito claro. Um outro slogan muito usado, nesse contexto, é o seguinte: "Não há ensino sem aprendizagem". Parece claro que, para poder julgar quanto à verdade ou à falsidade dessas afirmações, é indispensável que os conceitos de ensino e aprendizagem tenham sentidos claros e específicos -- o que, infelizmente, não acontece com muita frequência. É necessário, portanto, que o sentido desses conceitos seja esclarecido e que sua relação com o conceito de educação seja elucidada, e a filosofia da educação pode ser de grande valia nessa tarefa.

Para terminar essa primeira parte, que tem por finalidade caracterizar a filosofia da educação, dentro da perspectiva mais geral de uma visão da filosofia que foi explicitada nos primeiros parágrafos, deve-se fazer menção de um outro conjunto de problemas relacionado, de alguma forma, com os já mencionados, mas que, por razão de espaço, não será explicitamente discutido: a questão da relação entre educação e valores. Este problema tem vários aspectos. Um deles é o seguinte: é tarefa da educação transmitir valores? Muitos já observaram que, seja ou não tarefa da educação transmitir valores, ela de fato os transmite, pelo menos de maneira implícita. Outros afirmam que, embora seja tarefa da educação transmitir valores, a educação moral, como às vezes é chamada a transmissão de valores através da educação, não é tarefa da educação escolar, isto é, da educação que se realiza no âmbito de uma instituição chamada escola, e sim da educação que tem lugar no contexto da família, ou talvez, se for o caso, da igreja. Esta resposta levanta, em um contexto específico, o problema mais amplo da relação entre educação e escola. Para muitos, quando alguém está falando em educação está, automaticamente, falando em escolas, e vice-versa. Mas a educação certamente parece ser algo que transcende os limites da escola, e hoje em dia fala-se muito em "educação sem escolas". Os proponentes do ponto de vista que mencionamos acima acreditam que pelo menos uma parte da educação, aquela que diz respeito à transmissão de valores, deve ser levada a efeito fora da escola. Todos esses problemas são complexos, e embora a filosofia da educação não tenha respostas prontas para eles, ela pode contribuir muito para sua solução satisfatória, ajudando na elucidação e clarificação dos principais conceitos envolvidos nesse conjunto de problemas.

Antes de passarmos para a segunda parte deste trabalho, duas pequenas observações. A primeira é um lembrete de que os problemas aqui mencionados como sendo do âmbito da filosofia da educação de maneira alguma esgotam as questões a que um filósofo da educação, como tal, pode se dirigir, mesmo que ele seja partidário da conceituação de filosofia e filosofia da educação aqui proposta. Há uma série de outros problemas, a que não se fez referência, que estão, legitimamente, dentro da província da filosofia da educação como aqui conceituada. No que foi esboçado acima e no que será discutido abaixo temos apenas uma amostra de como alguns conceitos educacionais podem ser analisados filosoficamente.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a caracterização da filosofia da educação aqui apresentada é uma caracterização possível, que é sugerida a partir de uma conceituação analítica da filosofia, a qual não é, de maneira alguma, a única possível. Muitos filósofos discordam da orientação sugerida aqui e apresentam, conseqüentemente, uma visão diferente da natureza e tarefa da filosofia da educação. Em muitos dos casos a visão por eles sugerida apenas complementa (e não substitui) a apresentada no presente trabalho. Em outros casos é bem possível que as concepções sejam mutuamente exclusivas. Nos últimos parágrafos faremos menção do nosso ponto de vista acerca da relação entre a filosofia da educação e a teoria da educação, segundo o qual muita coisa que foi e é apresentada como filosofia da educação deve ser colocada no âmbito da teoria da educação. Contudo, é apenas no contexto de discussões acadêmicas acerca do conceito de filosofia da educação que faz alguma diferença designar posições acerca da educação como pertencentes à teoria, e não à filosofia da educação.

Embora a lógica talvez pudesse recomendar que começássemos com o conceito de educação, quer nos parecer que, do ponto de vista didático, seja mais recomendável que a discussão desses conceitos educacionais básicos seja iniciada pelos conceitos de ensino e aprendizagem, pois o leitor, provavelmente, estará mais familiarizado com eles do que com o mais difuso e abstrato conceito de educação.

II. A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem

Comecemos nossa discussão dos conceitos de ensino e aprendizagem fazendo a seguinte pergunta: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

1. Pode Haver Ensino sem que Haja Aprendizagem?

Suponhamos uma situação em que um professor universitário apresente, em detalhes, os aspectos mais difíceis e complicados da teoria da relatividade de Einstein a grupo de crianças de sete anos. Suponhamos que o professor em questão seja profundo conhecedor do assunto e faça uma brilhante exposição, utilizando meios audiovisuais ou quaisquer outros recursos que a didática moderna possa recomendar. Apesar de tudo isso, as crianças nada aprendem daquilo que ele apresentou. Podemos nós dizer que, embora as crianças nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, o professor esteve ensinando durante sua apresentação? A resposta afirmativa, neste caso claramente extremo e exagerado, parece pouco plausível. Mas suponhamos -- uma suposição, agora, não tão absurda -- que a audiência desse professor fosse composta, não de crianças de sete anos, mas de universitários no último ano do curso de física, e que o resultado fosse o mesmo: os alunos nada aprenderam acerca da teoria da relatividade de Einstein através da exposição. Podemos nós dizer que, embora o professor tivesse estado a ensinar a teoria da relatividade, os alunos não a aprenderam? A resposta afirmativa, aqui, parece bem mais plausível. Mas qual é, realmente, a diferença entre a primeira e a segunda situação? Vamos colocar esta questão, por enquanto, entre parênteses, para analisar algumas respostas que têm sido dadas à pergunta com que iniciamos este parágrafo: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

Muitas pessoas dão uma resposta negativa a esta pergunta, afirmando que não há ensino sem aprendizagem. Este é um dos slogans que freqüentemente aparecem na literatura educacional. Correndo o risco de caracterizar algumas posições altamente complexas de uma maneira um pouco simplista, poderíamos dizer que, em relação às duas situações que imaginamos no parágrafo anterior, os que afirmam que não há ensino sem aprendizagem podem se dividir em dois grupos: de um lado estariam os que afirmam que naquelas situações não houve ensino, visto não ter havido aprendizagem. Do outro lado, porém, estariam aqueles que, quando confrontados com situações desse tipo, levantam a seguinte questão: Será que não houve mesmo aprendizagem? Ainda supondo que os alunos, tanto em um como no outro caso, nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, argumentam, será que eles não aprenderam alguma coisa através da exposição do professor? Eles poderão ter aprendido, por exemplo, no caso das crianças de sete anos, que, embora o professor estivesse falando o tempo todo, ninguém estava entendendo nada, que as aulas com a professora regular são muito mais divertidas, que o retro-projetor utilizado pelo professor é um "negócio bacana", etc.. No caso dos universitários, eles poderão ter aprendido que o professor devia desconhecer o nível da classe para dar uma aula dessas, que o curso que eles fizeram não deve ter sido muito bom, se não os capacitou a entender uma apresentação sobre a teoria da relatividade de Einstein, etc. Em poucas palavras: os alunos, em um como no outro caso, devem ter aprendido alguma coisa, e, conseqüentemente, houve ensino nas situações imaginadas -- este o argumento.

A dificuldade com essa sugestão é óbvia: embora possa ter havido aprendizagem nas situações imaginadas, o que os alunos aprenderam não foi aquilo que o professor lhes estava expondo! Poderiam, talvez, ter aprendido as mesmas coisas, se a exposição houvesse sido sobre a química de Lavoisier, ou sobre as peças de Sheakespeare, ou sobre a filosofia de Kant. Isto, por si só, já indica que algo não está muito certo e que há necessidade de que algumas coisas sejam esclarecidas e colocadas em seus devidos lugares. Vamos, de uma maneira muito simples e elementar, tentar esclarecer alguns desses problemas.

Se prestarmos atenção a algo muito simples, como a regência do verbo ensinar, poderemos começar a esclarecer a situação. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. A situação de ensino é uma situação que envolve três componentes básicos: alguém que ensina (digamos, o professor ), alguém que é ensinado (digamos, o aluno), e algo que o primeiro ensina ao segundo (digamos, o conteúdo). Não faz sentido dizer que fulano esteve ensinando sicrano a tarde toda sem mencionar (ou sugerir) o que estava sendo ensinado (se frações ordinárias, andar de bicicleta, amarrar os sapatos, atitude de tolerância, etc.) (4). Também não faz sentido dizer que beltrano esteve ensinando História do Brasil nas duas últimas horas, sem mencionar (ou indicar) a quem ele estava ensinando História do Brasil (se a seus filhos, se aos alunos da quarta série, etc.).

Nos dois casos que imaginamos, o professor universitário estava expondo a um grupo de alunos um certo conteúdo, a saber, a teoria de relatividade de Einstein. Este conteúdo os alunos, por hipótese, não aprenderam. Que eles tenham aprendido outras coisas, as quais ele, claramente, por hipótese, não estava interessado em transmitir-lhes, parece irrelevante à questão: pode haver ensino sem que haja aprendizagem? (5) Por isso, vamos deixar de lado o "segundo grupo" dos que afirmam que não há ensino sem aprendizagem e discutir a posição do "primeiro grupo", ou seja, daqueles que afirmam que, visto não ter havido aprendizagem (da teoria da relatividade, naturalmente) nos casos em questão, não houve ensino.

Será que esta afirmação é verdadeira? Cremos que não. É importante notar que a afirmação cuja veracidade aqui vai ser colocada em dúvida é uma afirmação composta, que diz (pelo menos) duas coisas: em primeiro lugar, afirma que não houve ensino; em segundo lugar, afirma que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Afirmar simplesmente "não houve ensino" é constatar algo; afirmar, porém, "não houve ensino porque não houve aprendizagem" é, além de constatar algo, oferecer uma explicação: é indicar a razão (ou a causa) em virtude da qual não houve ensino. A afirmação cuja veracidade vamos questionar é a composta, que inclui a explicação da constatação. Isto pode parecer meio complicado, mas no fundo é simples, como, esperamos, se vai ver.

Se é verdade que não há ensino sem aprendizagem, então não existe uma distinção entre ensino bem sucedido e ensino mal sucedido. Todo ensino é, por definição, bem sucedido, isto é, resulta, necessariamente, em aprendizagem. Dizer, portanto, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano aprendeu raiz quadrada é ser redundante, é incorrer em pleonasmo, é dizer a mesma coisa duas vezes. Dizer, por outro lado, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano não aprendeu raiz quadrada é incorrer em autocontradição, é afirmar e negar a mesma coisa, ao mesmo tempo, porque se fulano ensinou, então sicrano (necessariamente) aprendeu, e se sicrano não aprendeu, então fulano (necessariamente) não ensinou. Ora, tudo isso nos parece absurdo (6). Parece-nos perfeitamente possível afirmar que, embora fulano tivesse ensinado raiz quadrada a sicrano durante a tarde toda, sicrano não aprendeu raiz quadrada. Em outras palavras, a distinção entre ensino bem sucedido (que resulta em aprendizagem) e ensino mal sucedido (que não resulta em aprendizagem) parece inteiramente legitima. Ora, se esta distinção é legítima, então não é verdade que não há ensino sem aprendizagem (ou que todo ensino resulta em aprendizagem).

Mas parece haver um certo vínculo conceitual entre ensino e aprendizagem. Dificilmente diríamos que uma pessoa está ensinando algo a alguém se esta pessoa não tem a menor intenção de que este alguém aprenda o que está sendo ensinado. Talvez o que o slogan esteja querendo dizer é que se não houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que ele está expondo, então não há ensino. Esta afirmação parece ser aceitável. Ela apresenta uma dificuldade, porém: a noção de intenção. Como é que se determina que uma pessoa tem, ou não tem, a intenção de que alguém aprenda o que ela está expondo? Esta é uma dificuldade séria, porque esta questão é virtualmente equivalente à seguinte pergunta: Como é que se determina que uma pessoa está, ou não está, ensinando? (7)

2. Parêntese: A Questão da Intenção

Imaginemos que alguém esteja levando aos lábios um copo contendo um líqüido vermelho. O que é que esta pessoa está fazendo? A esta pergunta pode-se responder, obviamente, com uma descrição dos movimentos físicos da pessoa em questão: ela está levando aos lábios um copo que contém um líqüido vermelho. Mas esta resposta é pouco informativa. Para se oferecer uma resposta que seja mais informativa, porém, é necessário que se faça menção da intenção (ou do propósito) que a pessoa tem a levar aos lábios o copo com o líqüido. A pessoa pode estar meramente saciando a sua sede com um bom vinho. Ou pode estar se embebedando. Ou pode estar se suicidando com um líqüido venenoso. Ou pode estar comungando. Ou, ainda, pode estar fazendo um número de coisas que não vem ao caso enumerar. Sua intenção ao tomar o líqüido é que vai determinar o que esta pessoa esta realmente fazendo. É bom ressaltar que a questão da intenção é sumamente importante. Se se descobre que a pessoa em pauta tinha meramente a intenção de saciar sua sede, mas que alguém (sem ela saber) despejou veneno no líqüido, causando sua morte, nós não diríamos que ela se suicidou, e sim que foi assassinada. Se sua intenção era saciar a sede, mas, por puro engano, bebeu um líqüido venenoso ao invés do vinho que pensava estar bebendo, nós não diríamos que houve suicídio, e sim um lamentável acidente, que veio a ser fatal, se, naturalmente, em conseqüência disso, a pessoa veio a falecer. Estas distinções são importantes, principalmente em contextos jurídicos. Em nosso caso, porém, elas não parecem nos ajudar muito na determinação da intenção da pessoa que levou aos lábios o copo com o líqüido vermelho. De que maneira poderíamos determinar sua intenção?

