Tese de Doutorado ENCONTROS NO CENTRO DE SAÚDE: A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE (MFC) E O SOFRIMENTO SOCIAL Paulo Poli Neto Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas. Orientadora: Profa. Drª Sandra N. C. de Caponi Co-orientadora: Profa. Luzinete Simões Minella Florianópolis, 2011 Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina P766e Poli Neto, Paulo Encontros no centro de saúde [tese] : a medicina de família e comunidade (MFC) e o sofrimento social / Paulo Poli Neto ; orientadora, Sandra N. C. de Caponi. - Florianópolis, SC, 2011. 227 p.: il. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Inclui referências 1. Ciências Humanas. 2. Sofrimento. 3. Medicina familiar. 4. Comunidade - . Medicina. 5. Saúde pública. 6. Depressão – Tratamento. I. Caponi, Sandra Noemi Cucurullo de. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. III. Título. CDU 168.522 DEDICATÓRIA À Marcela, companheira, que segue me ensinando e me aprendendo AGRADECIMENTOS Muitas pessoas contribuíram diretamente para que esse trabalho pudesse ser realizado e não poderia deixar de citá-las. A começar pelos profissionais de saúde e pacientes que permitiram que eu os acompanhasse nas consultas e em outras atividades nos Centros de Saúde. Um agradecimento especial aos 4 médicos de família e comunidade (MFC), a quem chamo de interlocutores da pesquisa, pelo carinho e pela disponibilidade de me receber e, principalmente, por todas as contribuições e reflexões que me oportunizaram. Aos meus colegas de trabalho e meus pacientes, do Centro de Saúde Ingleses, que nesses mais de 4 anos souberam compreender as mudanças na minha rotina em função do doutorado e da pesquisa de campo. À Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis que contribuiu de muitas maneiras com a pesquisa de campo e que me oportunizou realizar um estágio de doutorado na Espanha por 6 meses graças a uma licença sem vencimentos. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento do estágio de doutorado de 6 meses na Espanha. Agradeço, em nome do Prof. Angel Martínez Hernáez, a todos os professores e alunos da pós-graduação em Antropologia Médica da Universitat Rovira i Virgili, que me receberam com muito carinho e que me apresentaram a autores e estudos fundamentais para essa tese. Em nome da Profa. Joana Maria Pedro e do Jerônimo Ayala agradeço a todos os professores e trabalhadores do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), que me auxiliaram sempre que preciso, com atenção, agilidade e eficiência. As disciplinas oferecidas no PPGICH contribuíram muito para esse trabalho, desde a escolha do método, campo de pesquisa ao referencial teórico. Em nome dos Professores Hector Leis, Selvino Assmann, Miriam Grossi e Carmen Rial, agradeço a dedicação de todos a esse doutorado e a seus alunos. Muitos professores e amigos contribuíram livremente ao longo desses anos com ideias, artigos, comentários, etc.. Seria muito difícil citar todos, mas em nome do Prof. Charles Tesser, agradeço a todas essas pessoas que, mesmo sem seguir de perto o trabalho, deram uma ajuda enorme. Em nome das queridas amigas, Ana Lima e Fabíola, agradeço a todos(as) do grupo de pesquisa que há anos têm estudado o tema da medicalização do sofrimento e que tantos aportes trouxe para esse trabalho. A Profa. Luzinete Simões Minella foi mais que uma coorientadora e prestou uma ajuda incalculável para a tese e exatamente quando mais precisei, e precisamos todos, nos momentos finais. Sem a professora Sandra Caponi nada disso seria possível, por muitas razões. Como minha orientadora no mestrado em Saúde Pública foi quem me apresentou os principais autores e estudos que me guiaram então e continuam me guiando agora. Foi quem me estimulou a fazer o doutorado até o último momento, quando eu duvidava da minha capacidade de compatibilizar o trabalho em uma equipe de saúde da família e escrever uma tese. Sua orientação continua sendo muito precisa e emancipadora. E não posso deixar de agradecer àquelas pessoas que não participam diretamente, no dia-a-dia da pesquisa e da tese, mas que sem saber nos dão a paciência, a energia, a sabedoria para seguir adiante. Aos amigos Armando, André, Zé, Gustavo, Angélica, Selma, Ronaldo, Fernanda, Allan, Christian e muitos outros, não menos importantes, que fazem parte da nossa história. Ao meu pai, Paulo, e a minha mãe, Maria Ivone, que sempre me apoiaram e que souberam entender todas as ausências dessa fase da vida. À minha irmã, Carolina, e à família que cresce e nos alegra, com a nossa Dorinha e com a Catarina. Aos meus queridos sogros, Jubal e Claudia, e ao meu “irmão” Michel pela paciência com este genro e cunhado que só fala que tem que terminar a tese. EPÍGRAFE Após o pôr-do-sol, nos terraços do palácio real, Marco Polo expunha ao soberano o resultado de suas missões diplomáticas. Normalmente, o Grande Khan concluía as suas noites saboreando essas narrações com os olhos entreabertos até que o seu primeiro bocejo desse o sinal para o que o cortejo de pajens acendesse os fachos para conduzir o soberano ao Pavilhão do Sono Augusto. Mas desta vez Kublai não parecia disposto a ceder à fadiga. - Fale-me de outra cidade – insistia - ... O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e o noroeste... – prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. Podiase dizer que o ser repertório era inexaurível, mas desta vez foi ele quem se rendeu. Ao amanhecer, disse: - já falei de todas as cidades que conheço. - Resta uma que você jamais menciona. Marco Polo abaixou a cabeça. - Veneza – disse o Khan. Marco sorriu. - E de que outra cidade imagina que eu estava falando? O imperador não se afetou. - No entanto, você nunca citou o seu nome. E polo: - Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza. - Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza. - Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela. A água do lago estava encrespada; o reflexo dos ramos do antigo palácio real dos Sung fragmentava-se em reverberações cintilantes como folhas que flutuam. - As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se – disse Polo. – Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco. As Cidades Invisíveis Italo Calvino RESUMO A tese trata, com um enfoque interdisciplinar, do tema do sofrimento social na Atenção Primária à Saúde brasileira (APS). As duas principais perguntas da pesquisa voltaram-se para: uma caracterização das situações de sofrimento levadas pelas pessoas aos Centros de Saúde (C.S.); o papel dos médicos de família e comunidade (MFC) nesses encontros. As informações mais importantes para a análise provieram de uma observação participante em 4 C.S. de uma capital do sul do Brasil, especialmente do seguimento de consultas entre MFC e pacientes. Também foram utilizadas outras fontes, conforme a exploração realizada, como: artigos científicos, livros e documentos institucionais da medicina de família e comunidade (MFC), além de entrevistas com MFC; textos voltados para o tema da saúde mental; e, do mesmo modo, referências bibliográficas da psiquiatria. Ainda que haja um tema geral, que poderia ser definido como a (des)medicalização do sofrimento na APS, cada um dos capítulos traz um tema mais específico, com uma abordagem e considerações próprias. No que trata das situações de sofrimento que chegam aos C.S. percebe-se como estes representam um recurso para os mais variados lamentos e narrativas, identifica-se a dificuldade de delimitar ou classificar essa demanda e a sua tênue e perigosa relação com os diagnósticos biomédicos. O capítulo seguinte volta-se para a MFC e sua relação pendular com a biomedicina. Vemos como a MFC que cresce a partir da segunda metade do século passado aproxima-se e distancia-se dos ditames biomédicos conforme a situação. Em relação ao tema do sofrimento, algumas características peculiares do trabalho do MFC promovem uma relativização dos diagnósticos psiquiátricos. Esses conflitos entre os profissionais da APS e seus cânones, aqueles que pertencem ao que chamamos de Nova Psiquiatria e, por fim, os reformadores, que pensam e propõem as redes de saúde mental, são discutidos em um capítulo à parte. O que se percebe é que há visões distintas em relação à essa demanda que chega aos C.S. E, em outra parte, ainda, aborda-se o encontro propriamente dito entre MFC e pacientes, em que se apresenta como essa relação está atravessada por múltiplos aspectos e como ela é importante para definir o papel do MFC e suas condutas diante das situações observadas. Ressalta-se na conclusão a dupla função que pode cumprir o MFC em um tempo em que os C.S. são muito usados como recurso para a narrativa de sofrimentos cotidianos, a de expandir ou não a medicalização. Palavras-chave: Sofrimento Social, Medicina de Família e Comunidade, Atenção Primária à Saúde, Medicalização. ABSTRACT This thesis analysis, with a interdisciplinary view, the subject of the social suffering in the Brazilian public health primary care. The two main questions of the research were about: the characterization of the situations of suffering brought by people who come to the health centers (CS); and about the role of the family physicians (MFC) in these encounters. The most relevant informations to analysis came from a participant observation in 4 CS in a southern Brazilian city, especially from consultations between MFC and patients. Other sources were also important as: scientific papers and institutional documents of family physicians (MFC); interviews of MFC; scientific papers and documents about mental health and psychiatry. Despites of having a general subject that could be defined as the medicalization of suffering in the primary care, each part of the thesis brings its own question, method and considerations. In the first one it deals with the suffering situations that come to the CS and it shows how this space is a resource to a sort of complaints and narratives and the difficulty to delimitate or classify this demand and its thin and dangerous relationship with the biomedical diagnosis. The next chapter turns to the area of family medicine (MFC) and its relation with biomedicine. It seems how MFC, which grows in the second half of the last century, get closer and farer from the biomedical scientific and political cores accord to the situation. In relation to the subject of suffering it seems that some characteristics of the MFC promotes a relativisation of the psychiactric diagnosis. This conflicts among the primary care professionals, the professionals that represents the new Psychiatry and the wide spectrum of people, we called reformers, who think and proposes the mental health networks, are discussed in another chapter. It´s realized that there are different visions about the demand which comes to the CS. In another part, the objective is to discuss the encounter between MFC and patients and to present how this relationship is influenced by multiple aspects and how it is important to define the role of the MFC and his interventions. To conclude, the thesis highlights the double function of the MFC in a context that the CS are so used as a resource to narratives of daily sufferings, to expand or not the medicalization. Key-words: Social Suffering; Family Medicine; Primary Care, Medicalization. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APS CAPS CIAP-2 CID CS DAB DSM ESF ESF MBE MFC MFC MS OMS PSF RMP SBMFC SM SUS WONCA Atenção Primária à Saúde Centro de Atenção Psicossocial Classificação Internacional de Atenção Primária Classificação Internacional de Doenças Centros de Saúde Departamento de Atenção Básica Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais Estratégia da Saúde da Família Equipes de Saúde da Família Medicina Baseada em Evidências Medicina de Família e Comunidade Médica ou Médico de Família e Comunidade Ministério de Saúde Organização Mundial de Saúde Programa de Saúde da Família Relação Médico-Paciente Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade Saúde Mental Sistema Único de Saúde World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians.(Associação Mundial de Médicos de Família e Comunidade) SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................13 MÉTODO...............................................................................................19 O campo de pesquisa..............................................................................23 O médico de família e comunidade e o pesquisador..............................27 Aspectos éticos.......................................................................................32 CAPÍTULO 1 – DO AUTOR: Autoscopia............................................35 1.1 Uma autoscopia...............................................................................37 1.2 Quem nos procura e por quê nos encontram?.................................40 1.3 Encontros e desencontros na relação médico-paciente...................47 CAPÍTULO 2 - DA DEMANDA: o sofrimento social na agenda da APS.........................................................................................................56 2.1. Os Centros de Saúde e a Estratégia em Saúde da Família..............59 2.2 Situações mais comuns de sofrimento encontradas nos C.S............64 2.3 Cecília e o suicídio do neto..............................................................65 2.4 A medicina como recurso para o alívio dos sofrimentos.................70 2.5 Confidencialidade, imparcialidade, irreprocidade............................76 2.6 Uma medicalização do sofrimento...................................................84 2.7 Considerações finais.........................................................................89 CAPÍTULO 3 – DA OFERTA: A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE (MFC) COMO UMA (SUB)CULTURA...................................................................................91 3.1 Biomedicina e formação médica......................................................93 3.2 O MFC, a APS e a rotina de trabalho.............................................107 3.3 Breve contextualização histórica....................................................116 3.4 Considerações finais.......................................................................124 CAPÍTULO 4 – DO ENCONTRO: A RELAÇÃO MFC-PACIENTE (RMP), DA LUTA À DANÇA, DO SAGRADO AO PROFANO......126 4.1 Antes, o consultório........................................................................126 4.2 Estudos sobre a