Deve ser dito claramente que não há maneiras seguras e infalíveis de determinar a intenção de alguém. Intenções não são coisas direta e imediatamente observáveis, como o são movimentos físicos -- pelo menos no caso de outras pessoas. (A situação parece bastante diferente quando se trata de nossas próprias intenções: a elas temos acesso direto e imediato, se bem que não através da observação.) Contudo, uma intenção pode, muitas vezes, ser indiretamente determinada através do contexto em que certos movimentos físicos são realizados, com ajuda do nosso conhecimento (mesmo que elementar) acerca do desenvolvimento e comportamento das pessoas. Se, no nosso caso, a pessoa estava levando o copo aos lábios dentro de uma igreja, na presença de um sacerdote, etc., é bastante plausível que sua intenção era comungar -- pelo que sabemos do comportamento "normal" das pessoas, dificilmente ela estaria tentando se embebedar ou cometer suicídio ali. Se a pessoa, porém, estava levando o copo aos lábios em um clube noturno, onde esteve a dançar, tem o semblante alegre e descontraído, é bem possível que sua intenção fosse meramente saciar a sede -- dificilmente estaria comungando ali, por exemplo. E assim por diante. Quando estamos na posição de observadores, procurando descobrir a intenção de alguém, precisamos analisar o contexto e, com base em nosso conhecimento acerca do comportamento "normal" das pessoas, aventar uma hipótese, que terá maior ou menor probabilidade de ser correta, dependendo das circunstâncias. Em alguns casos pode ser impossível determinar a intenção de alguém. Em outros pode ser até razoavelmente fácil (o que não exclui a possibilidade de erro). No nosso caso, não há dados que permitam determinar qual das hipóteses é mais provável, ou mesmo se alguma delas tem certa possibilidade, pois só oferecemos a descrição de um movimento físico: o de levar aos lábios um copo com líqüido vermelho -- não descrevemos o contexto. Mas em grande parte dos casos há uma indicação do contexto, da situação, que nos permite inferir qual a intenção do agente ao realizar certos movimentos.

Voltemos agora à afirmação que fizemos acima de que se não houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que está se expondo, então não há ensino. O problema que esta afirmação enfrenta, dissemos, está relacionado com a dificuldade em determinar a intenção de alguém, a partir dos movimentos físicos que realiza. Esta dificuldade, contudo, não é intransponível, como acabamos de ver, e é compartilhada por todas as situações em que atribuímos intenções a outras pessoas, algo que fazemos em grande freqüência. Constantemente atribuímos intenções aos outros (8) e, embora muitas vezes erremos ao fazê-lo, com surpreendente freqüência acertamos.

Estamos agora em condições de responder à pergunta que formulamos no primeiro parágrafo desta segunda parte: Qual é realmente a diferença entre a primeira e a segunda situação que imaginamos naquele parágrafo? Por que é que no primeiro caso parece plausível dizer que o professor não estava ensinando, e que no segundo parece bem mais plausível dizer que o professor estava ensinando, embora em ambos os casos os alunos nada hajam aprendido? No primeiro caso, os fatos da situação -- o contexto -- mais nosso conhecimento de que crianças "normais" de sete anos têm condições de aprender nos indicam que o professor dificilmente poderia ter a intenção de que as crianças aprendessem os aspectos mais complicados da teoria da relatividade de Einstein. Por bizarro que possa parecer, é bem mais plausível imaginar que o professor estivesse ensaiando uma aula ou conferência, e que a presença das crianças fosse puramente acidental ou ornamental. No segundo caso, porém, a situação é alterada. A audiência é composta de alunos no último ano do Curso de Física. Baseados nesse fato, e em nosso conhecimento (ou na suposição razoável) de que alunos no último ano do Curso de Física têm, em geral, condições de entender a teoria da relatividade de Einstein, torna-se bem mais plausível atribuir ao professor a intenção de que os alunos aprendessem o que ele estava expondo, ou seja, a intenção de ensinar. Em um caso, portanto, é plausível afirmar que o professor não estava ensinando, e no outro é plausível afirmar que estava. Em nenhum dos dois casos, porém, houve aprendizagem. A plausibilidade das afirmações acima não se deve, portanto, ao fato de os alunos não haverem ou haverem aprendido o que lhes era exposto. Deve-se, isto sim, ao fato de que em um caso não faz sentido atribuir ao professor a intenção de que seus alunos viessem a aprender o que expunha, e no outro faz.

Foi por isso que ressaltamos acima que não iríamos discutir a afirmação simples de que não houve ensino naquelas situações e sim a afirmação composta de que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Embora as situações sejam, exceto pela audiência, idênticas, estamos propensos a acreditar que no primeiro não houve ensino e que no segundo pode ter havido (9). Mas não estamos propensos a acreditar que este seja o caso porque na primeira situação não tenha havido e na segunda tenha havido aprendizagem, pois, por hipótese, não houve aprendizagem em nenhuma delas. Baseamo-nos no fato de que no primeiro não é plausível atribuir ao professor a intenção de causar (ou produzir, ou ocasionar, ou ensejar) a aprendizagem dos alunos, enquanto no segundo é.

3. Parêntese: O Conceito de Ensino

Em relação ao conceito de ensino, podemos resumir as nossas conclusões e sugerir algumas de suas implicações:

Primeira: O conceito de ensino faz referência a uma situação ou atividade triádica, isto é, de três componentes, quais sejam, aquele que ensina, aquele a quem se ensina, e aquilo que se ensina. Esta conclusão sugere que não é muito apropriado dizer que alguém ensinou a si próprio alguma coisa, sendo, portanto, um auto-didata (o termo "didata" provém do verbo grego didaskein, que quer dizer, exatamente, "ensinar"). Quando dizemos que uma pessoa esta ensinando algo a uma outra pessoa, pressupomos que a primeira saiba (ou domine) o que está ensinando e que a segunda não saiba (ou domine) o que está sendo ensinado. Se há, porém, apenas uma pessoa em jogo, mais um certo conteúdo, ou esta pessoa já sabe (ou domina) este conteúdo, em cujo caso não precisa ensiná-lo a si própria, ou esta pessoa não sabe (ou domina) o conteúdo em questão, em cujo caso não tem condições de ensiná-lo a si própria. Designar certas pessoas como auto-didatas parece, portanto, bastante descabido. Isso não quer dizer, porém, que alguém não possa aprender por si próprio um certo conteúdo, sem que alguma outra pessoa necessariamente lho ensine. Neste caso, porém, a pessoa que vem aprender um dado conteúdo por si própria não é um auto-didata, mas sim um auto-aprendiz.

Segunda: Para que uma atividade se caracterize como uma atividade de ensino não é necessário que aquele a quem se ensina aprenda o que está sendo ensinado; basta que o que ensina tenha a intenção de que aquele a quem ele ensina aprenda o que está sendo ensinado. Esta segunda conclusão é rica em implicações. Em primeiro lugar, ela implica a existência de ensino sem aprendizagem (o que poderíamos chamar de ensino mal sucedido). Em segundo lugar, ela sugere que coisas realmente não ensinam, porque não podem ter a intenção de produzir a aprendizagem. Isto, por sua vez, significa que não é muito correto dizer: "A natureza me ensinou", ou "a vida me ensinou", etc. Significa, também, que é só com muito cuidado que podemos falar em ensino através de máquinas (máquinas de ensinar, computadores, por exemplo), ou mesmo através de livros. Um computador (ou um livro) só ensina na medida em que a pessoa que o programou (ou escreveu) teve a intenção de que alguém aprendesse através dele.

Terceira: A intenção de produzir a aprendizagem, isto é, a intenção de ensinar, só pode ser constatada mediante análise do contexto em que certas atividades são desenvolvidas. Se esta análise tornar razoável a atribuição da intenção em pauta, podemos concluir que pode estar havendo ensino (10); caso contrário, seremos forçados a admitir que não esteja. Esse exame do contexto é, portanto, extremamente importante. A presente conclusão, quando vista à luz das precedentes, tem pelo menos três implicações bastante significativas. Em primeiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa, algum conteúdo, a alguém, quem quer que seja que pretenda estar ensinando tem a obrigação de indicar, de maneira clara e inequívoca, exatamente o que é que ele tenciona que seus alunos aprendam. Se o conteúdo a ser aprendido não é claramente indicado, a pessoa que o expõe pode estar fazendo uma variedade de coisas (um discurso, uma pregação, etc.), mas dificilmente estará ensinando, pois se torna bastante problemático atribuir-lhe a intenção de que os alunos aprendam algo que não é especificado. Em segundo lugar, é necessário que as atividades desenvolvidas por quem pretende estar ensinando estejam relacionadas, de alguma maneira, com o conteúdo a ser aprendido. Isto significa que, embora as atividades que possam ser consideradas atividades de ensino, em geral, sejam virtualmente ilimitadas, as atividades que podem ser considerada de ensino de um conteúdo específico são limitadas pela natureza do conteúdo em questão. Se as atividades desenvolvidas não têm relação com esse conteúdo, torna-se difícil atribuir ao suposto ensinante a intenção de que seus alunos aprendam o conteúdo que lhes está sendo proposto. Em terceiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa a alguém, é necessário que quem pretende estar ensinando conheça e leve em consideração a condição de seus alunos (sua idade, seu desenvolvimento, seu nível intelectual, etc.) para não apresentar-lhes conteúdos para os quais não estão preparados e que não têm condições de aprender e para não desenvolver atividades inadequadas à condição desses alunos. Torna-se bastante problemático atribuir a alguém a intenção de que seus alunos aprendam um certo conteúdo se esse conteúdo, por exemplo, está acima da capacidade desses, ou se as atividades escolhidas como meios para alcançar esse objetivo não podem ser desenvolvidas ou acompanhadas pelos alunos.

Com essas conclusões chegamos, porém, ao segundo tópico a ser discutido nesta parte do trabalho. Até agora discutimos a possibilidade de haver ensino sem aprendizagem. Discutamos agora a questão inversa: pode haver aprendizagem sem ensino?

4. Pode Haver Aprendizagem sem que Haja Ensino?

A resposta a essa pergunta parece ser bem mais fácil do que a resposta à questão anterior. Parece óbvio que pode haver aprendizagem sem ensino. Atrás já aludimos ao fato de que é possível que, durante uma aula ou exposição, alguém aprenda coisas que o professor não está querendo lhe ensinar (isto é, coisas que o professor não tem a intenção de que ele venha a aprender), como, por exemplo, que o assunto da exposição é terrivelmente maçante. Este seria um exemplo de aprendizagem sem ensino. Acabamos de sugerir que o chamado auto-didata é, na realidade, um auto-aprendiz, alguém que aprende um certo conteúdo sozinho, e não alguém que o ensina a si mesmo. Sugerimos, também, que não é muito correto dizer que a natureza e a vida ensinam. Nestes casos, também, parece ser muito mais correto dizer que certas pessoas aprendem determinadas coisas por si próprias. Estes seriam exemplos de aprendizagem sem ensino. Parece claro, portanto, que pode haver aprendizagem sem ensino.