RMP......................................................................128 4.3 A luta..............................................................................................138 4.4 A dança...........................................................................................144 4.5 A consulta sagrada..........................................................................146 4.6 A consulta profana..........................................................................151 4.7 Um encontro e uma clínica pós-modernas?....................................154 CAPÍTULO 5 – DO ENTORNO: SAÚDE MENTAL (SM), PSIQUIATRIA E ATENÇÃO PRIMÁRIA (APS), O SOFRIMENTO SOCIAL E SEUS LUGARES DE SABERPODER.................................................................................................156 5.1 Honória chega ao centro de saúde. A saúde mental também.........159 5.2 A história de Noêmia e a abordagem do MFC...............................174 5.3 Saúde mental, do que se trata?.......................................................177 CAPÍTULO 6 – DAS REFERÊNCIAS MÉDICAS, A NUMEROLOGIA DA DEPRESSÃO..................................................183 6.1 Uma epidemiologia do sofrimento.................................................187 6.2 Rastreamento: a busca de casos na população...............................192 6.3 O risco de vir a ter depressão.........................................................195 6.4 Enfim, o diagnóstico.......................................................................196 6.5 As diferentes categorias..................................................................202 6.6 Sobre o tratamento..........................................................................203 6.7 Desfechos.......................................................................................206 6.8 Considerações finais.......................................................................208 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................210 REFERÊNCIAS...................................................................................217 13 INTRODUÇÃO O título desta tese, Encontros no Centro de Saúde: a medicina de família e comunidade (MFC) e o sofrimento social, procura sintetizar ao mesmo tempo o seu tema e o caminho (ou o método) escolhido para dar conta de explorá-lo. O objetivo central da pesquisa foi o de analisar as situações de sofrimento surgidas ou reveladas na centena de encontros que observei entre médicos(as) de família e comunidade (MFC) e pacientes em 4 Centros de Saúde (C.S) de uma capital do sul do Brasil. Além de valorizar as singularidades observadas em muitos desses encontros, o enfoque adotado partiu do suposto de que há características no modo de atuação desses médicos(as) de família e comunidade (MFC) assim como há situações mais ou menos regulares de sofrimento que levam as pessoas a procurar os Centros de Saúde (C.S.), que permitem analisá-los de um modo mais amplo e falar do encontro de uma medicina de família e comunidade com o que Arthur Kleinman chamou de sofrimento social (KLEINMAN, 1995, p.101). No Sistema Único de Saúde (SUS) há mais de 32 mil equipes de saúde da família compondo a Atenção Primária em Saúde (APS) brasileira, que são responsáveis pelo acompanhamento rotineiro de aproximadamente 100 milhões de pessoas. Apesar da heterogeneidade dos profissionais que compõem essas equipes, veremos que o espaço particular e a função da APS -de proximidade da comunidade e de atenção à maioria das situações de saúde - costumam fazer dos C.S o lugar mais acessado por quem busca um serviço de saúde para expressar sua angústia ou mal-estar. E desse terreno fértil surgiram duas perguntas que guiaram boa parte da pesquisa e podem ajudar a esclarecer melhor seus objetivos, quais sejam: 1. como as pessoas manifestam e descrevem o sofrimento que as levam ao C.S e ao MFC? e; 2. há uma maneira particular (ou distinta do modo biomédico) da medicina de família e comunidade (MFC) lidar com essa demanda? Essa última pergunta traduz uma motivação mais antiga e pessoal, que seria a de propiciar o encontro do tema da medicalização, que tem me ocupado desde o mestrado, com a minha própria experiência profissional como MFC. Se no mestrado a intenção era encontrar as características mais generalizáveis da biomedicina em um tema inusitado, o da aparência física1, agora tratava-se de buscar na prática 1 A Medicalização da Beleza, dissertação do mestrado em saúde pública (UFSC), defendida em março de 2006, sob orientação da Profa. Dra. Sandra Caponi. Acesso via: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSPB0122.pdf 14 diária do(a) MFC suas proximidades e distâncias em relação ao jeito biomédico de identificar e lidar com seus objetos de intervenção. A escolha pelo tema do sofrimento deveu-se a alguns fatores que podem ser assim sintetizados: primeiro, por ser um campo no qual parece haver uma intensa e expansiva medicalização, com os novos diagnósticos psiquiátricos, uma nova forma de classificar as variações a partir do DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), e com novos medicamentos; segundo, por se tratar de um tema que traz à tona os limites da racionalidade biomédica quando separa mente e corpo, social e biológico, subjetivo e objetivo, e considerei que conviria analisar melhor em que medida a MFC teria desestabilizado essas polarizações e; terceiro, por oferecer uma oportunidade para avaliar as políticas públicas e a organização de uma rede de atenção voltadas para o que se tem chamado Saúde Mental (SM), espaço que promove o (des)encontro de teóricos e práticos da APS, da área de SM (e da reforma psiquiátrica) e da psiquiatria. A hipótese que trazia e que espero tenhamos aprofundado com a pesquisa é a de que a MFC tem um papel duplo e dúbio em relação a uma medicalização do sofrimento, pois ao mesmo tempo em que ajuda a expandir e a capilarizar para as comunidades mais longínquas parte do conhecimento e das ferramentas biomédicas, sensibiliza-se com as dificuldades que seu espaço de prática lhe impõe para operar classificações e intervenções simplistas. Se houvéssemos recorrido apenas a determinados textos de clínica, mesmo alguns dos voltados para a APS, provavelmente não teríamos encontrado essa sutileza. O tema da depressão é um exemplo, pois vê-se em muitas guias e protocolos uma pressão para que os(as) MFC diagnostiquem e tratem mais casos ao mesmo tempo em que há pesquisas baseadas na prática desses que as rebatem afirmando que não se trata de subdiagnóstico e sim de identificar apenas os casos em que há maior necessidade de cuidado (DOWRICK e BUCHAN, 1995). Uma revisão bibliográfica com enfoque na medicalização do sofrimento na APS não apresenta muitos resultados, tendo-se encontrado de modo geral três tipos de estudos: alguns ensaios feitos por MFC em revistas dirigidas a esses profissionais (GERVAS, 2006 e 2009); algumas pesquisas de campo em centros de saúde (C.S.) feitas por pesquisadores da saúde pública e ciências sociais em saúde, geralmente trazendo a visão dos profissionais (MELLO SILVA, 2003); e na área da antropologia estudos que costumam acompanhar o itinerário terapêutico daqueles que buscam aliviar seus sofrimentos (MALUF, 2005) 15 Esse foi um dos motivos para ter como campo principal dessa pesquisa o encontro entre médicos(as) e pacientes. Não se trata de desmerecer ou invalidar os outros espaços, como a entrevista com profissionais ou com pacientes, mas de acrescentar informações e análises a partir desse espaço. Claro que já existem trabalhos anteriores que também se ocuparam em acompanhar o desenrolar da consulta médica, cito especialmente os de Arthur Kleinman, que observou não apenas as consultas do mundo ocidental, mas também as da medicina chinesa (KLEINMAN, 1988). Recentemente, foram publicados outros estudos que também entraram no consultório médico, mas para analisar a consulta médica de um modo mais amplo (BAARTS e cols, 2000, TRIANA, 1999). E há ainda, muitos outros estudos clássicos da antropologia, em que o encontro entre o curandeiro e aquele que solicita ajuda serve de base para análises sociais (LEVI-STRAUSS, 1975; RIVERS, 2001). Poder-se-ia perguntar, finalmente, qual seria então o recorte especial que essa pesquisa pretende oferecer em relação às demais já apresentadas. Vislumbro duas respostas, a primeira de que se trata de um olhar mais detalhado sobre o papel desempenhado pelo MFC e pela MFC em relação a esse tema; e a segunda é que se faz uma leitura atual de um espaço muito dinâmico, especialmente no Brasil, que é o dessa expansão simultânea da APS e das explicações psiquiátricas para variações de comportamento e para sofrimentos cotidianos. A pesquisa ao se debruçar sobre o campo de estudo fala também de um outro encontro, além dos muitos que já citamos, que é o do pesquisador com os autores e áreas do conhecimento que contribuem para a discussão, em um movimento interdisciplinar. Por se tratar de um doutorado interdisciplinar não poderia ser diferente, mas me parece que a interdisciplinariedade nesse trabalho não está restrita a um método e nem mesmo a uma forma de análise científica. O interdisciplinar aqui parece surgir como uma condição, uma necessidade, a tal ponto que chega a parecer redundante e arcaico, como um artefato de havermos disciplinado e delimitado tanto o conhecimento nos últimos séculos. Haveria outro modo de analisarmos e refletirmos sobre pessoas que sofrem e médicos(as) que cuidam de pessoas, e não de doenças específicas, que não fosse por meio de um olhar que assumisse muitas, diferentes e incompletas perspectivas? O interdisciplinar aqui não pretende ser a soma de disciplinas em um projeto de visão sistêmica ou total como num mosaico, referindo-se mais à ideia de um caleidoscópio - em que as figuras em movimento constróem e destróem imagens, 16 sempre parciais, que produzem signficados que são, ao mesmo tempo, do grupo e daquele que vê. Nesse sentido, coincide com a visão que Lenoir e Hasne (2004) trazem do jeito brasileiro de se pensar e fazer a interdisciplinariedade. A esse respeito, as autoras nos dizem que: En la lógica brasileña, muy subjetiva (e intersubjetiva), la interdisciplinaridad no tiene una función reflexiva ni instrumental en el saber. Su finalidad es otra: busca la realización del ser humano promoviendo una concentración en el «yo» integrador, no en las relaciones entre las disciplinas, y mucho menos en el actuar funcional, pragmático. Adhiriéndose a una perspectiva afectiva, la interdisciplinaridad está volcada en las interacciones internas sobre el tema, buscando respuestas a preguntas personales. Se trata de lo que podríamos llamar una interdisciplinaridad introspectiva, basada en la búsqueda del «sí». Esse olhar mais fenomenológico que provavelmente surge em vários momentos da tese deve-se, entre outros fatores, ao fato de que as perguntas que são colocadas e as resposta que buscamos não são somente as do pesquisador das ciências humanas (DICH), mas também e principalmente as do médico de família e comunidade que diariamente se depara com muitas das situações que em seguida serão descritas e analisadas. No entanto, concordando novamente com a proposição de Lenoir e Hasni (2004), não acredito que a pesquisa se restrinja a um dos 3 modos do saber-fazer interdisciplinar que descrevem, a do saber científico, a do saber útil e a da realização do sujeito: Negar o rechazar una de estas tres concepciones sería una grave equivocación, si de lo que se trata es de concebir y de actualizar un enfoque interdisciplinario innovador, orientado hacia una formación integradora. Razón, mano y corazón constituyen tres modos indisociables de aprehender el enfoque interdisciplinario. E é assim que provavelmente seguiremos em cada um dos capítulos que seguem, que por adotarem diferentes perspectivas sobre o 17 sofrimento no encontro MFC-paciente revelarão particularidades quanto ao objetivo, ao método, às análises e reflexões e, ainda, em relação à própria forma de escrita. Já no capítulo seguinte, O Método, faremos uma breve apresentação e discussão sobre o itinerário da pequisa, sobre a escolha dos centros de saúde e dos MFC que acompanhamos, bem como sobre a eleição de outras fontes que serviram de base para análise nos diversos capítulos. Debate-se também nessa parte a respeito de minha posição especial de pesquisador e de MFC, em que minha própria experiência prática surge como uma categoria analítica. É o caso do capítulo 1, por exemplo, intitulado Do Autor: Autoscopia, que trata do encontro do autor com sua própria rotina de trabalho, texto que inicialmente foi produzido para uma das disciplinas do doutorado e que acabou servindo de base para toda a pesquisa. Autoscopia é uma pequena amostra de todos os capítulos que vêm em seguida. As principais demandas vistas em um C.S., a forma como as pessoas vêem e usam a medicina, as principais características do MFC e de seu trabalho, a relação médico-paciente, são alguns dos temas discutidos nessa parte. No capítulo 2, Da Demanda: o sofrimento social na agenda da APS, aborda-se com mais profundidade algumas das situações de sofrimento observadas na pesquisa de campo. O olhar aí está mais voltado para o paciente, suas narrativas, como se comunica com o corpo, o que busca naquele espaço, quais as causas mais comuns, etc.. Não se trata aqui de fazer uma análise histórica, psicológica, antropológica do sofrimento social, porque o enfoque sempre parte desse mal-estar que é comunicado por uma pessoa que está dentro de um consultório de um MFC em um C.S brasileiro. Esse capítulo, portanto, volta-se para a pessoa e suas angústias, mas sem esquecer que ela está diante de um médico nesse contexto. As questões e reflexões giram em torno desse encontro, ainda que o olhar privilegie o paciente. O capítulo 3, Da Oferta: a Medicina de família e comunidade (MFC) como uma (sub)cultura, volta-se obviamente para o MFC e para a Atenção Primária em Saúde (APS) e os profissionais que compõem essas equipes. Os 4 MFC que acompanhei mais proximamente em suas rotinas de trabalho, minha própria experiência como MFC, o contato com MFCs do Brasil e de outros países, além de textos importantes e de referência para os MFCs servem como base para análise nesse trecho. Os pacientes e as narrativas de sofrimento afastam-se um pouco e o objetivo aqui é compreender melhor quem é esse profissional que lida com as situações que observamos. 