Mas consideremos a posição de alguém que argumente da seguinte maneira (11). Concordo não ser muito correto dizer que a natureza e a vida ensinem coisas às pessoas; é muito mais correto dizer que as pessoas aprendem sozinhas -- se bem que através de seu contacto com a natureza ou através de sua experiência da vida. Mas -- continua o argumento -- esta situação não é diferente da do aluno na sala de aula: o aluno, na sala de aula, também aprende, na realidade, sozinho -- se bem que, muitas vezes, através de seu contacto com o professor. A sua aprendizagem, prossegue o argumentante, não é o produto, ou o resultado, ou a conseqüência do ensino do professor: há muitos fatores que incidem sobre ela, como, por exemplo, a motivação do aluno, suas condições de saúde e alimentação, o clima sócio-emocional na sala de aula, as condições do meio ambiente (a temperatura da sala, etc.), e assim por diante. Um dos fatores mais importantes a incidir sobre a aprendizagem é a experiência anterior do aluno com conteúdos semelhantes aos que agora se pretende que ele aprenda, a bagagem de experiência e conhecimento que ele traz consigo. É somente na medida em que estes fatores incidem de maneira favorável sobre o aluno que ele vem a aprender, continua o argumentante, e conclui: A aprendizagem do aluno é sempre uma auto-aprendizagem: se ele está doente, ou sub-nutrido, ou não tem motivação, ele não aprende, por melhor que seja o professor. Ao professor cabe, portanto, simplesmente facilitar a aprendizagem, remover os obstáculos a ela, criar-lhe condições propícias. A aprendizagem, porém, é sempre um ato do aluno e nunca a conseqüência de um ato do professor, a saber, do ato de ensinar. Toda aprendizagem, portanto, diz o slogan, é auto-aprendizagem. Aqui termina o argumento.

Várias observações podem ser feitas aos que assim argumentam. Em primeiro lugar, os que assumem essa posição respondem afirmativamente à pergunta: Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? É verdade que vão mais longe, afirmando que a aprendizagem, em hipótese alguma, pode ser entendida como uma conseqüência do ensino. Em segundo lugar, precisa ser dito que grande parte das afirmações feitas pelos que defendem essa posição é perfeitamente aceitável -- por exemplo, o que se diz acerca dos vários fatores que incidem sobre a aprendizagem. É este fato que faz com que a posição em pauta pareça ter uma certa plausibilidade inicial. O que precisa ser esclarecido -- e esta é uma terceira observação -- é o papel do ensino, e, conseqüentemente, do professor, no processo de aprendizagem.

Estamos entrando, aqui, porém, em uma área perigosa para o filósofo, pois esta última questão parece levantar um problema de natureza empírica acerca do qual somente um psicólogo poderia nos dar informações. Um filósofo que se preocupa essencialmente com questões conceituais faria bem, poderia parecer, em não se intrometer nesta área. Para esclarecer nosso objetivo, portanto, é necessário que indiquemos claramente em que sentido um filósofo pode contribuir para a solução desse problema. Vimos atrás que o conceito de ensino inclui uma referência ao conceito de aprendizagem (mais precisamente, faz referência à intenção de produzir a aprendizagem). O que queremos examinar aqui é se o conceito de aprendizagem exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como o produto, o resultado, ou a conseqüência do ensino, pelo menos em alguns casos. Já admitimos a possibilidade de que a aprendizagem ocorra sem ensino. Queremos, agora, examinar a suposta impossibilidade de que ela aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou conseqüência deste (12). Se esta impossibilidade for real, isto é, se o conceito de aprendizagem logicamente exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como (em alguns casos) uma decorrência do ensino, então o ensino, como uma atividade que é desenvolvida com a intenção de que dela resulta a aprendizagem, é um empreendimento fútil. Não caberá mais ao professor ensinar -- restar-lhe-á apenas a tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem (como falta de motivação, desnutrição, etc.) e de procurar encontrar maneiras de remover esses obstáculos e empecilhos, tornando-se, portanto, caso venha a ser bem sucedido, um facilitador da aprendizagem. Diga-se de passagem que essa tarefa não é pequena, nem fácil, e muito menos indigna. Todo professor sensível se dedica a ela. Acontece, porém, que muitos professores acreditam que, além da tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem e de procurar encontrar maneiras de removê-los, cabe-lhes a tarefa de ensinar, ou seja, de desenvolver certos tipos de atividade que deverão resultar na aprendizagem, por parte dos alunos, de certos conteúdos. Ora, essa tarefa só é realizável se a impossibilidade a que nos referimos não for real.

Para elucidar essas questões que, embora conceituais, têm muitas implicações práticas, é necessário levar em conta o que psicólogos afirmam acerca da natureza da aprendizagem. Mas nossa investigação não é equivalente a uma investigação psicológica, de natureza empírica.

Há um certo sentido em que é verdade que toda aprendizagem á auto-aprendizagem, que é o seguinte: ninguém pode aprender por mim. Se eu quero vir a saber (ou dominar) um certo conteúdo, sou eu e ninguém mais que tenho que aprender esse conteúdo. Alguém pode me explicar em detalhe o conteúdo a ser aprendido, pode discuti-lo comigo, esclarecer minhas dúvidas, estabelecer paralelos entre esse conteúdo e outros que já conheço (ou domino), etc., mas a aprendizagem, em última instância, é minha. Sou eu que tenho que assimilar, compreender, dominar o que deve ser aprendido. Se é só isso que se quer dizer quando se afirma que toda aprendizagem é auto-aprendizagem, então o slogan é perfeitamente aceitável.

Mas muita gente quer dizer mais com o slogan. Quer dizer que o professor não deve interferir no processo de aprendizagem do aluno (a não ser para remover obstáculos a essa aprendizagem) e que este deve descobrir por si só aquilo que deve aprender. O melhor que o professor pode fazer, em uma linha de ação positiva, talvez seja criar condições propícias para que o aluno descubra, ele próprio, o conteúdo a ser aprendido. Interpretado dessa maneira, o slogan já não nos parece tão aceitável. Em primeiro lugar, essa aprendizagem por descoberta parece inteiramente apropriada em contextos nos quais a pessoa está aprendendo sozinha, sem o auxílio do professor, ou em contextos nos quais aquilo que deve ser aprendido ainda não foi descoberto por ninguém, sendo, portanto, desconhecido. Em segundo lugar, não nos parece que jamais tenha sido provado que, no que diz respeito a conteúdos já conhecidos, já descobertos por alguém, a melhor maneira de aprender esses conteúdos seja trilhar o caminho seguido por quem originalmente os descobriu. Em outras palavras, parece ser bem possível, por exemplo, que a melhor maneira de aprender um dado conteúdo já conhecido seja seguir o caminho inverso daquele percorrido por quem descobriu esse conteúdo (reverse engineering). Ou algum outro caminho, talvez. Essas questões precisam ser investigadas empiricamente. Não há garantias conceituais para a suposição de que no caso de verdades já conhecidas -- estamos falando agora de conteúdos cognitivos -- a melhor maneira de aprendê-los seja redescobri-las. Por um lado, o processo de descobrimento (ou redescobrimento) é altamente demorado, e muitas vezes não é bem sucedido. Por outro lado, não há a menor garantia de que, se cada geração precisar redescobrir as verdades já descobertas por prévias gerações, se vá chegar muito além do ponto ao qual as gerações prévias chegaram. Isto nos mostra que, em relação a certos conteúdos, é bem possível que a melhor maneira de ocasionar uma aprendizagem rápida e fácil seja através do ensino.

Ora, se isto é possível -- note-se que não estamos dizendo que seja o caso -- então não é (logicamente) impossível que a aprendizagem aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou conseqüência do ato de ensinar.

III. Educação, Ensino e Aprendizagem

Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação? Para respondermos a essas perguntas é necessário que investiguemos o conceito de educação.

Uma investigação exaustiva, que descreva e analise os vários conceitos de educação existentes em nossa cultura, ou em outras culturas, distantes de nós no tempo ou no espaço, não é possível dentro do escopo do presente trabalho. Os conceitos são tantos, e tão variados, que somente poderíamos discuti-los com algum proveito dentro de um livro dedicado especialmente ao assunto. A alternativa que nos resta é a de propor uma caracterização do conceito de educação que seja suficientemente ampla, que faça sentido e seja justificável. A partir dessa caracterização tentaremos responder às perguntas formuladas no parágrafo anterior, bem como às suas correlatas: Pode haver educação sem que haja ensino? Pode haver educação sem que haja aprendizagem?

1. O Conceito de Educação

Entendemos por "educação" o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos.

Vamos esclarecer o sentido dos principais termos dessa proposta de definição, pois sem esse esclarecimento a proposta fica muito vaga (13).

Conteúdos: Como vimos na seção anterior, o termo "conteúdo" tem sentido bastante amplo, podendo designar coisas as mais variadas. Quando falamos em conteúdos, no contexto educacional, temos em mente não só conteúdos estritamente intelectuais ou cognitivos, mas todo e qualquer tipo de habilidade, cognitiva ou não, atitudes, etc. Note-se, porém, que na nossa proposta de definição o termo "conteúdos" está qualificado (falamos em "certos conteúdos considerados valiosos"), fato que já é indicativo de uma certa restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional. Mas falaremos sobre isto mais adiante. Aqui é suficiente indicar que quando falamos de conteúdos estamos nos referindo a coisas tão diferentes umas das outras como geometria euclideana, teoria da relatividade, habilidade de extrair a raiz quadrada ou calcular a área do círculo, habilidade de amarrar os sapatos, de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, atitude positiva para com a vida, a morte, para com os outros, etc.

Adquirir domínio: Estamos usando a expressão "adquirir domínio" como basicamente equivalente ao termo "aprender". Adquirir domínio de um dado conteúdo é, portanto, aprendê-lo, no sentido mais amplo do termo. Neste sentido, alguém adquiriu domínio da habilidade de calcular a área de um círculo quando aprendeu e é capaz de ("sabe") calcular a área de qualquer círculo que lhe seja apresentado.

Adquirir compreensão: Em nossa proposta de definição dissemos que a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos. Nossa intenção ao acrescentar "e compreensão" não foi a de simplesmente dar maior ênfase. Cremos que algo diferente e muito importante foi acrescentado à definição com a inclusão dessas duas palavras. Para que um processo seja caracterizado como educacional não basta que através dele indivíduos venham a dominar certos conteúdos: é necessário que esse domínio envolva uma compreensão dos conteúdos em questão. Uma coisa é saber que a fórmula para calcular a área de um círculo é P r2 e mesmo ser capaz de aplicá-la. Outra coisa é compreender porque é que se utiliza essa fórmula para calcular a área de um círculo. Uma coisa é saber que não se deve tirar a vida de uma outra pessoa. Outra coisa é compreender porque é que não se deve fazer isso. Uma coisa é assimilar, pura e simplesmente, os valores de uma dada cultura. Outra coisa é aceitá-los, criteriosamente, após exame que leve à compreensão de sua razão de ser. Quando falamos em educação não estamos falando simplesmente em socialização ou aculturação, por exemplo. O processo de assimilação de normas sociais e de valores culturais pode ou não ser educacional: se essas normas e esses valores são simplesmente incorporados pelo indivíduo, ou inculcados nele, sem que ele compreenda sua razão de ser, o processo é de mera socialização ou aculturação, não havendo educação. Para que haja educação é necessário que o indivíduo, além de dominar certos conteúdos, que no caso são normas sociais e valores culturais, venha a compreendê-los, venha a entender sua razão de ser, venha a aceitá-los somente após investigação criteriosa que abranja não só as normas e os valores em questão, mas também possíveis alternativas.

Conteúdos considerados valiosos: Esta expressão talvez seja a mais problemática na proposta de definição feita por nós. O domínio, mesmo com compreensão, de certos conteúdos não é parte integrante de um processo educacional se os conteúdos em questão são considerados perniciosos ou sem valor algum. O domínio da habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos. O valor dessa habilidade é considerado virtualmente nulo. O desenvolvimento de uma atitude positiva, de aceitação, de relações sexuais entre irmãos também não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos, pois essa atitude é vista como perniciosa. Há, portanto, uma importante restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional, como mencionamos atrás, e essa restrição diz respeito ao valor que se atribui a esses conteúdos, em determinados contextos. Essa introdução de um elemento valorativo na definição de educação limita os conteúdos que podem ser parte integrante do processo educacional. Ao mesmo tempo que faz isso, essa referência ao valor dos conteúdos coloca a educação dentro da problemática maior do chamado relativismo, pois o que é tido como valioso em uma dada cultura pode não ser assim considerado em outra, e vice-versa. Foi por isso que tivemos o cuidado de dizer "conteúdos considerados valiosos", e não simplesmente "conteúdos valiosos", pois ao optar pela segunda possibilidade estaríamos nos comprometendo com um dos lados de uma controvérsia que está longe de ser resolvida. É perfeitamente concebível que a habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face seja considerada valiosa em algumas culturas, como é claramente possível que o desenvolvimento de uma atitude positiva para com o incesto entre irmãos seja considerado valioso em outras culturas. Se isso é verdade, então o domínio daquela habilidade e o desenvolvimento desta atitude seriam parte integrante do processo educacional nessas culturas, do mesmo modo que não o são na nossa. É possível, para citar outro exemplo, que o desenvolvimento de uma atitude crítica para com as opiniões de outras pessoas, incluindo-se aí os mais velhos, ou aqueles em posição de autoridade, seja considerado algo indesejável em algumas culturas e algo altamente valioso em outras. Se este for o caso, o desenvolvimento dessa atitude não será parte integrante do processo educacional nas primeiras culturas e o será nas outras. E assim por diante. Não nos compete aqui discutir a questão da objetividade ou não dos valores, embora este seja um tópico fascinante. Também não entraremos na complicada questão que é colocada pela coexistência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura (concebendo-se o termo "cultura" aqui em um sentido bastante amplo): em caso de conflito, deverão ter prioridade e prevalecer os valores de quem? Os dos pais do educando? Os dos professores? Os dos governantes? Os da igreja? Ou os do próprio educando?