18 O capítulo 4, Do Encontro: a relação MFC-paciente (RMP), da luta à dança, do sagrado ao profano, é o espaço utilizado para falar propriamente do encontro entre essas figuras nucleares da pesquisa. O tema do sofrimento e das especificidades do trabalho do MFC surgem nos interstícios ou nas brechas desse texto que focaliza a comunicação e a relação entre o MFC e o paciente. Alguns exemplos das mais de 100 consultas observadas serão utilizados para discutir as mudanças nos últimos 50 anos em relação a esse tema e as particularidades do MFC e da postura dos pacientes nos dias atuais. Os capítulos 5 e 6, voltam-se mais para o tema do sofrimento, mas de maneiras distintas. O primeiro, Do Entorno: saúde mental (SM), psiquiatria e Atenção Primária, o sofrimento social e seus lugares de saber-poder, trata da aproximação de profissionais de saúde mental, psiquiatras e psicólogos, do trabalho cotidiano das equipes de Atenção Primária (APS). Esse fenômeno não ocorre somente nessa área que se denomina saúde mental, que aqui serve de exemplo, mas também em outras como, saúde da criança, do idoso, da mulher, etc.. O encontro, do MFC e dos profissionais da APS, com os chamados profissionais de saúde mental, provoca uma série de conflitos (e concordâncias, também) que se discutem nessa parte. A atuação conjunta desses profissionais no C.S com casos concretos de pacientes, bem como os discursos institucionais e científicos daqueles que lidam com essa área, de saúde mental, entram aqui para auxiliar a análise. O segundo, intitulado Das Referências Médicas: a numerologia da depressão, lança mão especialmente dos textos médicos, de artigos científicos e de estudos epidemiológicos, para analisar como a biomedicina (ou a neuropsiquiatria) vem definindo, catalogando e atuando sobre as situações mais comuns de sofrimento. O exemplo aqui será o tema da depressão, que tem recebido maior destaque, tanto na literatura médica quanto nos meios de comunicação para públicos em geral. E, por fim, as considerações finais, em que procuro (procuramos) responder a algumas das questões centrais que foram colocadas, já com o acréscimo ou com as mudanças proporcionadas pela pesquisa de campo, pelos autores a que recorremos e pelas reflexões que surgiram. Uma das respostas, curiosamente, é uma pergunta (também já feita por Mathers e Rowland, 1997, p.177): a medicina de família e comunidade é uma área de atuação pós-moderna? 19 MÉTODO A intenção aqui é descrever brevemente o processo que levou à escolha do método da pesquisa, do campo, dos interlocutores e das demais fontes que serviram de base para as análises que ocorrem em cada um dos capítulos. Como já havia antecipado na introdução, há uma certa continuidade entre esse estudo e a pesquisa realizada no mestrado, pois ambas abordam o tema da medicalização. No entanto, o objetivo agora é o de matizá-lo (ou relativizá-lo) ao me aproximar da prática cotidiana de médicos de família e comunidade (MFC). Se no mestrado a análise de conteúdo de artigos científicos permitiu identificar padrões de semelhança do discurso da cirurgia plástica estética com as características centrais da biomedicina, faltava encontrar um meio que se adequasse melhor a essa nova proposta. A essa vontade, a de observar a pressão exercida por esse processo intenso de medicalização social em um microcosmo bastante complexo, o da Atenção Primária em Saúde (APS), somava-se o desejo de estudar o tema do sofrimento, pelos motivos que já explicitamos anteriormente. Uma pesquisa que se centrasse apenas em documentos, como tratados de medicina, artigos científicos ou revistas para leigos, provavelmente já aportaria tensões e discursos heterogêneos suficientes para uma boa discussão. E, de fato, veremos nos textos que são utilizados para análise que há muitas e distintas versões somente no campo da saúde quando se trata de apresentar e orientar sobre abordagens diagnósticas e terapêuticas em relação ao sofrimento. Duas disciplinas do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas (DICH), a de Teoria da Cultura, da Sociedade e do Indivíduo e a de Epistemologia tiveram um papel fundamental na escolha do campo da pesquisa. Nessa última, fomos apresentados às pesquisas, ou melhor, ao como fui desenvolvendo minhas pesquisas de professores de várias áreas, como psicologia, antropologia, sociologia, dentre outras. Muitas se assemelhavam à pesquisa que eu havia realizado no mestrado e outras lançavam mão da observação participante (ou etnografia) para investigar um determinado tema ou sistema cultural. E algumas das características dessas últimas me chamaram a atenção. Esse modo de pesquisar ou de se aproximar do problema de pesquisa me pareceu muito apropriado para o momento acadêmico que vivia e para o que pretendia investigar. Se o tema da pesquisa até o momento poderia ser resumido em algo como A medicalização do sofrimento na APS, a escolha por uma observação participante da rotina de trabalho de MFC e, mais especificamente, do encontro entre MFC e 20 pacientes, serviria de base para o diálogo constante que mantive comigo mesmo, com as orientadoras, com outras informações utilizadas e com autores de diversas áreas do conhecimento para construir esse trabalho nos últimos anos. Claro que, como em toda pesquisa, surgem as dúvidas sobre a capacidade de execução, não foi diferente no mestrado ao proceder a análise de conteúdo e, agora, ainda mais difícil ao eleger uma opção que parecia tão aberta a diferentes possibilidades. Uma ajuda veio ainda na disciplina de Epistemologia, em que praticamos, todos os doutorandos, uma observação participante para treinar. Eu acabei realizando uma observação de minha própria prática como MFC, ou seja, procurei fazer uma descrição distanciada e com alguma análise teórica sobre um período meu de trabalho. Após cada um dos atendimentos no consultório, eu rascunhava rapidamente algumas impressões sobre a pessoa que havia atendido, sobre minha postura, sobre o diálogo e depois algumas reflexões mais distantes sobre esse encontro. O resultado me incentivou a escrever um texto mais longo sobre o tema e permitiu vislumbrar as possibilidades desse método (esse texto faz parte do capítulo 1, intitulado Do Autor: Autoscopia). Além do exercício prático, a leitura de diversas etnografias, especialmente na disciplina de Epistemologia, e a de autores clássicos da antropologia ajudaram na compreensão e nos desafios práticos de se realizar uma observação participante. De grande ajuda, ainda, a oportunidade de realizar um estágio de doutorado e acompanhar algumas disciplinas da pós-graduação em antropologia médica da Universitat Rovira i Virgili, em Tarragona-Espanha. Nessa etapa, aproximei-me de alguns autores e conceitos-chave que procurei seguir. Um desses é Clifford Geertz (1989, p. 5), uma referência clássica na antropologia, que aportou muitas contribuições para a pesquisa. Uma delas é a de descrição densa, desenvolvida a partir do trabalho de Gilbert Ryle, e na qual estaria “o objeto da etnografia”, qual seja: Uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam (nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são tanto não-piscadelas como as piscadelas são não-tiques), não importa o que 21 alguém fizesse ou não com sua própria pálpebra (GEERTZ, 1989, p. 5). Nesse trecho, Geertz (1989) discute o exemplo fornecido pelo próprio Ryle em que 3 garotos piscam rapidamente os olhos com objetivos ou por motivos diferentes e a descrição densa signficaria uma forma detalhada de descrição da cena que “ao escolher entre as estruturas de signficação (...) determina sua base social e sua importância (GEERTZ, 1989, p. 7)”. A descrição densa orienta o trabalho de campo do etnógrafo, que se trata para Geertz (1989, p. 4) em um sentido mais amplo em oferecer uma interpretação de um sistema cultural. E o conceito de cultura defendido pelo autor, é “essencialmente semiótico”, em que: “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1989, p. 4). Diante dos múltiplos recortes possíveis e das oposições tradicionais que a discussão metodológica fomenta na antropologia, como as que Geertz enumera, das “descrições internas frente às externas”, em “primeira pessoa frente às realizadas em terceira pessoa”, das “fenomenológicas frente às objetivistas” ou, ainda, a que diz aparecer com mais frequência, das “êmicas frente à análise ética”, o autor prefere os conceitos de experiência próxima e experiência distante: Pouco mais ou menos, um conceito de experiência próxima é aquele que alguém – um paciente, um sujeito qualquer ou em nosso caso um informante – pode empregar naturalmente e sem esforço algum para definir o que ele e seus próximos vêem, sentem, pensam, imaginam, etc., e que poderia compreender com rapidez no caso de que fosse aplicado de forma similiar por outras pessoas. Um conceito de experiência distante é, por sua vez, aquele que os especialistas de um gênero ou de outro – um analista, um experimentalista, um etnógrafo, inclusive um sacerdote ou um ideólogo – empregam para impulsionar seus propósitos científicos, filosóficos ou práticos. O é um conceito de experiência próxima, enquanto a o é de experiência distante. A 22 , e talvez para muitos povos do mundo inclusive a (e certamente um ) são conceitos de experiência distante; por sua vez, a e o são de experiência próxima, quando menos para hindus e budistas. (GEERTZ, 1989, p. 75). Muitas vezes, no decorrer da pesquisa e dos capítulos que seguem, esse movimento de ir-e-vir deve aparecer. Apresenta-se uma descrição da cena observada, a atuação dos participantes da pesquisa, a minha própria presença surge muitas vezes nesse relato por ter sido notada pelos outros naquele momento ou pelas emoções e sensações que a cena me provoca, e desde aí se comentam e se discutem os significados que pareceram importantes. E os conceitos de descrição densa e de experiência próxima e distante serviram de guia para esse intento. Uma das vantagens desse movimento regular, pendular, entre o campo e o momento da análise ou da escritura da tese é que se dá mais voz ao campo de pesquisa, ao contato com os dados e produções do campo. Em uma pesquisa dita exploratória, em que parte-se com um amplo horizonte de possibilidades, “o impacto dos dados é muito maior se a experiência de campo é direta ” (BOTT, 1976, p. 57). O alerta de Good (2003, p. 84-90), no entanto, precisa ser levado em consideração, o de “descrever comportamentos tão individualizados que passam a ideia de universais sem ter feito essa discussão”. Além das múltiplas idas e vindas do campo aos referenciais teóricos, esse movimento e a maior valorização que se dá à voz que vem das informações da observação participante leva, de acordo com Rosaldo (1989, p. 7) a um reposicionamento do sujeito: Em procedimentos interpretativos de rotina, de acordo com a metodologia da hermenêutica, você pode dizer que os etnógrafos reposicionam-se conforme eles vão compreendendo outras culturas. Etnógrafos começam a pesquisar com um jogo de questões, revisam-na através do curso de questionamentos, e no fim emergem com diferentes questões do que aquelas que começaram. A surpresa que leva ao responder a questão, em outras palavras, requer uma revisão da questão até diminuir surpresas ou diminuir retornos indicam um ponto de parada. Esta 23 abordagem interpretativa tem sido muito articulada dentro da antropologia influenciada por Clifford Geertz. Antes, no entanto, de aprofundar a discussão sobre o método e seus desafios, convém, rapidamente, explicar melhor qual e como foi o trabalho de campo. O CAMPO DE PESQUISA O campo de pesquisa, ou seja, os espaços que forneceram informações para reflexões e análises poderiam ser divididos em três: a observação direta das consultas de MFC e da rotina de trabalho de vários profissionais nos C.S. (e aí eu precisaria incluir a minha própria prática profissional e local de trabalho); os diálogos e algumas perguntas (um breve questionário) que fiz diretamente aos MFC que me receberam; e, por fim, uma ampla e variada gama de documentos, artigos científicos, tratados médicos, informações veiculadas em páginas institucionais de associações de MFC de inúmeros países, etc.. Essa variedade de lugares de onde obtive informações poderá ser melhor percebida ao se fazer a leitura dos textos que seguem. Se nos capítulos 1, 2 e 5 as informações provenientes da observação participante nos C.S. e nos consultórios dos MFCs se destacam, nos capítulos 3, 4 e 6 outras fontes passam a ser mais importantes, como textos e documentos chaves. Em relação à observação participante, sucintamente, o que fiz foi acompanhar o trabalho de 4 médicos de família e comunidade (MFC), de 4 diferentes Centros de Saúde (C.S.) do sistema público nacional de saúde (SUS). O contato inicial para planejar a investigação foi feito com esses MFC e, somente depois de terem aceitado, procedi as formalizações burocráticas com a prefeitura municipal, que os emprega, a coordenação dos C.S. e, por fim, o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (CEP-UFSC) para avaliar as questões éticas. Explico isso para esclarecer que desde o começo os MFC surgem como os principais interlocutores da pesquisa, apesar de que o tema estivesse voltado para o sofrimento no encontro entre MFC e pacientes. Para entrar no consultório do MFC eu precisava antes de mais nada da sua autorização e foi também a partir deles que outros espaços do C.S. puderam ser explorados, como visitas domiciliares, reuniões da equipe de trabalho, discussões com a equipe de saúde mental e 24 momentos mais informais como nos intervalos dos atendimentos em que se pode conversar com vários profissionais dos C.S. Os Centros de Saúde e os MFC não foram escolhidos aleatoriamente, claro. Trata-se de uma amostra intencional. Os(as) MFC já eram todos previamente conhecidos, alguns mais e outros menos próximos. Eu procurava uma amostra que pudesse caracterizar o perfil dos MFC e não somente de outros médicos (clínicos gerais ou de outras especialidades) que atuam na APS, por isso todos têm título dessa especialidade ou residência médica na área. Procurei também profissionais de diferentes idades e com mais ou menos tempo de atuação no mesmo local. Da mesma forma, em relação aos C.S., que são distintos quanto ao tamanho, à quantidade de equipes de saúde da família, e ao bairro para o qual abrem seus serviços. Essa proximidade relativa com os MFC pode gerar, claro, uma série de viéses, mas principalmente o de que teria escolhido profissionais com uma abordagem melhor do que a da média. Provavelmente essa amostra escolhida deve ter uma postura diferente da maioria dos médicos que atuam na APS brasileira, mas