Tendo em mente essa caracterização do conceito de educação, retomemos as perguntas formulados no início desta seção: Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação?

2. Pode Haver Ensino e Aprendizagem sem que Haja Educação?

Parece óbvio que, se a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos, naturalmente pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação, ou seja, ensino e aprendizagem não-educacionais. Basta que as condições estipuladas na caracterização do conceito de educação não sejam cumpridas, para que o ensino e a aprendizagem deixem de cumprir função educacional.

Já observamos atrás que o domínio de habilidades às quais não se atribui valor, ou o desenvolvimento de atitudes consideradas perniciosas, em um dado contexto, não são partes integrantes do processo educacional, dentro daquele contexto. Em uma cultura semelhante à nossa, por exemplo, o fato de um indivíduo aprender a mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, ou de desenvolver um atitude de aceitação ou tolerância para com relações sexuais entre irmãos, não é visto como uma contribuição para o seu processo educacional. Conseqüentemente, se alguém ensina a uma outra pessoa aquela habilidade ou esta atitude, esse ensino estará se realizando fora do contexto educacional, pois esses conteúdos não são considerados valiosos em nossa cultura. Igualmente, ensinar a alguém a arte (ou técnica) de arrombar cofres fortes, ou de bater carteiras, ou de mentir com perfeição, não é contribuir para sua educação, em um contexto cultural em que esses conteúdos não são considerados valiosos, como, queremos crer, seja aquele em que vivemos.

Pode haver, portanto, ensino e aprendizagem sem que haja educação, quando os conteúdos ensinados e aprendidos não são considerados valiosos.

Contudo, mesmo o ensino e a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos podem ser não-educacionais se, por exemplo, levam ao domínio sem compreensão (no sentido ilustrado) desses conteúdos. Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso, foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). O chamado condicionamento, na medida em que produz um certo tipo de comportamento que não é acompanhado de compreensão, não pode ter lugar dentro de um processo educacional.

Quer nos parecer, pois, que não resta a menor dúvida de que o ensino e a aprendizagem podem ser não-educacionais, ou porque os conteúdos ensinados e/ou aprendidos não são considerados valiosos ou porque levam ao domínio sem compreensão. É por isso que se pode criticar o ensino que insiste na mera memorização ou a aprendizagem puramente mecânica, automática, não-significativa. O ensino e a aprendizagem, nesses casos, não estão contribuindo para a educação do indivíduo, mesmo que os conteúdos ensinados e aprendidos sejam considerados valiosos, porque não estão levando o indivíduo a compreender esses conteúdos.

Da mesma maneira, perece-nos bastante impróprio falar em educação de animais, por exemplo, embora não reste dúvida de que animais possam aprender, freqüentemente em decorrência de atividades de ensino. Muitos animais são perfeitamente capazes de dominar habilidades às vezes bastante complexas. É difícil imaginar, porém, que esse domínio seja acompanhado de compreensão (no sentido visto). Não o sendo, é impróprio afirmar que foram educados: parece ser bem mais correto dizer que foram meramente treinados, ou talvez, condicionados.

De igual maneira, o ensino e a aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, conseqüentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, de enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação. Devemos ressaltar, para evitar mal-entendidos, que ensinar que um dado enunciado, ou conjunto de enunciados, é falso ou não-evidenciado é afirmar algo verdadeiro, se os enunciados em questão forem realmente falsos ou não-evidenciados, e se constitui, portanto, em uma atividade que pode, legitimamente, ser parte integrante do processo educacional. O que não pode ser visto como educacional é o ensino (e a aprendizagem) de enunciados falsos ou não-evidenciados como sendo verdadeiros ou evidenciados.

3. Um Parêntese

A esta altura vários problemas muito interessantes poderiam ser levantados, como elemento para futuras reflexões.

Primeiro: Ensinar (em geral, incluindo-se ensinar em contextos não-educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam um dado conteúdo x. Ensinar (em contextos, agora, estritamente educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam e compreendam um dado conteúdo x. Não há garantias de que as atividades desenvolvidas no ensino não-educacional e no ensino educacional de um mesmo conteúdo x sejam, necessariamente, as mesmas -- muito pelo contrário.

Segundo: Ensinar, como visto, é sempre ensinar um certo conteúdo. Mas é perfeitamente possível que o conteúdo a ser ensinado, em um dado momento, seja o próprio ato de ensinar, ou a própria arte (ou habilidade) de ensinar. Neste caso, o próprio ensino seria o conteúdo do ensino.

Terceiro: O ensino que leva à aprendizagem sem compreensão e a aprendizagem não acompanhada de compreensão são, como acabamos de ver, não-educacionais. O elemento que os torna educacionais é a compreensão. A seguinte pergunta, portanto, é bastante importante e pertinente: É possível ensinar a compreensão como conteúdo, isto é, ensinar aos alunos a arte ou habilidade de compreender qualquer conteúdo que estejam aprendendo, ou tenham aprendido, ou que venham a aprender? Queremos crer que sim, embora este não seja o lugar de justificar esta resposta. Quer nos parecer, porém, que aqueles que afirmam que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam a pensar estejam, na realidade, querendo dizer que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam certos conteúdos com compreensão, de maneira crítica, etc., e não de modo puramente mecânico, não significativo.

Quarto: Quando o conteúdo do ensino é o próprio ensino (a arte ou habilidade de ensinar), também este conteúdo pode ser ensinado de maneira não-educacional e de maneira educacional, isto é, com a intenção de que os alunos meramente o dominem ou com a intenção de que os alunos o dominem e compreendam. Quer nos parecer que quem aprende ou domina com compreensão este conteúdo (a arte ou habilidade de ensinar) terá melhores condições, caso venha, eventualmente, a ensinar outros conteúdos, de fazê-lo de maneira educacional, isto é, de modo que seus alunos venham a aprender e compreender esses outros conteúdos.

Quinto: Quem aprende com compreensão um conteúdo qualquer (diferente do ato ou da habilidade de ensinar) geralmente tem melhores condições de ensinar aquele conteúdo, ou mesmo de ensinar a ensinar aquele conteúdo, do que alguém que só se preocupa com ensinar o ato ou a habilidade de ensinar (em geral). (parágrafo acrescentado).

Todas essas questões são altamente complexas, mas muito interessantes, merecendo estudo e reflexão. Dadas as limitações de tempo e espaço, não podemos investigá-las mais detalhadamente no presente trabalho. Somos da opinião de que o esquema conceitual aqui apresentado, além de permitir que essas questões sejam levantadas, sugere algumas maneiras de abordá-las, que poderão ser desenvolvidas em outros trabalhos.

4. Pode Haver Educação sem que Haja Ensino e Aprendizagem?

Acabamos de ver, pois, que pode haver ensino e aprendizagem que não são educacionais. Pode haver educação, porém, sem que haja ensino e sem que haja aprendizagem? Vamos discutir esta questão em partes, examinando, primeiro, se pode haver educação sem que haja aprendizagem, e, segundo, se pode haver educação sem que haja ensino.

Nossa proposta de definição de educação e nossa caracterização do termo "aprendizagem" nos mostram que há um vínculo conceitual entre educação e aprendizagem. Todo processo educacional implica, por definição, a aprendizagem de algum conteúdo, ou seja, envolve, necessariamente, alguma forma de aprendizagem. Habilidades que decorrem de processos puramente fisiológicos ou de amadurecimento não podem ser parte integrante do processo educacional porque não envolvem domínio, aprendizagem. A capacidade de fazer com que os intestinos funcionem, por exemplo, e a capacidades de gerar filhos, não são aprendidas: são decorrentes de processos puramente fisiológicos e de amadurecimento. Conseqüentemente, o seu desenvolvimento não pode ser visto como parte integrante do processo de educação de uma criança ou de um jovem. A habilidade de controlar os intestinos e de manter sob controle a capacidade reprodutora, de modo a permitir que esta se manifeste apenas em certas situações e sob certas condições, é, porém, decorrente de um processo de aprendizagem, e, conseqüentemente, o seu desenvolvimento pode se constituir em um dos objetivos específicos do processo de educação de indivíduos.

Não nos parece fazer o menor sentido dizer que um certo tipo de atividade contribui para a educação de um indivíduo se, em decorrência dessa atividade, o indivíduo nada vai aprender. A educação é o processo através do qual indivíduos aprendem e compreendem certos conteúdos considerados valiosos. Não é possível, pois, que haja educação sem que haja aprendizagem.

A situação é diferente no que diz respeito à relação entre ensino e educação. Vimos, atrás, que pode haver aprendizagem sem que haja ensino. A educação está conceitualmente vinculada à aprendizagem, e esta pode ocorrer sem que haja ensino. Deste argumento não decorre, porém, aparências ao contrário, que a educação possa ocorrer sem que haja ensino, pois não é o caso que, necessariamente, toda aprendizagem seja conceitualmente ligada à educação, sendo possível que apenas seja ligada à educação a aprendizagem decorrente do ensino. Contudo, prima facie não há razão para negar que esteja se educando o indivíduo que aprende por si próprio (o auto-aprendiz), e vem a compreender (no sentido dado ao termo por nós), conteúdos considerados valiosos. A menos, portanto, que se apresente um argumento convincente para mostrar que a educação não pode ocorrer sem o ensino, devemos concluir que possa.

É bem possível, porém, como ressaltamos na seção anterior, que a aprendizagem de certos tipos de conteúdo se realize mais fácil e rapidamente através do ensino. Se este realmente for o caso -- e, como dissemos, não nos parece que o contrário tenha sido jamais provado -- então a educação pode e deve se utilizar do ensino. Mas não há, neste caso, um vínculo conceitual entre educação e ensino, como acontece no caso de educação e aprendizagem. No caso de educação e ensino o vínculo é puramente acidental. Desde que o ensino pode ser uma das maneiras de alguém chegar à aprendizagem de certos conteúdos, podendo mesmo ser, no caso de alguns conteúdos, a maneira mais eficiente, a educação pode se utilizar do ensino. Mas não é necessário, do ponto de vista lógico, que o faça. Conseqüentemente, pode haver educação sem que haja ensino.

IV. Educação Formal e Informal e a Questão dos Objetivos da Educação

Antes de passarmos à discussão do conceito de doutrinação, parece-nos oportuno acrescentar alguns comentários adicionais sobre o conceito de educação.

1. Educação Formal e Educação Informal

O primeiro comentário diz respeito à distinção entre educação formal e educação informal. Há, pelo menos, duas maneiras de entender essa distinção. De um lado, pode-se afirmar que educação formal é aquela ministrada em instituições especialmente criadas e organizadas com o objetivo de educar, a saber, escolas, e que educação informal é aquela que se realiza através de outras instituições, cuja finalidade precípua e principal talvez não seja a de educar, a saber, o lar, a igreja, a empresa, centros comunitários, etc. Não resta a menor dúvida de que pessoas educam-se, e são educadas, sem jamais freqüentar uma escola. Neste sentido, a chamada "educação sem escolas" não só sempre foi possível como sempre ocorreu e ainda ocorre em larga escala, e o apelo no sentido de que a educação, hoje em dia, se torne mais informal seria uma convocação de outras instituições (além da escola) a um maior envolvimento com o processo educacional, muitas vezes relegado, nos dias atuais, por razões várias, quase que exclusivamente à escola.

Acontece, porém, que a educação informal, neste sentido do termo, freqüentemente é bastante "formal" (em um sentido um pouco diferente do termo), ocorrendo de maneira bastante semelhante à utilizada nas escolas. Igrejas criam "Escolas Dominicais", "Classes de Catecismo", etc., as empresas e centros comunitários oferecem e ministram "Cursos", etc., onde há professores, alunos, ensino, salas de aula, em uma réplica quase perfeita do que acontece na escola propriamente dita. Nesses casos, a aprendizagem é promovida principalmente através do ensino, o qual, muitas vezes, assume feições altamente tradicionais. Neste sentido dos termos, portanto, não há muito que distinga educação formal de educação informal, além do fato de que a primeira ocorre em instituições criadas com a finalidade quase única de educar e a segunda em instituições que têm outros objetivos além do objetivo de educar, objetivos esses que se sobrepõem às suas tarefas educacionais.