não acredito que seja muito distinta da média daqueles que, assim como meus interlocutores, possuem residência em MFC ou título de especialista na área. Com o que eu poderia generalizar essa amostra, com as devidas restrições, para algo como 2 ou 3 mil médicos da Estratégia em Saúde da Família Brasileira (ESF), ou seja, uns 10% do total de equipes. Em 4 meses, acompanhei o trabalho desses profissionais em 23 oportunidades, geralmente 2 períodos por semana. A maior parte do tempo estive no consultório do MFC observando e gravando em áudio consultas gerais de adultos, homens e mulheres, o que me levou a registrar mais de 150 encontros. A seleção inicial dos MFC envolvia 6 profissionais, mas dois não puderam participar por terem se ausentado do C.S. nesse período. Além da gravação em áudio, que me permitiu retornar para esses diálogos muitas vezes depois e ser mais fiel às narrativas de médicos, outros profissionais de saúde e pacientes, anotei informações variadas em um diário de campo. Não possuia muita prática na utilização dessa forma de registro, mas parti de um esquema em que dividia em duas partes o diário, com o caderno aberto registrava do lado direito descrições diretas das consultas, como falas e movimentos corporais, e do lado esquerdo minhas impressões e sensações imediatas. Como eu não costumava ter tempo para registrar depois de acompanhar as consultas, já que após cada período de observação retornava rapidamente para o meu próprio trabalho, como MFC, anotava sempre 25 durante as consultas. E no fim do dia ou no fim de semana após dois períodos de observação de consultas, procurava ler o diário e salvar as gravações no computador já organizando-as em palavras-chave que auxiliassem depois a encontrá-las quando da análise e escritura da tese. De acordo com Sanjek (1990, p. 26), ao fazer uma pesquisa sobre os diários de campo dos etnógrafos, há, de fato, uma grande variedade na organização e no uso desse material: A falta de metodologia padrão é também revelada na enorme variedade definições dos diários de campo oferecidas por pesquisadores. Enquanto em nossa “fala de corredor” nós antropólogos celebramos e recolhemos histórias sobre as aventuras e artes da pesquisa de campo, diminuindo e nos divertindo com as nossas tentativas de ser objetivo e científico na floresta profunda, a tensão permanece – porque em outros tempos nós usamos nossas anotações de campo como uma evidência de objetividade e rigor. Anotações de campo, como símbolo de trabalho de campo, pode capturar essa tensão mas não a resolve. Outra dificuldade apontada por Geertz (1994, p. 75) é a da excessiva preocupação com o diário de campo, a ponto de se esquecer de perceber os acontecimentos do campo, para isso, ele diz, talvez “seja necessário desaprender conceitos sobre as conexões entre observar e registrar para se tornar um bom pesquisador de campo.” A minha relação com o diário de campo não chegou a essa intensidade, a ponto de me fazer desfocar do espaço que observava, mas me ajudou a resolver uma questão prática durante as consultas. Os(as) MFC quando chamavam os pacientes para atendê-los costumavam me apresentar como um pesquisador e eu procedia a burocracia de praxe para solicitar a autorização para observar a consulta, mas muitas vezes também me indicavam como um MFC, o que abria a possibilidade de se voltarem para mim como médico. Para diminuir essa ocorrência, ajudou o fato de fixar-me no diário de campo, especialmente no início das consultas. Ainda assim, algumas vezes participei do encontro clínico como médico, por solicitação do paciente ou do MFC. Uma dessas situações, foi muito curiosa, porque uma das pacientes que encontrei durante a pesquisa havia acompanhado comigo por alguns anos e, inclusive, 26 recentemente. Nesse sentido, a minha observação participante pode ter sido mais participante do que costumam ser as demais, como nos diz Bleek (1987, p. 385): Minhas dúvidas sobre a palavra “participante” vem da impressão de que a maioria dos pesquisadores de campo que usam esta palavra para descrever seu método de pesquisa raramente participam do tema de suas pesquisas, para tanto. Eu não sou exceção. Minha participação em relacionamentos sexuais foi pequena, em controle de natalidades insignificante, e em acidentes aéreos inexistente. Ironicamente, antropólogos tendem a se interessar mais por essas transações e relações menos acessíveis a eles, aquelas nas quais não podem participar. Essa ironia, eu suspeito, também se aplica a outras tradições de pesquisa. O inacessível atrai curiosidade; o que é aberto ao público pode levar logo ao tédio. (...) De um modo direto, no entanto, observação participante certamente contribui para um entendimento mais adequado dos temas em estudo. Porém, observação nunca substitui entrevistas; os dois métodos complementam-se. Observação sustenta a entrevista, enquanto a entrevista estende a observação a um período mais longo de tempo e a outros espaços. Muitos me perguntaram no decorrer da pesquisa e do doutorado sobre a influência da minha presença (e também pela relação de proximidade com esses médicos) no desenvolvimento da consulta, na performance do(a) médico(a) e, por fim, quanto à confiabilidade das minhas observações. De alguma maneira eu já havia pensado nesses aspectos e imaginava que não seria um problema, com aquela arrogância mais intuitiva do que elaborada. Minha intuição era a de que cada encontro entre médico e paciente (mas poderia ser também entre outros profissionais de saúde e paciente) demanda tanto investimento e uma comunicação continuada, atenta, tensa muitas vezes que a minha presença no cenário seria bastante diminuta. E, de fato, esse não pareceu ser um problema muito grande na pesquisa. Eventualmente no início das observações com cada MFC ou quando se colocava diante de uma situação que lhe parecia muito difícil, mas de modo geral as consultas me pareceram transcorrer de um modo próximo ao de que se 27 eu não estivesse ali. Ainda assim, quando a minha presença pareceu interferir na postura do MFC ou do paciente essa mudança na postura serviu de base para algumas análises. Uma outra questão central em relação ao método foi a de pensar qual seria a minha capacidade de análise por ser um MFC investido de pesquisador olhando para a prática de outros MFC. É o que discutiremos em seguida. O MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E O PESQUISADOR A separação entre o pesquisador e o nativo é um tema recorrente na antropologia, tanto das limitações de um observador externo compreender os símbolos e significados que observa naquele sistema cultural, quanto das limitações de um nativo analisar o espaço em que ele mesmo está imerso. É o que nos diz Geertz (1994, p. 75) nesse trecho: A verdadeira questão (aquela que Malinowski colocou ao demonstrar que, pelo que respeita aos , não é necessário ser um deles para conhecê-los) reside nos papéis que desempenham esse par de conceitos na análise antropológica. Ou, mais exatamente, em como devem despregarse esses conceitos em cada caso para produzir uma interpretação da forma em que vive um povo que não seja prisioneira de seus horizontes mentais, como uma etnografia da bruxaria escrita por uma bruxa, nem se mantenha sistematicamente alheia às tonalidades distintivas de suas existências, como uma etnografia da bruxaria escrita por um geômetra. Encontrar o meio termo entre o ir-e-vir da experiência próxima à distante é o desafio. De todo modo, cada vez mais há etnografias que se debruçam sobre lugares próximos ou mesmo autóctonos. Segundo Velho (1980, p.18), o antropólogo “lida e tem como objetivo de reflexão a maneira como culturas, sociedades e grupos sociais representam, organizam e classificam suas experiências”. E o fato de pesquisar o próprio cotidiano não é um problema para Velho (1980, p.18), que vê a possibilidade do estranhamento mesmo nesses casos, porque na sociedade moderna “a vida social e a cultura se dão em múltiplos planos, em várias realidades que estão referidas a níveis institucionais 28 distintos.” O meu contato com as ciências sociais em saúde e autores de outras áreas do conhecimento ao mesmo tempo em que trabalho como MFC permite esses estranhamentos, momentos em que se questiona e relativiza-se a própria prática, em que condutas antes automatizadas são colocadas em nova perspectiva. Estender essa experiência ao observar outros profissionais que exercem o mesmo trabalho permitiria ainda mais estranhamentos, que provavelmente representarão a base crítica da pesquisa. O caminho percorrido pela própria antropologia e, também pela antropologia médica ou da saúde pode nos ajudar a compreender melhor como se chega a esse momento em que a análise volta-se cada vez com mais frequência para nossa própria sociedade e costumes. E ela tem nos proporcionado nas últimas décadas uma efervescente discussão sobre o campo de investigação do etnógrafo e que, de certo modo, reverbera em múltiplas áreas das ciências sociais, como nas discussões sobre a separação entre investigador e investigação ou investigados. De uma disciplina acadêmica que se inicia no período imperialista e colonial do século XIX investigando culturas não-ocidentais, chamadas à época de primitivas, chega-se a um momento em que o campo de trabalho pode ser uma instituição do bairro em que vive, grupos ou tribos a que o próprio pesquisador pertence ou redes sociais virtuais, por exemplo, em que poderia nem mesmo haver um contato cara-a-cara. Um dos exercícios que auxiliaram tanto no trabalho de campo, ao me aproximar das diferentes pesquisas já realizadas, quanto na oferta de referências teóricas para a tese, foi o de conhecer como a antropologia médica tem investigado seus objetos de estudo ao longo do tempo e quais as visões de mundo por trás desses trabalhos. De acordo com Martínez Hernáez (2008, p.11), a antropologia se divide em diferentes fases desde o início do século XX até os dias atuais. Nos estudos iniciais estava mais voltada à investigação de formas de cura e de manifestação do mal-estar entre os povos indígenas ou da medicina popular e o que, em algum momento, refletia a curiosidade de um pesquisador ocidental auto-denominado civilizado em relação à práticas consideradas atrasadas passa pouco-a-pouco à percepção de que mesmo em culturas aparentemente distantes há elementos generalizáveis. Para Martínez Hernáez (2008, p. 11-12) será a dissolução de critérios que separavam esses mundos, como a “distinção entre ciência e crença”, que permitirá à antropologia médica incluir a biomedicina ou medicina ocidental como passível de ser etnografada. Esquematicamente, Martínez Hernáez (2008, p.12) nos apresenta 3 etapas da antropologia médica que corresponderão a 29 distintos campos de etnografia, relação pesquisador-objeto ou sujeito de pesquisa, e análises teóricas: 1. O modelo clássico, em que como dizíamos o foco será uma medicina exótica, entendida como mística ou irracional; 2. O modelo pragmático, no qual teríamos uma antropologia voltada para questões de saúde pública em países periféricos ou problemas sociais nos países centrais, e que mantém uma situação de dependência conceitual da biomedicina, que lança mão de seus resultados para agir; 3. O modelo crítico, que rompe com as fronteiras entre “ciência e crença e entre medicina e cultura” (MARTÍNEZ HERNÁEZ, 2008, p.13) e que, como consequência, permitirá incorporar a medicina ocidental como objeto de pesquisa da antropologia. O tema do sofrimento social é descrito em várias etnografias, de todos esses períodos e modelos que apresentamos, mas além da particularidade de cada cultura receberá ainda análises diferenciadas de acordo com a visão de mundo ou modelo teórico do pesquisador. Uma das etnografias clássicas, a de Evans-Pritchard (2005), Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, nos faz perceber como essa população da África Central, lidava na década de 1930 com seus sofrimentos. Segundo Evans-Pritchard (2005, p. 79), para um zande, “quase todo acontecimento que lhe prejudica se deve às intenções más de outrem”, e logo, “todo infortúnio implica a noção de injúria e o desejo de retaliação”, que será realizado por meio de uma complexa trama envolvendo os oráculos e a bruxaria. Ao fazer uma comparação com a sociedade ocidental da década de 1930, Evans-Pritchard (2005, p. 79-90) dirá que muitas dessas situações infelizes que vivemos e que atribuímos ao azar, para os azande sempre haveria um responsável. Se exploramos estudos etnográficos da década de 1950 e 1960, do modelo paradigmático descrito por Martínez Hernáez, aparecerá a importância de compreender a cultura ou as condições de vida da população para se fazer uma análise. Compreender melhor como a população pobre da favela explica o processo de adoecimento, as doenças sexualmente transmissíveis, a necessidade e o uso de drogas, entre outros, para intervir e provocar mudanças no sentido do que se considera ideal (ideal que jamais será objeto de reflexão ou etnográfico). Nesse sentido, para Martinez Hernaez (2008) tratar-se-ia de uma subordinação das ciências sociais à serviço da biomedicina ou de uma determinada visão de saúde pública. A partir da década de 1960, surge o que Martinez Hernaez (2008) define como modelo crítico, em que convivem diversas correntes de pensamento e linhas de investigação. Uma delas, importante nessa pesquisa, é a de autores como Byron J. Good e Arthur Kleinman, que 30 para Martinez Hernaez (2008) representariam uma variante fenomenológica desse modelo. O próprio Kleinman (2005, p. 6) nos dirá que “apesar de que eu não desejo negar minhas raízes na antropologia simbólica, uma permanente preocupação com fenomenologia tem aumentado”. Fenomenológica, hermenêutica ou estética, estruturalista são correntes da antropologia e da antropologia médica que valorizarão os achados de campo, as falas dos atores envolvidos no sentido de compreender os significados, os símbolos, as interpretações, as estruturas que se reproduzem naquele mundo particular e, também, o que mais essa interpretação aporta para o mundo do investigador, que nem sempre é o mesmo do campo de pesquisa. Uma outra linha crítica é a materialista, marxista ou neomarxista, em que o estudo das relações estará marcado pelas desigualdades econômicas, sociais, e costuma implicar o engajamento e a ação social do pesquisador. Ainda nessa corrente fenomenológica convém destacar o trabalho de Renato Rosaldo por ter usado sua própria vivência pessoal como uma categoria analítica. Ele fará uma associação entre a sua vivência do luto, que ocorreu no próprio campo de pesquisa, com as situações de luto que havia anteriormente descrito e analisado dos Ilongot. Rosaldo (1989, p. 11) dirá que: Meu uso da experiência pessoal serve como um veículo para fazer a qualidade e a intensidade da raiva do luto em Ilongot mais facilmente acessível para os leitores do que certos modos destacados de composição. Ao mesmo tempo, ao invocar experiências pessoais como uma categoria analítica arrisca-se à fácil demissão. Leitores antipáticos poderiam reduzir essa introdução a um ato de luto ou a mero relato da minha descoberta da raiva possível na perda. Francamente, essa introdução é ambas e mais. Um ato de luto, um relato pessoal, e uma crítica ao método de análise antropológica, ela simultaneamente compreende um número distinguível de processos, nenhum dos quais elimina os outros. Similarmente, eu argumento no que segue que o ritual em geral e os caçadores de cabeças em Ilongot em particular formam a intersecção de múltiplos processos sociais coexistentes. 