Passemos, pois, à segunda maneira de entender a distinção entre educação formal e educação informal. Vimos, há alguns parágrafos, que a educação, embora implique, necessariamente, a aprendizagem, não implica, com igual necessidade, o ensino. Como o ensino é, segundo nossa análise, uma atividade intencional, a educação que se realiza através de atividades de ensino também é intencional, seja ela realizada na escola ou em outras instituições. Acabamos de mencionar o fato de que essas instituições não-escolares que se ocupam da educação muitas vezes o fazem de modo a imitar o que acontece na escola. Isto nos sugere uma outra maneira de entender a distinção em questão. Educação formal seria aquela que se realiza através de atividades de ensino, e que se caracteriza, portanto, por ser intencional, ou melhor ainda, por ter a intenção de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos. Educação informal, do outro lado, seria aquela que se realiza não-intencionalmente (ou, pelo menos, sem a intenção de educar), quando, em decorrência de atividades ou processos desenvolvidos sem a intenção de produzir a aprendizagem de algum conteúdo considerado valioso, pessoas vêm a aprender e compreender certos conteúdos considerados valiosos -- às vezes considerados de altíssimo valor. Essas atividades e esses processos podem ocorrer fora da escola, em outras instituições, ou de maneira inteiramente não institucionalizada, como também pode ocorrer dentro da própria escola. Em decorrência do modo pelo qual uma escola é organizada e administrada, ou da maneira pela qual professores e funcionários se comportam em relação uns aos outros e aos alunos, pessoas podem vir a aprender e compreender conteúdos considerados de grande valor, sem que houvesse, a qualquer momento, a intenção de que alguém aprendesse alguma coisa em conseqüência disto (o que não quer dizer que a forma de organização e administração da escola, ou o comportamento de seus professores e funcionários, seja não-intencional; freqüentemente é intencional, mas a intenção não é a de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos). Freqüentemente, o exemplo de um professor é mais educacional do que os conteúdos que ele ensina, pois seus alunos podem aprender mais conteúdos valiosos (ou conteúdos mais valiosos) em decorrência da observação de suas atitudes e de seu comportamento do que em conseqüência de seu ensino. E embora o professor possa se comportar de uma ou outra maneira com a intenção de que seus alunos aprendam algo valioso em função de seu comportamento, o professor, freqüentemente, não tem esta intenção ao se comportar como o faz (o que, novamente, não quer dizer que seu comportamento não é intencional; pode sê-lo, mas em função de outras intenções). Pais freqüentemente procurar educar seus filhos, e grande parte das vezes tentam fazê-lo através do ensino (via de regra verbal). As atitudes, o comportamento dos pais, porém, podem ensejar a aprendizagem e compreensão de conteúdos muito valiosos, principalmente na área da moralidade, sem que os pais tenham a intenção de que seus filhos aprendam alguma coisa em decorrência da maneira pela qual se comportam. E assim por diante.

Cremos que, com esses exemplos, tenha ficado claro o segundo modo de entender a distinção entre edução formal e educação informal.

2. A Questão dos Objetivos Educacionais

O segundo comentário que gostaríamos de fazer se relaciona com algumas das questões que levantamos, ao final da primeira seção, acerca das relações que porventura possam existir entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e profissionalização, etc. No início da presente seção, quando procuramos caracterizar o conceito de educação, afirmamos que iríamos propor uma conceituação de educação que fosse suficientemente ampla. Com esta expressão quisemos dizer que uma conceituação de educação, para ser viável, deveria ser suficientemente ampla para permitir que conceitos de educação mais específicos, que enfatizassem aspectos diferentes do processo educacional, pudessem encontrar guarida debaixo dessa conceituação mais ampla. Vejamos como isto pode acontecer.

Nossa conceituação de educação é, basicamente, uma conceituação formal. Com isto queremos dizer que qualquer visão substantiva da educação, que se preocupe em definir objetivos educacionais em um sentido mais específico -- poderíamos dizer que o objetivo educacional mais geral está contido na conceituação de educação, a saber, fazer com que indivíduos adquiram domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos -- cabe, muito bem, debaixo de nossa conceituação.

A. Educação Humanística e Educação Técnico-Profissionalizante

Analisemos, por exemplo, de início, a questão da chamada educação humanística versus a chamada educação técnico-profissionalizante. Certamente nesta questão tem havido radicais de ambos os lados.

De um lado há aqueles que enfatizam a conexão entre educação e conhecimento, concebendo a noção de conhecimento de modo a incluir nela quase que tão somente os pontos de vista e temas que, de certa maneira, sobreviveram o teste de durabilidade e que, portanto, se mostraram "perenes" -- há uma escola de teoria educacional chamada "perenialismo" -- e de modo a excluir da noção de conhecimento, e, conseqüentemente, de sua visão da educação, tudo aquilo que se refere mais diretamente ao preparo para o exercício de uma profissão técnica. Este preparo é considerado como mero treinamento ou adestramento em certas técnicas e habilidades e não deveria merecer o honroso privilégio de ser considerado parte integrante do processo educacional, sendo batizado com vários nomes diferentes, como "processo de qualificação de mão-de-obra especializada", "processo de formação de recursos humanos para as áreas técnicas", etc.

Do outro lado há aqueles, freqüentemente não menos radicais, que enfatizam a conexão entre educação e vida, concebendo a noção de vida de modo a realçar suas ligações com o trabalho, e a deixar de lado suas ligações com o lazer. Educar, afirmam, é preparar para a vida, para o exercício de uma profissão. Tudo o mais é "ornamento", "adorno", "perfumaria", menos educação. Dentre os que assumem esta posição há os que enfatizam o trabalho como forma de auto-realização individual, há os que procuram realçar o papel do trabalho como fator de desenvolvimento econômico, etc. Concordam, porém, em que o objetivo educacional básico é a preparação do indivíduo para a vida ativa do trabalho. (De certa maneira, as velhas discussões medievais acerca das vantagens e desvantagens da vida contemplativa e da vida ativa se repetem, com outras roupagens).

Não vamos tentar resolver essa controvérsia. Somente vamos procurar situá-la dentro de nossa conceituação de educação. Ao conceituar a educação, e ao explicitar aquela conceituação, observamos que os conteúdos (no sentido visto) que podem ser parte integrante do processo educacional são conteúdos considerados valiosos dentro de um dado contexto sócio-cultural. Mencionamos, também, sem discutir o fato, que se considerarmos o termo "cultura" em um sentido amplo (como quando se fala em "cultura brasileira"), valores conflitantes podem co-existir dentro de uma mesma cultura. Imaginemos, agora, para efeito de argumentação, uma cultura cujos valores sejam bastante coerentes, na qual o trabalho, seja como forma de realização pessoal, seja como fator básico de desenvolvimento econômico, seja o valor preponderante. Nesta cultura, a preparação para o trabalho, a formação profissional, será, quer nos parecer, o elemento predominante no processo educacional, outros ingredientes que possam não parecer diretamente profissionalizantes só sendo permitidos, dentro do processo educacional, na medida em que, mesmo de maneira indireta, venham a contribuir para o bom desempenho profissional. Estamos, sem dúvida, simplificando as coisas aqui, não fazendo várias distinções básicas e deixando de lado os aspectos complexos que envolvem processos educacionais concretos (e não imaginários), apenas para esclarecer alguns aspectos da questão e mostrar a abrangência de nossa conceituação de educação. Em um contexto sócio-econômico como o que acabamos de imaginar, ninguém, mesmo que não concorde com a hierarquia de valores predominante naquele contexto, pode condenar a educação por ser estritamente profissionalizante: ela estará se ocupando dos conteúdos considerados valiosos naquele contexto. Se nossos valores não coincidem com os dessa cultura que imaginamos, devemos criticar e combater os valores dessa cultura, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los. Em uma cultura cujos valores sejam diametricamente opostos aos da cultura que acabamos de imaginar, o processo educacional terá conteúdos basicamente diferentes no que diz respeito ao seu teor, mas ainda assim conteúdos considerados valiosos naquele contexto.

B. Educação e Democracia

O que acabamos de dizer aplica-se, a nosso ver, mutatis mutandis, à relação entre educação e democracia. Em um contexto sócio-cultural em que a democracia é um valor básico, e o exercício da cidadania democrática é tido como algo valioso, o processo educacional vai ser visto como (pelo menos em parte) preparação para o exercício da cidadania democrática, fato que levará, sem dúvida, o sistema educacional a apresentar certas características que poderia não apresentar em outros contextos, onde diferentes fossem os valores. Naturalmente, a democracia, enquanto valor, é plenamente compatível com outros valores, e um processo educacional que prepara o indivíduo para o exercício da cidadania democrática pode também prepará-lo para o exercício de uma profissão, para a apreciação das artes, para o gozo dos momentos de lazer, etc.

Voltamos a enfatizar: se não concordamos com os valores de uma determinada cultura, devemos criticar e combater esses valores, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los.

A questão difícil que pode ser colocada, entretanto, é como mudar valores sem atuar na educação?

C. Educação e Sociedade

Isto nos traz ao nosso terceiro comentário, que está estreitamente ligado ao que acabamos de dizer, e que diz respeito ao que poderíamos chamar de relacionamento entre educação e sociedade. Observamos atrás que, se concebermos o termo "cultura" em um sentido amplo, podem co-existir, dentro de uma mesma cultura, valores conflitantes. A maior parte do mundo vive em sociedades de classes, e as várias classes sociais, freqüentemente, têm valores diferentes. Em uma sociedade pluralista, onde valores se chocam, onde os conteúdos considerados valiosos por uns e por outros não se identificam, que foram deverá tomar o sistema educacional?

Uma solução que se tem dado a este problema é o da criação de vários sub-sistemas educacionais, cada um deles enfatizando um certo conjunto de valores. Esta solução pareceria democrática, pois permitiria que cada qual escolhesse o sub-sistema em que iria ingressar, ou para o qual enviaria seus filhos, dependendo de seus próprios valores e daqueles que cada um dos sub-sistemas enfatizasse. Na prática sabemos que esta solução não tem sido muito democrática. Na verdade, os que propõem um sistema educacional único (a "escola única") têm reivindicado, igualmente, a democraticidade de sua proposta e combatido a falta de democraticidade da solução que esboçamos, observando que esta solução leva, invariavelmente, à existência de um sub-sistema educacional para os "nossos filhos" e de outro(s) sub-sistema(s) para "os filhos dos outros", visto que o acesso a um e a outro sub-sistema não é, por razões predominantes econômicas, franqueado, de igual maneira, a todos.

Outra solução, mais em moda no Brasil de hoje, preconiza a existência de um sistema educacional único que gradativamente se diferencia em sub-sistemas e que permite mobilidade horizontal (entre os sub-sistemas) e vertical (entre os sub-sistemas de um nível e os de outro nível).

Não vamos entrar aqui nos méritos ou deméritos dessas soluções nem mencionar outras que têm sido propostas. Esta não é nossa intenção. Estamos simplesmente procurando ilustrar o fato de que dentro de uma mesma cultura pode haver valores conflitantes, fato este que faz com que o sistema educacional enfrente sérios problemas e dificuldades para levar em conta esta divergência e conflitância de valores, e, conseqüentemente, de conteúdos considerados valiosos e de concepções de quais devam ser os objetivos educacionais específicos a serem promovidos.

D. Educação e a Chamada "Classe Dominante"

Problema mais sério e grave é trazido à tona por aqueles que apontam ao fato de que sistemas e sub-sistemas educacionais são organizados e administrados por uma ínfima parcela da população, invariavelmente da chamada classe dominante, e refletem, em decorrência disso, os interesses e os valores dessa classe (que, porque dominante, está desejosa de manter o status quo, de perpetuar seus privilégios, e que, conseqüentemente, vê a tarefa da educação como sendo, de um lado, preparar uma elite para vir a ser os futuros "donos do poder", e, de outro lado, preparar o restante da população para se conformar com a condição de dominados) e não daqueles a quem esses sistemas e sub-sistemas se destinam. Não nos cabe aqui analisar esta questão, pois nosso propósito é mostrar que mesmo esse ponto de vista acerca da educação se enquadra dentro de nossa conceituação, pois nela, deliberadamente, não incluímos nenhuma indicação acerca de quem considera valiosos os conteúdos do processo educacional, apontando, inclusive, para o problema que surge em decorrência da co-existência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura. Deixamos, portanto, espaço para aqueles que conceituam a educação em termos do que ela é, bem como para aqueles que a conceituam em termos do que ela deve ser.

E. A Educação que é e a que deve ser

Cumpre-nos relembrar, porém, que incluímos, em nossa conceituação de educação, a exigência de que o processo, para que seja educacional, deva levar ao domínio e à compreensão de conteúdos considerados valiosos, e observamos que um processo que leva ao domínio, sem compreensão, sem crítica, sem investigação da razão de ser, de certos conteúdos, não pode ser visto como educacional. Este é um lembrete que qualifica o que dissemos no final do parágrafo anterior, porque muito embora possamos falar em educação em termos do que ela é, não devemos nos esquecer de que a educação como ela é freqüentemente não é educação, mas, sim, como veremos, doutrinação.

F. O Grande Dilema da Educação

A exigência de que um processo, para ser educacional, deva levar ao domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos coloca o processo educacional diante daquilo que consideramos sua maior dificuldade, e, por isso mesmo, seu maior desafio: de que maneira podem indivíduos vir a adquirir domínio de certos conteúdos considerados valiosos e, ao mesmo tempo, adquirir suficiente compreensão desses conteúdos de modo a assumir diante deles uma postura crítica e aberta, que os leve a um exame criterioso desses conteúdos e das alternativas a eles, exame esse de que pode, inclusive, resultar sua rejeição?

Naquela cultura que imaginamos atrás, na qual o valor preponderante era o trabalho, o desafio educacional maior seria o de encontrar uma maneira de promover a educação profissional que cumprisse o objetivo de preparar para o trabalho e para uma profissão, e, ao mesmo tempo, possibilitasse ao aluno assumir uma postura crítica diante do próprio tipo de educação que estava recebendo. O dilema educacional por excelência é, portanto, o do auto-questionamento da educação. É somente na medida em que a educação leva o indivíduo a questionar sua própria educação que está recebendo que ela está se desincumbindo de sua tarefa. Processos que levam ao mero domínio e à mera aceitação de conteúdos, mesmo daqueles unanimemente considerados valiosos, não são educacionais por não levarem os indivíduos à compreensão desses conteúdos, compreensão esta que inevitavelmente envolve o seu questionamento. É aqui que estabelecemos o contacto com a seção seguinte de nosso trabalho, onde discutiremos o problema da doutrinação.

G. Educação e o Desenvolvimento das Potencialidades do Indivíduo

Mas antes disso, em um último comentário, este acerca do ponto de vista, bastante difundido, que conceitua a educação como o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo. A dificuldade básica dessa conceituação diz respeito à noção de potencialidades. Em relação a qualquer indivíduo, quer nos parecer que seja impossível dizer, a priori, quais sejam as suas potencialidades. A noção de potencialidades, a nossa ver, quando aplicada a seres humanos, é uma daquelas noções que só têm sentido retrospectivamente. Baseando-nos naquilo que um dando indivíduo se torna, podemos afirmar que tinha potencialidade de tornar-se aquilo (pois doutra forma não se teria tornado). Só sabemos, portanto, quais as potencialidades de alguém a posteriori, depois que essas potencialidades já foram "atualizadas", isto é, depois de este alguém ter se tornado aquilo para que tinha potencialidade.

Contudo, mesmo que fosse possível descobrir a priori quais as potencialidades dos indivíduos, nada nos garante que todas as suas potencialidades devessem, igualmente, ser desenvolvidas. Pode ser que algumas potencialidades (como, possivelmente, a potencialidade para comportamento agressivo e destrutivo) não devessem ser desenvolvidas. E ao decidirmos quais potencialidades deveriam e quais não deveriam ser desenvolvidas cairíamos no domínio dos "conteúdos considerados valiosos".

Portanto, essa difundida conceituação de educação caracteriza o processo educacional como algo impossível (por não ser possível identificar a priori quais as potencialidades de alguém), ou, então, cai dentro de nossa conceituação (se se admite a possibilidade de identificar potencialidades a priori, cai-se na necessidade de discriminar entre as potencialidades que devem e as que não devem ser desenvolvidas, entre as potencialidades cujo desenvolvimento é considerado valioso e aquelas cujo desenvolvimento não é assim visto).

V. Educação e Doutrinação

Há muita controvérsia, hoje em dia, em relação ao conceito de doutrinação. Não vamos, aqui, tentar solucionar todas as disputas e divergências: vamos apenas nos situar dentro da controvérsia, apresentando e defendendo um conceito de doutrinação e mostrando como o conceito de doutrinação, por nós caracterizado, se relaciona com os conceitos de educação, ensino e aprendizagem.

Antes, algumas considerações gerais.

1. Considerações Gerais

Quando, na seção anterior, procuramos conceituar a educação, afirmamos que os conteúdos que podem ser objeto de educação são (desde que considerados valiosos) os mais amplos possíveis, não restringindo, de maneira alguma, esses conteúdos à esfera intelectual e cognitiva. Quando falamos em doutrinação, porém, parece haver uma grande limitação no tocante aos conteúdos que podem ser doutrinados, a saber: apenas crrnças, ou pontos de vista, ou convicções, ou ideologias, ou, talvez, teorias, podem ser doutrinados. Não parece fazer o menor sentido afirmar que alguém foi doutrinado, a menos que conteúdo dessa doutrinação seja alguma coisa do tipo que acabamos de mencionar. Parece-nos absurdo dizer que alguém foi doutrinado a adotar uma atitude passiva diante da violência, por exemplo, ou a tomar banho diariamente, ou qualquer coisa desse tipo. Alguém pode ter sido condicionado a adotar uma atitude passiva diante da violência, ou a banhar-se diariamente, mas condicionamento e doutrinação não são a mesma coisa. Condicionamento tem que haver com comportamento, atitudes, hábitos. Doutrinação tem que haver com crenças, pontos de vista, etc. Alguém pode, portanto, ser doutrinado na crença de que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência -- mas isto já é outra coisa: estamos lidando, agora, com crenças e não com atitudes. (Não há, por exemplo, garantias de que quem acredite que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência venha a assumir esta atitude quando confrontado com a violência: há sempre a possibilidade de que haja incoerência entre o pensamento e comportamento de uma pessoa, e já os gregos nos alertavam acerca da "akrasia", ou fraqueza da vontade).

Parece haver pouca dúvida, portanto, de que os conteúdos que podem ser doutrinados são sempre conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.), excluindo-se da esfera da doutrinação mesmo conteúdos intelectuais e cognitivos de outros tipos (como, por exemplo, habilidades intelectuais).

Uma segunda consideração geral que devemos fazer acerca do conceito de doutrinação é a de que, muito embora a educação possa ocorrer, como vimos, sem ensino, e mesmo de modo não-intencional, a doutrinação é sempre intencional, ocorrendo sempre em situações de ensino. Vimos, também, que a educação tem um vínculo conceitual com a aprendizagem -- não faz sentido dizer que houve educação se não houve nenhuma aprendizagem -- e que o ensino tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a aprendizagem. Desde que a doutrnação tem, a nosso ver, um vínculo conceitual com o ensino, a doutrinação também tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a aprendizagem.

Mas por que é que afirmamos que a doutrinação só pode ocorrer em situações de ensino? A resposta a esta pergunta nos parece óbvia e simples. Ao passo que faz bastante sentido dizer que alguém educou-se, isto é, aprendeu certos conteúdos considerados valiosos de maneira a realmente compreendê-los, não nos parece fazer o menor sentido afirmar que alguém doutrinou-se: sempre afirmamos que alguém foi doutrinado.

Isto posto, devemos abordar a seguinte questão: tendo em vista as conclusões alcançadas atrás, de que a educação pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, através do ensino, será que o único aspecto a distinguir a educação da doutrinação é que esta é um caso específico daquela? Em outras palavras, será que a doutrinação nada mais é do que a educação, quando esta ocorre através do ensino e se ocupa de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.)? A resposta a esta questão deve ser, a nosso ver, enfaticamente negativa. Mas se este é o caso, o que realmente distingue a doutrinação da educação?

Em duas ocasiões, em nossa seção anterior, aludimos, de passagem, à doutrinação. Pare melhor entendermos esse conceito, relembramos aqui essas passagens: "Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso,foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). Na segunda passagem observamos: "... O ensino e aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, conseqüentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, dse enunciados acerca dos quais a evidência, favorávle ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou accerca dos quais a ewvidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação".

O que nos sugerem estas observações feitas atrás? A primeira nos sugere que o tipo de aprendizagem associado com a doutrinação, ou que resulta da doutrinação, é o da aprendizagem não acompanhada por compreensão, da aprendizagem não-significativa, meramente passiva -- o indivíduo, no caso, meramente aceita, sem examinar e compreender sua razão de ser, certos conteúdos intelectuais e cognitivos (normas sociais e valores culturais). O que a segunda passagem nos sugere é que a intenção de quem doutrina está muito mais voltada para a aceitação dos conteúdos que ele está ensinando do que para um exame criterioso dos fundamentos epistemológicos desses conteúdos, exame este indispensável para sua compreensão. Em outras palavras, quem doutrina está muito mais interessado em que seus alunos simplesmente aceitam (acreditem em) certos pontos de vista do que em que eles venham a examinar os fundamentos desses pontos de vistra, e, conseqüentemente, a compreendê-los, no sentido visto.

É aqui que aquilo que a segunda passagem nos sugere se liga com o que a primeira nos sugeriu, a saber, que a aprendizagem que se associa com a doutrinação, diferentemente daquela que se associa com a educação, é a aprendizagem não acompanhada por compreensão, e isto em função da intenção daquele que ensina de que exatamente isto ocorra.

2. O Conceito de Doutrinação

Feitas essas colocações, estamos em condições de conceituar, mais precisamente, a doutrinação: doutrinação é o processo através do qual uma pessoa ensina a outra certos conteúdos intelectuais e cognitivos (crenças, etc.), com a intenção de que esses conteúdos sejam meramente aprendidos (isto é, aprendsidos mas não compreendidos), ou seja, com a intenção de que estes conteúdos sejam aceitos não obstante a evidência, sem um exame criterioso de seus fundamentos epistemológicos, de sua razão de ser -- em suma, sem a compreensão que é condição sine qua non da educação.

Baseando-nos neste conceituação de doutrinação, podemos agora procurar esclarecer alguns dos aspectos mais controvertidos desse conceiuto, bem como seu relacionamento com o conceito de educação.

Vamos começar com a questão do relacionamento entre educação e doutrinação.

A. Os Conteúdos como Critério de Doutrinação

Desde que, como acabamos de observar, doutrinação tem que haver apenas com conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo (crenças, etc.), vamos comparar educação e doutrinação no que dizem respeito a esses conteúdos, deixando fora de nossa análise outros conteúdos (habilidades intelectuais e cognitivas, atitudes, comportamentos, etc.) de que se ocupa a educação mas que não são objeto da doutrinação. Também deixaremos de lado, nessa comparação, a educação informal (no segundo sentido visto) para nos determos na educação que se realiza através do ensino, pois, como constatamos, a doutrinação se realiza somente através do ensino.

Tomemos, pois, como ponto de referência, um certo conteúdo intelectual e cognitivo: digamos, uma doutrina política, ou uma teoria científica. Vamos supor, para efeito de argumentação, que este conteúdo seja considerado valioso no contexto em que se realiza seu ensino (14). Se este é o caso, o conteúdo em questão pode ser ensinado de maneira educacional bem como de maneira não-educacional. Se a intenção de quem ensina é a de que os alunos aprendam e compreendam este conteúdo, o ensino estará sendo educacional. Se a intenção é a de que os alunos meramente aprendam (i.e., aceitem, acreditem em) o conteúdo em questão, o ensino está sendo não-educacional, ou, segundo nossa conceituação, doutrinacional.

B. A Intenção como Critério de Doutrinação

O que distingue a educação da doutrinação, portanto, é basicamente a intenção da pessoa que ensina, e é a intenção que se torna o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre um ensino educacional e um ensino doutrinacional. É verdade que vimos que apenas certos conteúdos podem ser doutrinados (conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo, a saber, crenças, pontos de vista, etc.). Mas isto não quer dizer que mesmo estes conteúdos não possam ser ensinados de dois modos diferentes, educacionalmente e doutrinacionalmente. Além disso, mesmo conteúdos considerados valiosso podem ser doutrinados, como veremos, sendo, talvez, exatamente quando se trata de conteúdos considerados como altamente valiosos que há o maior risco de doutrinação. Portanto, o conteúdo não é o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre educação e doutrinação. O mesmo conteúdo poderá ser ensinado de um ou de outro modo, educacionalmente ou doutrinacionalmente.

Isto quer dizer que não há conteúdos que estejam inevitavelmente fadados a serem objeto de doutrinação, como sugerem alguns, embora alguns conteúdos sejam, talvez, mais preferidos por doutrinadores do que outros. Com esta tomada de posição nos contrapomos àqueles que afirmam que em áreas coimo religião, moralidade, e política não há como evitar a doutrinação e que em áreas como a física e a astronomia não faz sentido falar-se em doutrinação, pois os que assim afirmam privilegiam o conteúdo como critério básico e fundamental de diferenciação entre educação e doutrinação. Dada nossa conceituação de educação ew doutrinação, tanto podem a religião, a moralidade e a política serem ensinadas de maneira educacional, como podem a física e a astronomia serem ensinadas de modo doutrinacional, como bem mostram algumas pesquisas recentes na área da história e sociologia da ciência.