31 Ao aproximar-me das discussões metodológicas que rondam a antropologia e, por que não dizer, as ciências sociais de um modo geral, percebi que não me via sozinho em muitas de minhas angústias no decorrer da pesquisa. Parece ser um sinal dos tempos em que vivemos, que alguns chamam pós-modernos, que haja uma certa fadiga com a posição do pesquisador que desde onde está, distante e intocável, aponta para situações homogêneas e facilmente generalizáveis e que identifica como melhores ou piores, mais ou menos adequadas. Rosaldo (1989, p. 20) se coloca essas questões: Esse livro argumenta que um mar de mudanças em estudos culturais tem erodido a uma vez dominante concepção de verdade e objetividade. A verdade do objetivismo – absoluto, universal e atemporal – tem perdido seu status de monopólio. Agora compete, em termos mais igualitários, com a verdade dos casos estudados que estão embebidos em contextos locais, formados por interesses locais, e colorido por percepções locais. A demanda por análises sociais tem mudado para incluir não somente as verdades eternas e generalizações como leis mas também processos políticos, mudanças sociais, e diferenças humanas. Termos como objetividade, neutralidade, e imparcialidade referem-se a posições subjetivas uma vez dotadas de grande autoridade institucional, mas elas são nem mais nem menos válidas do que aquelas mais engajadas. (...) Análise social deve agora lutar com o entendimento de que seus objetos de análise são também sujeitos de análise que criticamente interrogam etnógrafos – seus escritos, sua ética, e suas políticas. Essas modificações vividas ao longo do século XX não poderiam ser descontextualizadas de uma leitura mais ampla, política e econômica, sobre a transição porque passa o ocidente de uma modernidade para o que tem sido chamado de modernidade tardia ou pós-modernidade. Período caracterizado, de acordo com Lyotard (2004), pelo fim das metanarrativas, dos esquemas narrativos totalizantes e globalizantes que tentam explicar toda a história humana. Do mesmo modo, fala-se de uma antropologia pós-moderna, já anunciada pelo próprio Geertz ao rechaçar os sistemas em favor das contradições, dos 32 abismos, etc.. E o campo de investigação deixa de ser apenas um espaço para catalogação ou compreensão científica de sociedades exóticas distantes para se transformar também num espaço de diálogo com o próximo convertido em “outro” mediante a adoção de critérios metodológicos bem definidos. Por isso, preferimos a ideia de interlocutores de pesquisa, pelo menos em relação aos MFC, na medida em que algumas das questões centrais de reflexão e de debate puderam também ser discutidas diretamente com o eles. Por exemplo, quanto ao papel dúbio que apontávamos da MFC em relação ao tema da medicalização. Por interlocutores de pesquisa, Schmidt entende como (2008, p. 394-5): A figura do interlocutor evidencia uma reorientação da tradição etnográfica no contexto contemporâneo de estudos que focalizam a interpretação dos sentidos e significados de modos de viver, sentir e pensar que constituem a pluralidade de mundos coexistentes e conectados na atualidade. Desta interpretação, os “pesquisados” não estão excluídos, tornando-se parceiros intelectuais dos pesquisadores na compreensão de fenômenos e na elaboração do conhecimento. O encontro etnográfico, neste caso, é objeto de constante análise crítica e lugar de negociações e acordos sobre objetivos, destinos, formas de divulgação e autoria da pesquisa. Essa foi em resumo a intenção ao detalhar as referências utilizadas para a escolha do método de pesquisa e as dúvidas e angústias vividas pelo MFC e pesquisador. Qual a validade desse tipo de pesquisa, quais os limites, o que poderia aportar para as ciências sociais? E, ainda, algumas reflexões sobre as possibilidades da observação participante para um nativo da APS, especialmente a partir dos aportes de Geertz, como a do movimento pendular entre experiência próxima e distante e da descrição densa. Por fim, me parece muito relevante trazer algumas das questões éticas inerentes à pesquisa. ASPECTOS ÉTICOS Diversos aspectos éticos me pareceram muito importantes desde o início da escolha do campo de investigação. Se, por um lado, a minha ida aos C.S. e a entrada em um espaço bastante reservado, que é o das consultas médicas, poderia oportunizar inferências e reflexões que não 33 obteria em uma análise documental, por outro, sei que corria o risco de expor, até desnecessariamente essas pessoas, profissionais e pacientes. Não só a exposição de situações de vida íntima relatadas por essas pessoas, assim como a prática do profissional, me preocupavam, mas também a provável interferência que minha presença poderia provocar em cada encontro. Obviamente, todas as medidas de praxe foram tomadas. A obtenção da autorização da instituição responsável pelos Centros de Saúde. A consulta ao Comitê de Ética em Pesquisa, que aprovou a pesquisa. E o consentimento informado, tanto dos profissionais com os quais tive contato em todo esse período, assim como de cada um dos pacientes envolvidos. Desde o início procurei esclarecer para esses profissionais que o objetivo da pesquisa não era fazer algum tipo de avaliação detalhista do seu trabalho ou de sua performance, e que se alguma abordagem se destacasse a intenção seria estabelecer conexões com a prática médica de um modo mais geral. Claro que, por mais que inúmeros cuidados tenham sido tomados, há muitos outros que acabam surgindo na própria relação do pesquisador com seus interlocutores no campo de trabalho. Como me apresentar aos pacientes? Como e quando solicitar o preenchimento do consentimento? Que espaços buscar para conhecer nos C.S.? Entre outras, foram as questões que surgiram somente no decorrer da pesquisa e que aí mesmo encontraram respostas. Para Schmidt (2008, p. 395), O pesquisador participante precisa, é claro, de educação teórica e conceitual. Porém, assim como na esfera da ética como morada, a pesquisa de campo ou o encontro etnográfico dependem, fundamentalmente, da experiência prática. A experiência prática convoca o pesquisador para a reinvenção do método no plano concreto das relações com outros, como ele, autônomos, obrigando-o a responder pessoalmente pela distribuição democrática dos lugares de escuta, fala e ação no decorrer da pesquisa, peas formas de apropriação e destinação do conhecimento elaborado e pela apreciação crítica de efeitos de dominação e de emancipação do conhecimento e sua divulgação. 34 Apesar de entender pelo menos os MFC como interlocutores de pesquisa, em especial se pensarmos o capítulo IV, que trata da MFC, não cheguei ao ponto de citá-los nominalmente. Tanto os MFC, os demais profissionais de saúde e pacientes, assim como os C.S. tiveram seus nomes alterados. 35 Quando certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso. Franz Kafka CAPÍTULO 1 - DO AUTOR: AUTOSCOPIA Há aproximadamente um ano formamos um grupo de trabalho para estudar as habilidades de comunicação e a relação médico-paciente (RMP). Todo mês nos reunimos para assistir à vídeo-gravação de uma consulta de um dos participantes. Essa atividade é conhecida como Problem Based Interview (PBI) e vem sendo utilizada há muitos anos na Europa, especialmente por médicos de família e comunidade e por enfermeiros que trabalham na Atenção Primária em Saúde (APS). Em Portugal, esse exercício, o de observar o próprio trabalho, é conhecido como autoscopia. De acordo com Sadalla e Larocca (2004, p. 421), “a ideia de autoscopia diz respeito, portanto, a uma ação de objetivar-se, na qual o eu [grifo das autoras] se analisa em torno de uma finalidade”. Nessa técnica, quando se utiliza a vídeo-gravação, “o indivíduo se vê em ação, o que permite o retorno da imagem e do som, retorno da informação, possibilitando uma modificação da ação pela percepção de causas e efeitos” (SADALLA e LAROCCA, 2004, p. 421). De fato, as vídeogravações desse grupo de estudos gerou muitos estranhamentos em cada um dos participantes e observações valiosas para a reflexão da própria prática. Curiosamente, investigando o termo autoscopia, descobri que também é utilizado para descrever aquelas experiências extra-corpóreas, como nos define a enciclopédia virtual, wikipedia (2011): Autoscopia é definida como uma experiência em que uma pessoa enquanto acreditando estar acordada vê seu corpo, o ambiente e o mundo a sua volta como se estivesse fora do seu corpo físico. Mais precisamente, experiências de autoscopia são caracterizadas pela presença dos três fenômenos a seguir: Desencorporação (situação onde aparenta estar do lado de fora de um corpo); Impressão de ver o mundo de um ponto distante e elevado, tendo uma perspectiva visual espacial (extracorporeamente, mas perspectiva visual-espacial egocêntrica); e 36 Impressão de ver o próprio corpo (autoscopia) a partir das perspectiva descritas. Pois bem, o relato que trago a seguir não é nem a primeira forma de autoscopia, já que não é consequência de uma vídeo-gravação de mim mesmo, e muito menos a segunda opção, o que nos levaria para discussões bem mais metafísicas do que eu poderia argumentar. O texto que segue foi escrito para uma das disciplinas do doutorado, a de metodologia e epistemologia, ainda em 2009. A tarefa solicitada aos doutorandos consistia em fazermos uma breve etnografia, deveríamos escolher um campo de estudo qualquer, realizar uma observação e anotar em um diário de campo o que havíamos visto, sentido, refletido, etc. Como um antropólogo neófito escolhi meu próprio local de trabalho para ser observado e durante uma manhã de atendimento procurei anotar entre uma consulta e outra o que havia me chamado a atenção, em relação ao paciente e suas demandas, mas também me perceber, a minha postura, reações, prescrições, etc.. Esse breve exercício acabou me estimulando a fazer toda a pesquisa de campo do doutorado nesses moldes, utilizando como base para as discussões que faremos a observação da consulta médica. De todo modo, a atividade do antropólogo me parece hoje uma ampliação do que fazemos em pequenas doses mensais em nossas sessões de autoscopia ou de vídeo-gravação de consultas. Conceitos como o de estranhamento e distanciamento, caros à antropologia, como nos descreve, entre outros, DaMatta (1987, 156-7), aparecem mesmo que superficialmente nesses encontros: De fato, só tem Antropologia Social quando se tem de algum modo o exótico, e o exótico depende invariavelmente da distância social, e a distância social tem como componente a marginalidade (relativa ou absoluta), e marginalidade se alimenta de um sentimento de segregação e a segregação implica em estar só, desembocando tudo – para comutar rapidamente essa longa cadeia – na liminaridade e no estranhamento. O exercício que se inicia logo abaixo de certa forma resume todo o trabalho que será apresentado nos próximos capítulos, que foi o de buscar alguma distância e estranhamento a partir do que não me poderia 37 ser mais próximo, que é minha própria profissão e meu cotidiano. Da dupla tarefa do etnólogo descrita por DaMatta (1987, 157), a de “a) transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico”, a experiência se aproxima mais da segunda certamente. Transformar o familiar em exótico é, para DaMatta (1987, p. 157) justamente o desafio atual da antropologia, que é o de: voltar-se para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante a um auto-exorcismo, pois já não se trata mais de depositar no selvagem africano ou melanésio o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar, mas de descobri-las em nós, nas nossas instituições, na nossa prática política e religiosa. Vejamos que distância conseguiremos percorrer nessas idas-evindas entre o familiar e o exótico. 1.1 UMA AUTOSCOPIA Trabalho como médico de família e comunidade (MFC) em um centro de saúde de Florianópolis. A medicina de família é reconhecida no Brasil, já há alguns anos, como uma especialidade médica, assim como a cardiologia ou a radiologia, o que pode ser visto como um paradoxo já que descende diretamente da medicina geral, que antigamente tratava de todo o acompanhamento clínico enquanto à cirurgia geral restavam os procedimentos mais invasivos. Como no século XX prosperou a superespecialização e a fragmentação da medicina em diversas subáreas, para sobreviver hoje provavelmente é preciso dizer que se é especialista naquilo que faz. A própria definição da Associação Mundial de Medicina de Família (WONCA) já traz esse curioso arranjo: “A Medicina Geral e Familiar (...) é uma especialidade [grifo meu] clínica orientada para os cuidados primários...” e que lida “...com todos [idem] os problemas de saúde, independentemente da idade, sexo, ou qualquer outra característica da pessoa em questão.” Esse tema do geral e do específico costuma ser fonte de calorosos debates na Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). A esse respeito Boaventura Santos (2006, p. 75) também explicitou seu estranhamento: “o médico generalista, cuja ressurreição visou compensar a hiperespecialização médica, corre o risco de ser convertido num especialista ao lado dos demais.” 