C. Os Métodos como Critério de Doutrinação

Nem é tampouco o método de ensino, como sugerem outros, o critério básico e fundamental de diferenciação entre doutrinação e educação, embora seja de es esperar que aquele que ensina com a itenção de que seus alunos aprendam e compreendam os conteúdos ensinados e aquele que ensina coma itenção de que seus alunos meramente aceitem os conteúdos ensinados venham a se valer de métodos de ensino diferentes. O primeiro possivelmente utilizará métodos que envolvam a livre discussão de idéias, a análise séria de alternativas, e, principalmente, um exame crítico e rigoroso dos fundamentos epistemológicos do conteúdo em questão; na verdade, poderíamos afirmar que ele se preocupará muito mais em fazer que seus alunos considerem a evidência e, à luz da evidência, tirem suas próprias conclusões, do que em fazer com que seus alunos simplesmente aceitem o conteúdo: seu intuito não é persuadir seus alunos a aceitarem o conteúdo, mas levá-los a compreendê-lo, e, em função dessa compreensão, aceitá-lo ou rejeitá-lo. O segundo, mesmo que se refira à evidência, aos fundamentos epistemológicos do conteúdo em pauta, subordinará a análise da evidência à sua intenção de fazer com que os alunos aceitem o conteúdo; é de se esperar, portanto, que esta evidência, se não inteiramente suprimida, seja distorcida, que evidência contrária não seja apresentada, ou, sendo apresentada, não seja analisada com justiça e isenção de ânimos e preconceitos.

D. As Conseqüências como Critério de Doutrinação

Também não é em função das conseqüências do ensino que podemos dizer se o ensino foi educacional ou doutrinacioanl, como sugerem ainda outros, embora neste caso também seja de esperar que as conseqüências do ensino educacional e do ensino doutrinacional sejam diferentes. Em condições normais, é de se esperar que o ensino educacional resulte em aprendizagem acompanhada de compreensão, e que o ensino doutrinacional resulte na mera aceitação (sem compreensão) dos conteúdos ensinados. É de se esperar, conseqüentemente, que, em decorrência de um ensino educacional, o aluno venha a ter uma metne mais aberta e flexível, que se preocupe com a análise e o exame da evidência, condicionando sua aceitação ou não dos conteúdos ensinados a este exame da evidência, como é de se esperar, também, que em decorrência de um ensino doutrinacional, o aluno venha a ter uma mente mais fechada, uma atitude mais dogmática e menos crítica, um apego mais emocional do que evidencial às suas convicções, pois lhe foi ensinado preocupar-se mais com certas crenças, ou doutrinas, ou teorias, do que com a análise crítica, isenta de preconceitos, da evidência. É de se esperar que o aluno doutrinado acabe por assumir a seguinte atitude: "É nisto que acredito: vamos ver agora se encontro alguma evidência para fundamentar minhas crenças". Com esta atitude, é possível que suas razões para aceitar suas crenças não passem de racionalizações.

Não podemos nos esquecer, porém, de que tanto o ensino realizado de maneira educacional, quanto o realizado de maneira doutrinacional, podem ser mal sucedidos, em cujo caso as conseqüências que deles poderiam advir não seriam aquelas que, normalmente, se esperariam.

Podemos concluir, pois, que, a nível das intenções, a educação é um processo que tem por objetivo a abertura de mentes, a amplicação de horizontes, o incentivo à livre opção dos alunos, após análise e exame críticos da evidência, dos fundamentos epistemológicos, enquanto a doutrinação é um processo que tem por objetivo a transmissão e mera aceitação de crenças, etc., o fechamento de mentes, a redução de horizontes, a limitação de opções (freqüentemente a uma só), o "desprivilegiamento" da evidência em favor da crença, a persuasão e não o incentivo ao livre exame.

Aquele que ensina de maneira educacional colca-se na posição de quem, humildemente, está em incessante busca da verdade, através do estudo e do exame da evidência. O que ensina de maneira doutrinacional colca-se na posição do orgulhoso possuidor da verdade. Desde que, na busca da verdade, não se pode negligenciar nenhum aspecto da evidência que possa ser relevante, a educação é tolerante, pois mesmo as críticas e a evidência negativa -- diríamos mesmo, principalmente estas -- podem contribuir para que nos aproximemos da verdade. Na medida, porém, em que a verdade já é considerada uma possessão, não há mais porque buscá-la, porque tolerar pontos de vista alternativos e conflitantes, pois na medida em que estes divergem da "verdade" só podem ser errôneos ou falsos, e quem os propõe só pode ser ignorante ou mal-itencionado. Daí a conexão, já mostrada por muitos, entre a crença na posse da verdade e a intolerância, mesmo a repressão, de pontos de vista divergentes, que ocorre quando há doutrinação.

Poderíamos mesmo dizer, fazendo paralelo a uma importante corrente de filosofia de ciência e de filosofia política, que a educação se preocupa muito mais em dar ao indivíduo condições de não ser facilemente persuadido, de evitar o erro, a falsidade, e, assim, aproximar-se, cada vez mais, da verdade, enquanto a doutrinação se preocupa muito mais com a persuasão, com a transmissão de crenças que se supõem verdadeiras (ou, mesmo, em alguns casos piores de doutrinação, crenças em que o próprio doutrinador não acredita, mas que, por algum motivo, deseja incutir em seus alunos).

3. Observações Específicas

Isto posto, podemos fazer algumas observações específicas em relação aos aspectos mais controversos do problema da doutrinação.

A. Doutrinação de Conteúdos Verdadeiros

Em primeiro lugar, o que acabamos de ver nos permite afirmar que é inteiramente possível que haja doutrinação mesmo de conteúdos verdadeiros.

B. Doutrinação de Conteúdos Valiosos

Em segundo lugar, temos que admitir que pode haver doutrinação mesmo quando os conteúdos são considerados valiosos e todos aprovam o que está acontecendo. Na verdade, é em situações assim que a doutrinação se torna mais fácil e mais provável, pois ninguém questiona o valor e a veracidade daquilo que está sendo ensinado. É muito mais fácil doutrinar alguém na ideologia capitalista nos Estados Unidos do que em um país radicalmetne socialista, onde argumentos contra a ideologia capitalista provavelmente serão muito mais abundantes e comuns; e vice-versa.

C. Doutrinação Não Intencional?

Em terceiro lugar, devemos concluir que não há doutrinação não-intencional. A questão, porém, é mais complexa aqui. Desde que, como vimos, a intenção de alguém (que não nós mesmos) só pode ser determinada pela análise de suas ações em um dado contexto, é possível atribuir a alguém a intenção de doutrinar mesmo que esta pessoa não admita esta intenção. Também no caso de alguém que não tem conhecimento de evidência contrária àquilo que está ensinando, a situação é complexa. Podemos atribuir-lhe a intenção de doutrinar, se ele tem condições de obter acesso a esta evidência e não se preocupa em fazê-lo. Teríamos maiores reservas em atribuir-lhe esta intenção se não houvesse maneiras viáveis de ele obter acesso a esta evidência. Isto significa que professores de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo visto (crenças, etc.) correm grande risco de doutrinarem (ao inves de educarem) se não estiverem constantemente atualizados acerca dos desenvolvimentos nas áreas que ensinam. Como vimos atrás, o professor que ensina conteúdos falsos como sendo verdadeiros, ou conteúdos que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros como sendo, de fato, verdadeiros, etc., estará, muito provavelmente, doutrinando, a menos que esteja em condições tais que o acesso a esta evidência lhe seja totalmente impossível. Não importa que ele acredite que os conteúdos que ensina sejam verdadeiros. Esta é uma questão subjetiva. A questão importante é a do relacionamento entre o conteúdo e a evidência, entre os conteúdos e os seus fundamentos epistemológicos -- questão esta que, apesar das controvérsias atuais na área da epistemologia e da filosofia da ciência, nos parece ser objetiva.

D. A Doutrinação de Crianças Pequenas

Em quarto lugar, devemos abordar, ainda que brevemente, a complicada questão que se coloca em relação a crianças em tenra idade, que ainda não atingiram a chamada "idade da razão". Será que, no que diz respeito a estas crianças, só nos resta a alternativa de doutrinação, visto não serem elas capazes, segundo se crê, de compreensão, no sentido visto, de ewxame de evidência, de opção livre e consciente?

Em relação a este problema devemos distinguir (pelo menos) dois aspectos. O primeiro é que exigir que crianças pequenas se comportem de determinada maneira, ou que adotem determinadas atitudes, não é, segundo nossa caracterização, doutriná-las, porque os conteúdos aqui não são conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo passível de doutrinação (crenças, etc.), mas comportamentos e atitudes. A doutrinação poderá ocorrer no momento em que se procura fazer com que as crianças aceitem certas justificativas para o comportamento e as atitudes que lhes estão sendo exigidos. O segundo aspecto é que mesmo a crianças que ainda não atingiram a maturidade mental e intelectual necessária para compreender a razão de ser de certos comportamentos e atitudes que lhes são exigidos podem ser oferecidas as razões dessas exigências, as alternativas, etc., de maneira bastante aberta e flexível. Haverá doutrinação se a intenção for a de que as crianças aceitam estas justificativas (ou qualquer outro conteúdo do tipo passível de doutrinação) passivamente, sem discussão, a despeito de qualquer outro tipo de consideração, ou argumentação, ou evidência.

E. Doutrinação e o Dilema da Educação

Em quinto lugar, a possibilidade de doutrinação faz com que aqueles que se preocupam com a educação, de seus filhos ou de seus alunos, se confrontem com um sério dilema, semelhante ao grande desafio a que fizemos menção no final da seção anterior. Este dilema, embora possa aparecer em qualquer área, aparece mais freqüentemente naquelas áreas em que a evidência parece ser mais inconcludente mas em que, por ironia do destino, se encontram algumas das questões mais básicas e importantes com que tem que se defrontar o ser humano: a moralidade, a política, e a religião. Por um lado, acreditamos (por exemplo) ser necessário apresentar a nossos filhos e alunos o ponto de vista moral, o lado moral das coisas, para que venham a ser seres morais. Do outro lado, acreditamos que temos de evitar a doutrinação, se queremos realmente educar nossos filhos e alunos, isto é, se queremos que sejam iundivíduos livres para pensar e escolher, liberdade esta que é pré-condição para que eles venham a ser seres morais. É diante desete dilema que os educadores terão que procurar as melhores maneiras de prosseguir, sabendo, de antemão, que a tarefa é difícilima e que muitos, antes deles, optaram, ou por não procurar oferecer nenhum ensino nessas áreas, ou, então, pela doutrinação como única outra alternativa viável. [E o exemplo?] É em confronto com este dilema que muitos têm optado pela alternativa da chamada "educação negativa", que não é nem educação nem negativa, devendo, talvez, ser descrita como "não educação neutra", por pardoxal que esta expressão também pareça: afirmam que o ensino da moralidade, da política, e da religião não deve ser ministrado até que a criança atinja maturidade suficiente para analisar a evidência e tirar suas próprias conlusões. Outros têm se desesperado e concluído que a única outra alternativa, apesar dos pesares, é doutrinar -- estes são os doutrinadores contra sua própria vontade. Tanto os defensores da "educação negativa" como os que, contra a vontade, optam pela doutrinação, não vêem uma terceira alternativa, não vêem uma solução realmente educacional para o problema. Embora não afirmemos que esta solução seja fácil de alcançar, cremos que desenvolvimentos recentes, principalmente no campo da educação moral, têm nos indicado o caminho a seguir na direção de uma educação moral viável e digna do nome. Mas ainda há muito por fazer nesta área.

F. Porque a Doutrinação é Censurável e Indesejável

Em sexto e último lugar, gostaríamos de observar que, de tudo o que foi dito acerca da doutrinação, fica claro porque a doutrinação é indesejável e moralmente censurável. Quem doutrina não respeita a liberdade de pensamento e de escolha de seus alunos, procurando incutir crenças em suas mentes e não lhes dando condições de analisar e examinar a evidência, decidindo, então, por si próprios; quem doutrina desrespeita os cânones de racionalidade e objetividade, tratando questões abertas como se fossem fechadas, questões incertas como se fossem certas, enunciados falsos ou não demonstrados como verdadeiros como se fossem verdades acima de qualquer suspeita. É verdade que esta tomada de posição contra à doutrinação já implica, ao mesmo tempo, um comprometimento com certos valores e ideais básicos, como o da liberdade de pensamento e de escolha dos alunos (e de qualquer pessoa), o da racionalidade, etc. É importante que se reconheça isto para que não se incorra no erro de pensar que a adoção desses valores e ideais não precisa ser defensável, e, mais que isto, defendida, através da argumentação. Argumentos contra a adoção desses valores e ideais precisam ser cuidadosamente analisados para que, ao propor a tese da indesejabilidade e falta de apoio moral da doutrinação, não o façamos de modo a imitar os doutrinadores, isto é, tratando como fechada uma questão que é realmente aberta. Cremos não ser esta a ocasião de fazer esta defesa dos valores e ideais da liberdade de pensamento e escolha, nem da racionalidade. Mas isto não significa que estes valores e ideais não precisem ser defendidos.

Com estas observações concluímos esta seção sobre doutrinação. Cremos que a análise desse conceito, além de valiosa em si mesma, nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o que seja a educação. Uma análise mais completa deveria incluir um exame das semelhanças e diferenças existentes entre doutrinação, treinamento, condicionamento, lavagem cerebral, etc. Há importantes diferenças, bem como semelhanças, entre estes conceitos. Isto, porém, precisará ficar para um outro trabalho.

VI. Observações Finais: Filosofia da Educação e Teoria Educacional

Cremos ter dado respostas a algumas das perguntas formuladas no final de nossa primeira seção acerca do relacionamento existente entre o conceito de educação e os conceitos de ensino e aprendizagem, bem como entre educação e valores, educação e cultura, etc. Nossas respostas, reconhecidamente em forma de esboço, são, na verdade, bastante pessoais. É possível e provável que muitos discordem delas. Cremos, contudo, que elas fazem sentido, são justificáveis, e nos ajudam a "colocar a cabeça em ordem" em relação a essas noções. Dada a importância que atribuímos ao conceito de doutrinação, resolvemos dedicar a este conceito uma seção em separado, pois quer nos parecer que a análise desse conceito nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o conceito de educação.

A muitos pode parecer que o tipo de investigação que caracterizamos na primeira seção deste trabalho e ilustramos nas outras quatro, embora de alguma utilidade e de algum interesse, não seja de grande importância. Mais importante do que a tarefa "clarificatória" que a filosofia pode desenvolver, diriam, é sua tarefa "normativa", à qual ela não se deve furtar: a filosofia deve contribuir -- continuariam -- para que as grandes e pequenas decisões que diariamente precisam ser tomadas na área da educação sejam tomadas de maneira a evidenciar sabedoria, e não apenas clareza de pensamento. À filosofia da educação competiria, pois, segundo muitos, investigar a questão dos objetivos específicos da educação, propondo metas a serem atingidas e valores a serem promovidos.

Concordamos, em grande parte, com o espírito dessas observações. Achamos que clareza em nossos conceitos e acerca de nossas pressuposições básicas não é tudo, não é condição suficiente para a sabedoria de nossas decisões, dos alvos que propomos, a nós mesmos e aos outros, dos valores que adotamos e que desejamos que os outros também cultivem. Contudo, estamos certos de que esta clareza seja condição necessária para esta sabedoria. Embora alguém possa ter clareza quanto às suas concepções, sem ser sábio, ninguém consegue ser sábio sem antes adquirir clareza acerca das convicções mantidas por ele próprio e por outros.

Quer nos parecer, portanto, que a tarefa do educador, e quiça do filósofo da educação, não termine com a análise e clarificação dos conceitos educacionais básicos e das pressuposições que sustentam a atividade educacional. A tarefa clarificatória da filosofia é apenas um preâmbulo à tarefa mais normativa de examinar, questionar, e propor objetivos e valores. O filósofo, porém, não detém o monopólio destas últimas questões. No que diz respeito aos objetivos e valores que devem nortear a vida, e, conseqüentemente, o processo educacional, o filósofo, como qualquer outra pessoa, estará sempre buscando, procurando, pois na área de valores e objetivos de vida não há peritos e profissionais: cada um, em última instância, tem que escolher os seus valores básicos e os objetivos que deverão nortear sua vida. Não há como abrir mao dessa tarefa solicitando a um filósofo (ou a seja lá quem for) que faça isto por nós, sem abrirmos mão de nossa autonomia, e, em última instância, de nós mesmos.

À filosofia da educação como aqui caracterizada deve, portanto, seguir uma teoria da educação que tenha como principal tarefa o exame dos princípios básicos, objetivos, valores, etc., que prevalecem em nossa cultura e que norteiam, atualmente, a educação em nosso país, a reflexão crítica sobre eles e sobre a realidade social, econômica e cultural que envolve o processo educacional, e, se necessário for (e quase sempre o é), a proposta de novos princípios básicos, objetivos e valores para a nossa cultura e para a nossa educação. À teoria da educação compete, portanto, a tarefa normativa a que fizemos referência, e para se desincumbir desta tarefa a teoria da educação deve recorrer não só à filosofia da educação, mas também à sociologia da educação, à psicologia da educação, à economia da educação, à medicina preventiva e social, etc. -- ou, para encurtar, a qualquer ramo do saber que possa contribuir alguma coisa, nunca se esquecendo de incluir na mistura uma boa dose de bom senso.

Para muitos, o que acabamos de caracterizar como sendo a tarefa da teoria da educação nada mais é do que a real tarefa da filosofia da educação. Não temos o menor interesse em discutir rótulos, pois a discussão seria meramente acadêmica. Quer nos parecer, porém, que a bem da clareza, seja recomendável e de bom alvitre estabelecer uma distinção entre a filosofia da educação e a teoria educacional, pelas seguintes razões.

(a) A filosofia da educação, como aqui caracterizada, é uma atividade reflexiva de segunda ordem, que tem como objeto as reflexões de primeira ordem feitas sobre os vários aspectos do processo educacional; a teoria educacional é uma atividade reflexiva de primeira ordem, no nosso entender, que tem por objeto básico a realidade educacional e não reflexões que tenham sido feitas sobre esta realidade; estas reflexões servirão de subsídios ao teórico da educação para que este elabore suas próprias conclusões, mas ele tem, basicamente, que "debruçar-se sobre a realidade educacional", para entendê-la, explicá-la, criticá-la e propor sua reformulação.

(b) Na medida em que a teoria educacional tem que se valer das contribuições das várias ciências que estudam a educação, ela extrapola os domínios da filosofia e, conseqüentemente, da filosofia da educação. A filosofia da educação, como aqui concebida, deveria ser vista, como observamos, como um prolegomenon, um prâmbulo à teoria educacional, cuja tarefa principal seria fornecer ao teórico da educação os instrumentos conceituais básicos para a sua teoria.

(c) A teoria educacional, embora possa (e talvez deva) ser considerada científica, tem uma finalidade que vai além da mera explicação e interpretação da realidade educacional: ela procura orientar e guiar a prática educacional. É por isso que a teoria da educação, além de estudar e examinar a realidade educacional, tem a função de criticar esta realidade e de propor novas direções a seguir. A teoria da educação, para usar uma expressão que se torna comum, não tem como tarefa simplesmente constatar qual é a realidade educacional: ela vai além e contesta esta realidade, não em função de um espírito puramente negativista, mas em função de uma proposta de realidade diferente. E esta proposta envolve, inevitavelmente, valores diferentes. Portanto, a teoria educacional, em sua tarefa de orientar e guiar a prática educacional, envolve, necessariamente, um ingrediente de valores.

O presente trabalho, dentro de seus limites, procurou, entre outras coisas, apresentar os rudimentos de um preâmbulo à teoria educacional, fazendo, no processo, um primeiro ensaio em direção a uma demarcação entre filosofia da educação e teoria educacional.

 

Notas:

1. Dada a finalidade precípua do presente tabalho, a saber, introduzir o leitor a uma certa visão da natureza e tarefa da filosofia da educação, preferimos não atravancar o texto com citações, ou referências a autores, vivos ou mortos. Se este trabalho possui alguns méritos, certamente a originalidade nas idéias apresentadas não será um deles. Um exame, ainda que rápido, das poucas obras incluídas na sugestão de leituras complementares comprovará isto. Os defensores e proponentes das várias posições analisadas e discutidas no corpo do trabalho poderão ser identificados por qualquer um que esteja familiariazido com a literatura educacional.

2. Isto mostra que a reflexão filosófica é, de certa maneira, parasítica: ela precisa de outros tipos de reflexão para existir. Esta constatação, por sua vez, significa que, se todas as pessoas do mundo, exceto os filósofos, fossem mudas, e, portanto, incapazes de comunicar suas reflexões, os filósofos teriam, obrigatoriamente, que refletir (filosoficamente) somente suas próprias reflexões (não-filosóficas), ou então deixar de filosofar, a menos que algum filósofo engenhoso concluísse que a tarefa da filosofia, então, devesse ser refletir sobre o silêncio...

3. Procuraremos, no decorrer do trabalho, dar uma resposta a cada uma dessas perguntas. Elas serão respondidas, porém, em ordem inversa à de sua formulação aqui.

4. É importante ressaltar que quando se fala em conteúdo não se tem em mente apenas conteúdos estritamente intelectuais ou cognitivos. Na terceira parte do trabalho a noção de conteúdo será discutida mais detalhadamente, ainda que de maneira breve.

5. Parece irrelevante a esta questão, mas certamente é relevante à questão correlata, a saber: Pode haver aprendizagem sem que haja ensino?

6. Uma outra decorrência estranha e até divertida desse ponto de vista é a seguinte: somente poderemos afirmar que alguém esteve realmente ensinando depois de testar seus alunos para verificar se de fato aprenderam o que se ensinou. Mas a que momento se faz esta verificação da aprendizagem? Logo após a aula? No dia seguinte? Uma semana depois? Ao final do semestre? E o que dizer quando alguns alunos aprendem mas outros não: houve ensino ou não, nesse caso? E o que acontece quando os alunos aprendem, mas retêm o que aprenderam apenas por um período relativamente curto? Diremos, então, que o professor havia aparentemente ensinado, mas que após algum tempo se verificou que de fato não ensinou? Um outro problema, agora de natureza prática, e somente para levar as conseqüências ao absurdo: Quando uma instituição contrata alguém para ensinar, deve esperar até após os exames finais dos seus alunos para determinar se o indivíduo cumpriu com suas obrigações contratuais (isto é, para verificar se ele de fato ensinou), e só então (em caso positivo) pagar o seu salário? É verdade que neste nosso Brasil há algumas instituições de ensino que somente renovam o contrato de um professor se ele aprovar os seus alunos (tenham eles aprendido ou não). Talvez a estas instituições se deva sugerir a adoção do ponto de vista em discussão: só renovar o contrato do professor se ele realmente ensinou, isto é, se seus alunos de fato aprenderam...

7. Não dizemos, simplesmente, que as duas perguntas são idênticas, porque estamos procurando mostrar que a intenção de produzir a aprendizagem é condição necessária para o ensino, e não que seja condição necessária e suficiente. Pode haver outras condições igualmente necessárias, o que faz com que a presença da intenção em questão não implique, necessariamente, a existência de ensino.

8. Uma ação de verdade, parece ser constituída de movimentos físicos mais intenções. Quando alguém pisca ou tosse, involuntariamente (isto é, não intencionalmente), não está realizando uma ação, embora esteja realizando certos movimentos físicos. Se a a piscada ou a tosse forem intencionais, porém, a situação muda de figura. A pessoa que pisca para chamar a atenção de alguém, ou que tosse para advertir alguém de algum perigo, está realizando uma ação.

9. Não dizemos que no segundo "houve" ensino, mas, isto sim, que "pode ter havido", em virtude daquilo que observamos na Nota nº 7: estamos procurando mostrar que a presença da intenção de produzir a aprendizagem é condição necessária para a existência de ensino, mas não que seja também condição suficiente. Se o fosse, estaríamos inclinados a dizer que houve ensino no segundo caso, e não, simplesmente, que pode ter havido. No primeiro caso, porém, estamos propensos a admitir que não houve ensino (e, não meramente, que pode não ter havido), porque dificilmente se poderá constatar a presença da condição necessária em pauta naquela situação.

10. Vida a Nota anterior, bem como a Nota nº 7, para a explicação da expressão "pode estar havendo ensino".

11. O argumento a ser apresentado no presente parágrafo é freqüentemente utilizado por pessoas que se opõem ao ponto de vista que vamos defender. Embora haja muitos pontos aceitáveis nesse argumento, nós, obviamente, não o endossamos, na íntegra, como se verá nos parágrafos seguintes.

12. Em outras palavras, vamos examinar a suposta necessidade lógica (isto é, decorrente do próprio conceito de aprendizagem) de que toda aprendizagem seja auto-aprendizagem.

13. Ao discutir o conceito de educação não nos será possível responder a todas as questões levantadas no início deste trabalho, como, por exemplo, acerca da relação entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização, etc. Isto terá que ficar para um outro trabalho.

14. A necessidade dessa suposição se faz sentir em função do fato de na doutrinação não existir a limitação de que os conteúdos sejam considerados valiosos: eles podem, mas não precisam, ser considerados valiosos.


© Copyright by Eduardo Chaves


Last revised: May 02, 2004