38 As generalidades que atendo ou atendemos, já que trabalho em uma equipe que conta com uma enfermeira, técnicos de enfermagem, técnicos administrativos e seis agentes comunitários de saúde, vêm das quase quatro mil pessoas que acompanhamos e para quem representamos a referência imediata em saúde. Assim funciona a Estratégia em Saúde da Família, divide-se uma cidade em territórios que ficarão sob a responsabilidade de equipes de saúde. Essas pessoas serão acompanhadas pelas equipes e mesmo que acessem o sistema de saúde, a que chamamos SUS (Sistema Único de Saúde), por outras vias e que também acompanhem com outros profissionais de saúde nós procuraremos integrar suas histórias de saúde ou de doença e coordenar os seus cuidados pelos outros pontos do sistema. Assim deveria ser, pelo menos. Costumam perguntar, especialmente as pessoas das classes médias brasileiras, quando falo que sou médico de família e comunidade, se passo o dia visitando as pessoas em suas casas. Não é bem assim, menos de 10% da nossa rotina é dedicada a essas visitas e, geralmente, àquelas pessoas que não podem sair de casa, por estarem acamadas ou com outras dificuldades de locomoção. Boa parte do tempo é dedicada ao consultório. Ali, naquela sala de talvez 9 ou 10m2 recebo diariamente de 25 a 30 pessoas. E ali ouço suas histórias. Dia desses, no consultório, enquanto a Sra. Dilma se queixava do filho que usa drogas, me permiti escapar por um momento em imaginação e voei até o teto do centro de saúde, dali de cima pude observar todas as suas 11 salas e em cada uma delas os pacientes contando suas histórias para médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. E como a senhora continuasse falando de seu filho, me permiti ainda um vôo mais alto e diante de todo o mapa do Brasil, imaginei que naquele momento milhares de pessoas conversavam com as mais de 32 mil equipes de saúde da família brasileiras... “O quê que o Sr. acha, doutor? Quem sabe o Sr. conversa com ele?” Claro, claro, Dilma, se seu filho aceitar podemos marcar uma consulta para ele, respondi. Pré-natal, rotina da criança, hipertensos e diabéticos, unha encravada, furúnculo, bola na garganta, bola no nariz, coceira na perna, mancha no rosto, dor de ouvido, dor de cabeça, dor nas costas, dor nas costas, corrimento, piolho, check-up, check-up, tristeza, falta-devontade, dor no peito, medo, coração acelerado, angústia, muita angústia. Marido que bebe, marido que bate, filho que bebe, filho que foge, filho que morre. Mãe pra cuidar, pai pra cuidar, filho pra cuidar. O 39 trabalho, o patrão, o horário, estresse, falta de tempo, falta de dinheiro, conta pra pagar. Ouvir atentamente, passar a sensação de que se está ali, várias horas por dia, é um dos maiores desafios dessa prática. À diferença do psicólogo ou do psicanalista, o médico de família não lida direta e exclusivamente com os sofrimentos da alma, eles surgem em meio a queixas como as apontadas acima, são dores do corpo, preocupações com dores do corpo e, algumas vezes sim, trata-se primeiro de uma angústia ou de uma tristeza, noutras percorre-se um longo caminho até chegar lá. E ouvir atentamente pode ser o desenlace de uma queixa. Não sei bem o que as pessoas sabem de seus problemas quando nos procuram ou o quanto sabem das nossas possibilidades de ajudar, geralmente subestimamos seus potenciais. A verdade é que a queixa, aquilo que declaram como motivo da consulta, quase sempre está no corpo palpável, físico. Uma dor no peito que se insinua como infarto ou uma dor de cabeça que se anuncia tumor cerebral. É na conversa que pode surgir algum desenlace, “é verdade, doutor, essa dor no peito começou no instante em que me despedi de meu filho na rodoviária e já faz 3 anos que não o vejo”. Michael Balint, psicanalista húngaro, organizou durante vários anos, nas décadas de 1950 e 60, seminários com médicos de família ingleses (os GPs - general practitioners). Esses médicos relatavam nos seminários os casos que atendiam, como abordavam as situações mais difíceis, como se sentiam nessas situações, que eram acompanhadas por anos, conforme o atendimento seguia (BALINT, 2005). Balint imaginava que o espaço de trabalho do MFC por sua exposição constante ao paciente, em diferentes lugares (no centro de saúde, na casa, na rua), seu contato com toda a família e com situações e problemas variados dessas famílias permitia a ele uma forma diferenciada de psicoterapia (BALINT, 1966). Ele partia da seguinte premissa: “a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico...” mas pouco se sabe sobre a sua farmacologia, seu modo de administração, suas vantagens e seus efeitos colaterais (BALINT, 2005, p. 3). Apesar de seus esforços e da expansão dos grupos Balint em todo o mundo, a relação médico-paciente, as habilidades de comunicação, a subjetividade do próprio médico e a intersubjetividade são temas pouco estudados. Nas graduações da área da saúde, em que o tema deveria ser obrigatório, menos ainda, pouco se avalia a relação entre o profissional de saúde e o paciente. Quando a clínica strito senso abandona o médico de família em seu consultório, quando já se 40 vasculhou demais o paciente, quando não há mais explicação para o problema ali colocado, quando a pessoa sentada em frente começa a dizer o que pensa, entramos em um outro mundo, espaço que não pertence ainda à biomedicina apesar de todos os esforços da neuropsiquiatria. E é esse mundo de histórias, memórias, vivências, sofrimentos irredutíveis, complexos e singulares que surgem na relação médico-paciente que gostaria de explorar agora. 1.2 QUEM NOS PROCURA E POR QUÊ NOS ENCONTRAM? Nas primeiras consultas dos pacientes costumo fazer algumas perguntas gerais, de onde vem, se é casado, solteira, com que trabalha, quantos filhos e filhas. Procuro saber melhor quem é a pessoa ali em frente, qual sua história. Essas informações têm para mim inicialmente uma validade médica estrita, há diversos problemas de saúde que se correlacionam aos locais habitados, às diferentes formas de trabalho e aos filhos, da quantidade e da forma como nasceram. Mas abre também aquele encontro para uma conversa mais informal, que nos aproxima como seres que vagam pelo mundo. Acostumadas muitas vezes às consultas que vão direto ao ponto e que duram poucos minutos, algumas pessoas estranham voltar-se sobre si mesmas e ter a fala, a fala sobre suas vidas. Acessam a memória, buscam os caminhos de identidade, os percursos que só elas percorreram – “Casada, tenho 2 filhos, sou doméstica, vim de Lages, moro aqui há 3 anos”. A maioria da população que atendo não é de Florianópolis e, apesar de virem de muitas cidades diferentes, dá para identificar algumas regiões que concentram essas emigrações – oeste de Santa Catarina, sul do Rio Grande do Sul, oeste do Paraná. E os relatos sobre as causas da migração são bem diversos, “vim porque Foz do Iguaçu tá muito violenta, perdi filho e marido”, “lá não tem emprego né, Doutor”, “vendi o sítio, vim pra cuidar da minha saúde”. Poucos são os relatos de que a vinda para Florianópolis deva-se às suas belezas naturais, talvez essa seja a explicação da classe média, funcionários públicos aposentados, jovens universitários. Apesar dessas migrações todas ocorrerem principalmente nos últimos 10 anos, muitos partindo dos mesmos lugares, as histórias são diferentes. Eu mesmo um migrante de classe média, que veio para continuar os estudos, mas em boa parte encantado pelas promessas de qualidade de vida anunciadas da Ilha da Magia. A noção de habitus de Bourdieu ajuda a entender esse processo, da tensão entre a condição social que impele a uma ação e da ação que produz condições sociais (BOURDIEU, 1980). Como afirma Wacquant (1997, p. 14), “a teoria do habitus reconhece que os agentes fazem o 41 mundo social ativamente ao empenharem instrumentos corporificados de construção cognitiva, mas também afirma (...) que tais instrumentos foram eles próprios produzidos pelo mundo social. ” A corrida da área rural para as cidades e do interior para a capital é um fenômeno estudado e explicado pela sociologia, pelos estudos que tratam da urbanização, da industrialização das cidades e do campo. As grandes explicações tratam da condição social daquele período que, por sua vez, demonstram um leque de possibilidades de ação que se abre às pessoas. Seu João e sua família, que moram em um morro no Norte da Ilha, representam apenas mais uma dessas histórias da corrida às capitais, mas que como as demais têm suas particularidades. Ele veio para Florianópolis, de Chapecó, quando sua mulher ficou doente e teve que ser internada na capital por alguns meses, rapidamente vendeu sua terra e vieram. Sua casa era a última seguindo pela trilha, de madeira, três cômodos, e pelo que me relatou não diferia muito da sua casa do oeste, sentia falta era da roça. Tomamos alguns “mates” em seu quintal, de onde se avistava toda a orla de famosas praias da região. E se o Sr. pudesse voltar, Seu João? “Ah, eu voltava, mas os filhos não se acostumam mais com a roça, né?” Mesmo na capital essa transição entre o mundo rural e urbano ou entre tradição e modernidade é um processo inacabado. Não somente porque continuidades sempre existirão entre um e outro modo de vida, mas porque na periferia da Ilha de Florianópolis essa transição ainda é muito recente. Há 30 ou 40 anos as comunidades do Norte da Ilha caracterizavam-se pela divisão do território entre praia e sítio. A praia para os pescadores e o sítio para os agricultores, ambos com características que ouso chamar de pré-modernas, famílias patriarcais, influência católica, vida de subsistência e em relação à saúde, os cuidados eram dispensados geralmente pelas mulheres, que benziam, prescreviam os chás e ervas medicinais e auxiliavam os partos. O que hoje chamamos de centro, era conhecido como cidade. E acontece algo interessante quando me refiro ao lugar em que moram com a denominação antiga. Ingleses é o nome atual do bairro em que trabalho, mas que reúne três regiões que eram chamadas pelos nativos de Sítio, Praia e Aranhas. Acessar essas memórias são como janelas para o passado, como diz Seixas (2004, p. 47) – “aquilo que retorna vem inteiro, íntegro porque com suas tonalidades emocionais e „charme‟ afetivo”. Quando utilizo os nomes antigos e invado esse espaço que hoje é estranho e exótico e que por isso se tornou memória me olham inquirindo: “mas o Sr. é daqui?” 42 Essas testemunhas de um modo de vida bastante distinto do atual fazem parte da população da área que atendo. Uma delas é Dona Ziza, uma senhora de 91 anos, a quem visito pela dificuldade de locomoção – caminha com certa dificuldade por causa da catarata. Ao me mostrar umas manchas nas pernas me pergunta, “será que é isipra?” e a partir daí, conversamos algum tempo sobre os diagnósticos e tratamentos ou cuidados de sua infância, adolescência e boa parte da vida adulta. Isipra, côbro, arca-caída são algumas das categorias em extinção e a benzedura era uma das principais terapias. D. Ziza, ela mesma uma benzedeira, me ensina a benzer de isipra, “Pedro Paulo foi à Roma, Paulo Pedro foi à Roma...” e por aí vai e me relata vários de seus sucessos terapêuticos. Médico só havia na cidade e o pouco contato que tinham com essa medicina parece muito bem guardado em suas memórias. Conselhos ou medicamentos prescritos há 40 anos soam como mandamentos a serem cumpridos ou como erros que perduram até os dias de hoje. Aproximar-se das diferenças entre o tradicional e o moderno na área da saúde e o contato com populações como os moradores antigos da ilha que foram pouco medicalizados ajuda a refletir sobre a própria prática. Dois dos problemas de saúde com que lidamos comumente são a hipertensão e o diabetes e representam bem a idéia de doenças modernas. Primeiro porque chamamos de doenças, mas prescindem da experiência do adoecimento, são geralmente assintomáticas. Lidam com a idéia de fator de risco e de probabilidade, ser hipertenso significa ter uma chance maior de um infarto ou um derrame, mas não é uma garantia de que acontecerá. São filhas de uma medicina social ou preventiva, em que o objetivo maior é o controle das populações e não de cada indivíduo especificamente, ainda que sua aplicação prática seja majoritariamente individualizada (FOUCAULT 1979, p.84-85). Prescrever um anti-hipertensivo para um morador antigo costuma ter duas respostas possíveis: “Não, não quero não Doutor, não tô sentindo nada!” ou “se o Dr. tá mandando né, tem que tomar”. No primeiro caso, algumas interpretações são possíveis, uma é a que remete a noção de doença ao adoecimento e que costuma ser complementada com uma idéia de destino e fatalidade: “quando chegar a hora, Dr., não tem jeito”. No segundo caso, a autoridade do médico parece derivar da do padre, eles dizem “é Deus no céu e vocês aqui na terra” ou “vocês são anjos enviados por Deus”. O conceito de risco que é muito utilizado na medicina preventiva está associado, segundo Giddens (1991, p. 41), ao de confiança, que implica na “consciência geral de que a atividade humana 43 é criada socialmente e não dada pela natureza das coisas ou por influência divina”. Como vimos nos exemplos acima, parte dos pacientes que atendemos ainda vive sem a idéia de risco, mas em um mundo de perigos e crenças. E na relação médico-paciente, nesses casos, dá-se o encontro entre uma medicina moderna, que dialoga constantemente com o conceito de risco, por exemplo, e pessoas que aprenderam a vivenciar a morte, os perigos e o adoecer de uma forma diferente. O bairro dos Ingleses vive hoje predominantemente de serviços, especialmente do turismo. Recebe pessoas de várias partes do mundo no verão e transforma-se para isso com a abertura de bares, hotéis, imobiliárias, lojas, que desaparecem no inverno. Há pouquíssimas áreas rurais, a maioria com gado, apenas pasto, sem as roças de antigamente. Nas praias, há mais pescadores por lazer do que por profissão. Os filhos daqueles que viveram ainda uma vida tradicional nessa ponta da ilha trabalham agora como camareiras, pedreiros, padeiros, vendedores, empregadas domésticas, jardineiros, zeladores, entre outros na área de serviços. E quais as diferenças para o médico que os atende? Não se trata apenas de uma diferença de gerações, mas de uma diferença de modos de vida. A Dona Ziza, que trabalhou na roça e foi (ainda é) benzedeira, ganhou todos os filhos em casa com parteira; sua filha, D. Maria, que faz a limpeza em um condomínio, teve seus 3 filhos na maternidade, de cesariana e fez laqueadura; e o neto Gabriel, de 18 anos, que abandonou os estudos no 1º ano do ensino médio, trabalha como frentista em um posto de gasolina na rodovia. São exemplos que demonstram bem o valor de uma abordagem sociológica ou antropológica proposta por Velho (1980, p. 30-31), que leve em conta a complexidade da sociedade moderna-contemporânea com sua “heterogeneidade e variedade de experiências e costumes, contribuindo para a extrema fragmentação e diferenciação de papéis e domínios, dando um contorno particular à vida psicológica individual [grifo do autor]”. Se voltarmos ao exemplo da medicina preventiva, para Maria e para o Gabriel, a preocupação com a prevenção já é muito mais presente em suas vidas, consultam freqüentemente para o check-up, querem medir o colesterol, querem saber dos riscos de terem um ataque cardíaco ou um derrame. Ao mesmo tempo em que se preocupam mais com isso do que a Dona Ziza, o modo de vida que levam os coloca em maior risco, fazem menos atividade física e têm uma alimentação mais industrializada (e mais salgada e calórica) do que Dona Ziza jamais teve. A relação com a medicina e com o médico também é diferente, não me 44 vêem como um enviado de Deus, mas acreditam no conhecimento científico de que sou um portador enquanto for merecedor de tal confiança. Tanto é que são comuns os confrontos quando proponho uma conduta diferente daquela veiculada na televisão – uma das principais divulgadoras de verdades científicas. Uma das características da modernidade, para Giddens (1991, p.35), é o que chama de sistemas peritos, “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. Esses sistemas promovem uma heteronomia, porque nos desobrigam de saber ou fazer tudo aquilo que necessitamos para nossa sobrevivência, são também mecanismos de desencaixe, segundo Giddens, porque retiram relações sociais da proximidade dos objetos ou do conhecimento manejado pelos sistemas peritos. No caso da medicina, que em uma pré-modernidade disputava os cuidados em saúde com as benzedeiras, xamãs, homeopatas, entre outros, o cenário muda com a modernidade. A medicina passa a ser a profissão oficial - o sistema perito - que responde pelos problemas de saúde enquanto as demais ocupações serão perseguidas e consideradas como exercício ilegal da medicina (EHREINREICH & ENGLISH, 2003). Isso implicará em uma intensa heteronomia na saúde, as pessoas não mais se sentirão capazes de cuidar da própria saúde e consultarão os peritos para saber o que se passa, para que descubram o que eles “realmente têm por dentro”. Nas consultas de check up, em que as pessoas vêm sem nenhuma queixa específica, logo após relatarem que passam muito bem, que não sentem nada, solicitam algum exame que “mostre se está tudo bem mesmo”. Na década de 1960 e 70, vários autores denunciaram esse movimento, que ficou conhecido com o termo medicalização, que se refere à contínua transformação de situações cotidianas em problemas médicos. Ivan Illich (1975), talvez o mais conhecido deles, escolheu a medicina apenas para exemplificar o que considerava um paradoxo, que a industrialização pudesse ser contraprodutiva. O aperfeiçoamento e a maior produção de bens e de serviços geraria cada vez maior dependência das pessoas. No caso da saúde, resultaria em menor capacidade de produzir autonomamente saúde e da necessidade cada vez maior de médicos e de uma indústria médica. Quando ouço as histórias sobre a grande mudança ocorrida no norte da ilha nesses últimos anos e, em especial, no cuidado com a saúde, surge não apenas a questão de por quê as pessoas nos procuram, mas também do por quê nos encontram. Qual ou quais as condições sociais que permitiram essa possibilidade? O médico de família e 45 comunidade (MFC) assume nesse contexto um papel que pode ser interpretado de muitas formas, acredito. Ao mesmo tempo em que é um agente que pulveriza e que capilariza esse processo moderno de medicalização, levando a forma de entender e de explicar da biomedicina para os mais diversos rincões, por outro lado impede o acesso direto das pessoas a uma medicina ainda mais medicalizante (se é que se pode colocar assim), que é a das subespecialidades. Um outro fator importante é que a desmedicalizar esses médicos de família está o contato próximo com as pessoas e suas relações familiares e modos de vida. Imerso nesse ambiente fica mais difícil exercer a descontextualização que nos pede a biomedicina. De todo modo, quando se percebe a enorme variedade de queixas que demandam consultas na atenção básica, vê-se que estamos em um processo imenso de medicalização social. O medo e a dificuldade em lidar com problemas simples, como gripes, resfriados, diarréias ou com sofrimentos inerentes à vida como lutos, desilusões amorosas, dificuldades econômicas chama a atenção. Situações com as quais se lidava em casa ou com outros recursos da própria comunidade passam a demandar atenção médica. Bauman (1999, p. 261) nos fala da “ânsia pela comunidade” que caracterizaria esse momento pós-moderno, mas o que se vê nas ruas e bairros do norte da ilha é que não há muitas trocas, vizinhos que se mudam constantemente, casas vazias, poucas praças. As pessoas se encontram nas igrejas ou apenas seguem o roteiro trabalho-casa. A televisão passa a ser um importante canal de contato com o mundo e é por ali que chega grande parte das informações sobre saúde. “Epidemia de Febre-amarela!”, “Surto de Dengue!”, “Trate a osteoporose!”, “Jovem morre de infarto!”, “Faça todos os exames!” são manchetes que carreiam as pessoas até o centro de saúde já com a lista pronta de necessidades – uma estranha forma de autonomia em saúde. Esse tema talvez guarde relação com o que Giddens (1991, p. 43-50) chamou de reflexividade, para ele mais uma das características da modernidade tardia, e que consiste “no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter.” Willians & Calnan (1996, p.1611-13) inspiraram-se no trabalho de Giddens para fazer uma contraposição ao pessimismo dos autores da década de 1960 em relação ao tema da medicalização. Nesse caso, a medicina “...como uma corporação e uma coleção de grupos especializados, torna-se uma empresa cada vez mais reflexiva em termos de sua base de conhecimento, sua organização social e a natureza da prática médica diária.” Segundo esses autores, 46 ainda, há um espaço de crítica entre a população e a medicina moderna, em que a mídia tem um papel crucial de desmistificação da ciência e da tecnologia (WILLIAMS & CALNAN, 1996, p.1615). Haveria um empoderamento da população já que as pessoas estão mais conscientes das fragilidades das corporações, como afirmam no exemplo abaixo: É nesse contexto que a visão da população em relação à ciência e à tecnologia, incluindo a medicina moderna, vem a compor uma dialética que alterna confiança e dúvida, certeza e incerteza, reverência e desilusão. A Medicina, portanto, torna-se uma fonte de esperança e de desesperança na medida em que suas „limitações‟ são expostas como nunca. (WILLIANS & CALNAN, 1996, p.1613) De fato, como exemplificamos acima, as pessoas chegam ao consultório médico munidas de mais informações, já solicitam especificamente o exame ou o procedimento que desejam. E aí costuma se dar um embate entre o médico de família e o paciente, mais intenso até do que aquele que se dava (e que ainda acontece) entre a biomedicina e um senso comum tradicional em relação à saúde, em que as explicações giravam em torno da doença como punição ou como destino. O que a mídia produz gera um embate entre a informação biomédica do médico e o senso comum biomédico do paciente. Senso comum aqui entendido no sentido de Martins (2000, p. 61) que decorre da “partilha, entre atores, de um mesmo método de produção de significados.” Martins (2000) também aponta para o novo que surge de cada reinterpretação dessas informações e que pode ser visto nesse exemplo: “Dr., eu vi na televisão esse problema dos aneurismas cerebrais e como no SUS os exames demoram muito, acho que já poderíamos pedir uma tomografia ou uma ressonância para o meu filho (de 13 anos), porque essa dor de cabeça dele me preocupa e daí até ele fazer a gente já previne, né”. Ou uma outra moça, que me pega no corredor do centro de saúde e me solicita “um favor simples”, que eu preencha uma requisição de um ecocardiograma para sua mãe. Eu pergunto, mas quem pediu esse exame? “Eu mesma Dr., ela já fez 2 eletrocardiogramas que não mostraram nada e eu acho que esse exame vai ver melhor o problema dela”. Lidar com essas situações é extremamente complexo na atenção primária. Da oferta da doença, do sintoma e até de um diagnóstico que 47 os pacientes geralmente trazem para o consultório, pulamos para a solicitação dos exames e a prescrição da terapia. O médico de família se torna, nesses casos, apenas um intermediário, um obstáculo “infelizmente” obrigatório que os pacientes precisam percorrer para satisfazer suas necessidades. Uma das bases do SUS é o conceito de cidadania, por ser um sistema de saúde universal que permite a todos o acesso a seus serviços e também pela idéia de controle social, mas é claro que os recursos são e sempre serão limitados, o que impõe aos profissionais, gestores e usuários uma co-responsabilidade pelos investimentos e gastos. Esses exemplos acima mostram a tensão entre subjetividade e cidadania, proposta por Santos (2000, p. 255): “A aspiração de autonomia, criatividade e reflexividade é transmutada em privatismo, dessocialização e narcisismo, os quais acoplados à vertigem produtivista servem para integrar, como nunca, os indivíduos na compulsão consumista”. Para tentar resumir essa discussão da reflexividade na saúde, o que pode se dizer é que há uma face e uma contra-face. Sim, as pessoas não aceitam passivamente as recomendações e explicações do médico no consultório, colocam suas opiniões, exigem seus exames, buscam formas autônomas de melhorar a sua saúde. Por outro lado, qual o discurso predominante sobre saúde que se divulga e se troca por aí? Medicalizante, medicalizado, que divulga o medo e o terror, que divulga padrões de saúde e de beleza e que é financiado em grande escala pelos laboratórios e pela indústria médica. Resumidamente, passei um retrato tanto das pessoas que freqüentam o centro de saúde em que trabalho e que não deve ser muito diferente das outras periferias de grandes cidades e de como o tema da modernidade está presente em suas vidas. E também porque estamos lá, que condições permitiram que se organizasse essa ampla rede de atenção à saúde e como tem se dado a relação (e as tensões) entre a medicina e uma demanda cada vez maior por serviços médicos. Mas chega um momento na conversa com os pacientes em que seus relatos, ou seja, suas memórias voltam-se ainda mais sobre si mesmas e trata-se de lembrar como determinadas situações mexeram com a própria visão de mundo, de como situações singulares e traumáticas muitas vezes têm relação com um sofrimento atual, com uma dor que persegue. ENCONTROS E DESENCONTROS NA RELAÇÃO MÉDICOPACIENTE 48 A despeito do porquê estamos ali, médico e paciente, o encontro acontece, algumas vezes há diálogo e efeitos. Marina, uma senhora de uns 40 anos, que me consulta pela primeira vez, começa como quase todos os pacientes, justificando a vinda: “vim porque tenho algumas dores, nos ombros, nas costas, desde abril do ano passado”. Chama a atenção a data precisa do início dos sintomas, mas ainda não exploro, deixo-a falar, “é uma dor contínua, sempre aquela pressãozinha...”, “e a dor de cabeça também, não pára” fala com expressão de dor. Não sei exatamente quais são os sinais, mas alguma coisa parece dizer ou indicar quando sob essas dores, verdadeiramente sofridas, moram outras coisas. Quando se adquire um pouco de experiência com casos assim, é possível escolher até o momento de aprofundar. “Na verdade, Dr., ando muito triste, sem vontade pra nada, se pudesse eu desaparecia”. Mas, Marina, eu pergunto, você me disse que está assim desde abril, aconteceu alguma coisa? Às vezes, descortina-se algo: “Em abril, meu marido descobriu uma outra filha, de 13 anos, abandonada pela mãe...”, olhei minhas anotações e percebi que estão casados há mais de 20 anos, portanto, parece se tratar de um sofrimento pela recente descoberta de uma traição antiga, mas ela continua “...e agora eles vivem juntos, saem o tempo todo, ele só dá atenção para ela” e me olha fazendo sinais de “o Sr. entende né?” em um misto de satisfação e inibição pelo que me tinha revelado. Não tenho a menor idéia do efeito dessa nossa conversa, ao sair ela me pareceu um pouco mais tranqüila do que ao entrar, mas lá fora seus problemas continuam. Diante de uma declaração como essa qualquer conselho pode ser muito perigoso, que sinais ela teria visto para levantar tal suspeita? De que forma a traição que gerou a filha não teria abalado a sua confiança no esposo? Por fim, como achava que os seus filhos também suspeitavam mas ainda não havia conversado diretamente com eles, pensou na possibilidade de se abrir para os filhos e planejarem algo conjuntamente. Em relação à dor, ela mesma assentiu que teria a ver com toda essa situação e que talvez um analgésico bastasse. Fora uma maior medicalização de suas queixas que foi evitada e a economia de exames desnecessários, como raio-x, tomografias e consultas com outros especialistas, que outros significados podem ser retirados dessa consulta? O ensino da medicina moderna se desenvolve com a técnica da aprendizagem à beira do leito hospitalar, em que o professor discute o caso do paciente com os seus alunos formando um círculo que exclui o paciente, que não tem acesso ao que se discute. O objetivo é a obtenção da melhor história clínica possível, que inclui uma entrevista dirigida e 49 um exame físico completo, para fazer o diagnóstico da doença. Não há maior interesse pela explicação ou narrativa do paciente e não há um diálogo propriamente dito, porque a conversa com o paciente é apenas um pressuposto para o diagnóstico, que será sempre da equipe médica. O diálogo que existe de fato é com a doença, é com ela que se quer conversar, aproximar-se, perscrutar, e o relato do paciente é apenas um interposto. É um modelo que funciona razoavelmente para o que se chama de doença orgânica, mas e quando não se encontra um substrato físico como um tumor, um abscesso, uma fratura que justifique a queixa do paciente? Casos assim, tão comuns na prática médica mesmo hoje, estão na base do nascimento da psicanálise, como demonstraram Freud e Breuer ao estudar a histeria, em 1895, o que está relatado no livro “Estudos sobre a histeria”. Essa experiência fez com que a medicina, ou parte dela, passasse a entender o indivíduo não apenas como unidade biológica, mas como unidade psicológica. O que não teria ocorrido por acaso ou apenas graças à genialidade de Freud. Para Mauss (1974, 241), a categoria do “eu”, ser psicológico, é conseqüência de um longo caminho que percorre o ocidente, “de uma simples mascarada à máscara, de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo, deste a um ser de valor metafísico e moral, de uma consciência moral a um ser sagrado, deste a uma forma fundamental do pensamento e da ação...”. E hoje, a sociedade complexa contemporânea expõe, segundo Velho, o indivíduo a “experiências diversificadas, quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundo contrastantes, quanto menos fechada for sua rede de relação (...) mais marcada será a sua autopercepção de individualidade singular [grifo do autor].” (VELHO, 1980, p.32) O desenvolvimento da psicanálise representa, de toda forma, uma guinada em relação ao que a medicina produzia no campo da saúde mental. A Psiquiatria, que nasce com a medicina moderna, buscava também um substrato orgânico que explicasse as doenças e para isso a entrevista com o paciente baseava-se na busca minuciosa por padrões, detalhes que pudessem ser classificados, como se pode observar nesse texto da primeira edição da Annales Médecine & Psychologie, publicado em 1843: A observação, na alienação mental, é repleta de dificuldades; ela difere da observação clínica ordinária pelo nome, duração, obscuridade e complexidade dos fenômenos que ela deve abraçar. É preciso inquirir as disposições morais 50 e intelectuais que são feitas no curso da vida da doença (...) É preciso examinar, estudar todos os dias, todas as horas, espiar as condutas, seus atos, seus discursos, sua fisionomia, sua atitude e até o seu silêncio; nada deve ser subtraído da atenção da medicina...” A anatomia, fisiologia e patologia forneciam na ocasião os maiores avanços na medicina. Boa parte das doenças que conhecemos hoje teve seus mecanismos desvendados nesse período. Havia a mesma expectativa em relação às chamadas doenças mentais e, aos poucos, aquilo que se definia simplesmente como loucura ou alienação ganhava diagnósticos mais variados. O que se anunciava à época era a promessa de que tudo o mais poderia ser descoberto, como se vê em mais um exemplo da Annales Médecine & Psychologie: Nós dissemos freqüentemente que a anatomia do cérebro seria nosso melhor guia sobre as pesquisas psicológicas; é útil lembrar que hoje a observação dos fenômenos morais e intelectuais, nos fornecem as induções positivas sobre o engendramento, a sucessão e a complicação desses fenômenos, é um guia excelente para nossas pesquisas anatômicas e fisiológicas. O advento da psicanálise influenciou bastante a psiquiatria, as primeiras edições do DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais) ainda levavam em conta algumas categorias da psicanálise, como a idéia de neurose, por exemplo. Nas últimas décadas a psiquiatria se assume cada vez mais como uma neurociência e o excerto acima, que é de 1843, volta a ser significativo nos dias de hoje. Para comparar cito abaixo um texto recente do principal jornal de psiquiatria norte-americano, o American Journal of Psychiatry, que trata dos endofenótipos, que seriam características plásticas ou conformacionais do cérebro vistas por tomografias que teriam um poder preditivo em relação a diagnósticos e terapias, o texto diz o seguinte: “Pode a neuroimagem realmente nos ajudar a atingir o objetivo de identificar os endofenótipos relevantes para tratamento de depressão unipolar ou outras desordens psiquiátricas? (PHILLIPS, 2007, p. 698) A formação médica inclui obrigatoriamente a disciplina de psiquiatria, o que não significa a apresentação da psicanálise ou mesmo da psicologia e das diferentes abordagens psicoterapêuticas. A relação 51 médico-paciente costuma ser dada na disciplina que chamamos de propedêutica, em que se ensina a entrevista médica focada, como extrair daquele contexto os sinais e sintomas que levem ao diagnóstico. Para exemplificar tanto a propedêutica ensinada e aprendida hoje nos cursos de medicina quanto o que se discute em psiquiatria, cito um caso que atendi com um aluno do último ano do curso de medicina da Universidade Federal de Santa Catarina. A Sra. Joana, de 30 anos, morava há 8 meses em Florianópolis. O marido estava preso no oeste do estado, onde ela morava, por assalto. Joana havia procurado o Centro de Saúde e realizado duas consultas comigo porque se sentia triste e angustiada há algumas semanas. Chegou a pensar em suicídio, mas não levava a idéia adiante em função dos filhos. Nesses encontros, ao permitir que falasse, emergiu como grande preocupação sua o anúncio recebido recentemente de que seu marido sairia da cadeia em um mês. E como era violentada freqüentemente, com a cumplicidade da família do marido, a perspectiva da sua libertação a apavorava. Sentia-se impelida a voltar para ele por suas obrigações como esposa, por estar com seus filhos, por receber sua pensão, mas ao mesmo tempo não queria, sentiase bem nessa nova vida, em uma outra cidade, longe dele. E eis que Joana nos procura um outro dia e é recebida por esse nosso aluno. Ao entrar no consultório, eles já conversavam há alguns minutos, o aluno fazia a entrevista padrão, seguia o roteiro do DSM-IV. O que sente? Há quanto tempo? Pensa em se matar? A forma como conduzia a história curiosamente apagava ou borrava todo o colorido que descrevi acima. A própria Joana, que já havia me relatado tantos detalhes importantes, diante daquela condução restringia-se a responder objetivamente às perguntas e parecia completar perfeitamente o quadro diagnóstico que se desenhava – depressão maior. Intervim, perguntei como estava, recordamos algumas coisas do que havíamos conversado e sua “doença” voltou subitamente a dialogar com suas experiências. Uma residência médica é uma pós-graduação em serviço, que pode durar de 2 a 5 anos de acordo com a especialidade e na qual se aperfeiçoa a teoria e principalmente a prática daquela área do conhecimento. Na maioria das residências não há uma preocupação maior com a entrevista médica e a relação médico-paciente. Nas residências em medicina de família e comunidade, a depender muito do local de formação e do preceptor, pode se aprender algo diferente da entrevista médica tradicional, o que tem sido chamado de medicina centrada no paciente. Seguem abaixo alguns excertos de um documento da WONCA (2001) sobre as principais características da Medicina de Família e, dentre essas, a idéia de abordagem centrada na pessoa: 52 c) desenvolver uma abordagem centrada na pessoa, orientada para o indivíduo, a família e a comunidade; d) ter um processo de consulta singular em que se estabelece uma relação ao longo do tempo, através de uma comunicação médico-paciente efetiva; k) lidar com os problemas de saúde em todas as suas dimensões física, psicológica, cultural e existencial. Especificamente em relação à abordagem centrada na pessoa, o mesmo documento diz ainda: A Medicina Geral e Familiar lida com as pessoas e os seus problemas no contexto das suas circunstâncias de vida e não como patologias ou “casos” impessoais. O ponto de partida de todo o processo é o paciente. É tão importante compreender como o paciente consegue viver a sua vida e encarar a sua doença, como abordar o processo patológico em si. O denominador comum é a pessoa com as suas crenças, medos, expectativas e necessidades. (...) O valor desta relação personalizada é determinado pelas aptidões de comunicação do médico de família, sendo terapêutica por si só. (...) O comportamento na doença e os padrões de doença variam em função de muitas destas questões, podendo estar na origem de grande infelicidade aquelas intervenções que não levem em conta a raiz do problema segundo o doente. Há pelo menos duas questões interessantes que poderiam ser feitas: porquê a medicina como um todo, mas em especial a medicina de família, que ressurge nos últimos 30 anos, passa a se preocupar em um dado momento com uma abordagem em relação aos pacientes que leve em conta aspectos sócio-culturais, o modo de vida e o próprio entendimento da condição humana? E como isso ocorre na prática, como se dão esses encontros, quais as referências que guiam ou auxiliam a conduzir esses médicos de família pelo mundo dos pacientes? Podemos partir da afirmação de Velho (1980, p. 45) que diz que “em toda sociedade, os indivíduos procuram controlar o sofrimento físico e psicológico, ou reduzindo-o a um mínimo suportável (que 53 obviamente variará) ou enquadrando-o dentro de modelos e paradigmas que o justifiquem ou mesmo o expliquem”. Como dissemos no início, a modernidade nos colocou nesse papel, como o sistema perito que oficialmente responde às pessoas sobre seus sofrimentos. Em relação à segunda questão, do que pode ocorrer no consultório médico, há uma saída mais normativa que é a oferecida pela psiquiatria – que nos oferece limiares “precisos” entre o que é normal e o que é patológico, de quando se trata de um transtorno de ansiedade ou de uma ansiedade normal, reativa, e de quando se trata realmente de uma depressão e não de uma tristeza. Essa certeza é apoiada por tratamentos também “certeiros”, porque assim foram avaliados pela medicina baseada em evidências, o antidepressivo X funciona bem para esses casos e a psicoterapia cognitivo-comportamental em N sessões produz o mesmo efeito. Como diz Roudinesco (2000, p. 17): “a neurobiologia parece afirmar que todos os distúrbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do funcionamento das células nervosas...”. E há uma alternativa que é bem menos normativa, que significa deixar-se conduzir pelo paciente em sua história, explicações e significados, como diz Balint (1966, p. 92): “o paciente se queixa de diversos achaques bastante impressionantes, não se encontram sinais físicos para explicá-los e a situação psicológica é mais complicada ou muito mais desesperada, (...) enfatizamos que todo sintoma (...) deve ser examinado com o paciente e, se possível, pelo paciente.” Não é objetivo da medicina de família e nem é possível fazer uma sessão de análise com a formação que temos e com o espaço e rotina de que se dispõe. Mas o que pode ser aproveitado da psicanálise no nosso trabalho? Quando esses médicos de família optam pela alternativa menos normativa e não enquadram simplesmente esses pacientes em depressivos e prescrevem logo um antidepressivo, o que acontece? Catarse, inconsciente, desejo, sintomas, transferência, contratransferência, eficácia simbólica, como emergem esses conceitos e significados nessa prática médica? Simplesmente ouvir, por exemplo, sem maiores interferências, sem conselhos pontuais, quais os efeitos dessa atitude? Para Quinet (2000, p. 18-19), o psicanalista deve diante do sintoma ter uma atitude diferenciada, o que quer dizer não agir como muitas vezes se faz na medicina, que os trata com sintomáticos ou procura aliviar rapidamente os sintomas, mas “abordá-lo como uma manifestação subjetiva, significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado e decifrado, fazendo aí emergir um sujeito”. Balint em seus seminários com médicos de família alertava para o risco de não deixar o 54 paciente falar. São comuns na nossa prática clínica os casos de pacientes que nos procuram inúmeras vezes com queixas vagas, digo vagas no sentido de que não se consegue demarcá-las por meio da biomedicina ou que dão a impressão de não causarem sofrimento suficiente para que se recorra tantas vezes ao médico. Alguma pergunta que provoque o paciente a refletir sobre o próprio problema costuma nos lançar em um mundo inesperado: “mas o que você acha que está acontecendo?”, “como você explica essa dor?”, “Qual a sua preocupação com esse problema?”. A partir daí, duas coisas costumam acontecer, aquela dor deixa de existir e a percepção de que havia algo mais faz com que a pessoa se concentre nisso (violência familiar, desilusão com o trabalho, com a vida, etc...); ou o paciente embarca em angústias cada vez mais complexas e muitas vezes difíceis para um médico de família com o seu tempo e preparo lidar. Outro ponto importante, também trabalhado por Balint (2005) em seus seminários, é a transferência e contra-transferência na relação médico-paciente. Na formação padrão do médico, aprende-se que essas situações devem ser evitadas e acredita-se mesmo que seja possível atuar sem que elas ocorram. Balint (2005) sabe que ela está presente e sugere que seja utilizada na clínica ou, no mínimo, que possa ser percebida. Para Quinet (2000, p.20), o clínico, seja analista ou não, não é um anódino observador do paciente, pois por meio da transferência pode ser incluído na trama com a qual o sujeito envolve o real de seu sofrimento, seja no sintoma, seja no delírio. O que o sujeito faz de seu interlocutor, em que lugar o situa, de onde recebe seu dizer são critérios a serem levados em conta tanto no diagnóstico, no qual o próprio clínico está incluído, quanto na orientação terapêutica. O amor de transferência é a única vereda que dá uma chance ao sujeito de advir como desejo de saber. E nesse ponto, creio que a psicanálise se aproxime da leitura da antropologia em relação aos efeitos simbólicos do encontro entre médico ou curandeiro e paciente, cuja eficácia provém não apenas da droga ou da palavra que se administra, mas da articulação de uma tripla experiência, segundo Levi-Strauss (1975): “a do próprio xamã que (...) experimenta estados específicos, de natureza psicossomática; a do doente, que experimenta ou não uma melhora; enfim, do público, que 55 também participa da cura...”. Apresenta além da idéia de que sempre haverá espaço para sofredores e curandeiros se encontrarem, a necessidade de uma legitimação social e de uma confiança mútua no método para que se produza um efeito terapêutico. Levi-Strauss (1975) nos fala ainda de uma cura que não está necessariamente relacionada com a teoria ou a expectativa do terapeuta: Um corpo de hipóteses elementares pode apresentar um valor instrumental certo para o prático, sem que análise teórica deva se impor a reconhecer aí a imagem última da realidade; e sem que seja tampouco necessário unir, por seu intermédio, doente e médico numa espécie de comunhão mística, que não tem o mesmo sentido para ambos e que chega somente a dissolver o tratamento numa fabulação. O médico de família pode exercer um papel interessante nessa altura da modernidade, a começar porque é um especialista em generalidades. Leva a biomedicina e a medicalização aos últimos espaços da tradição, mas mantém algum diálogo com ela. Em tempos de fragmentação é alguém que trabalha com o todo, não pode dizer “isso não é da minha área”. De posse de um cabedal de explicações biomédicas para os mais diversos problemas é contaminado incessantemente por exemplos práticos de sociologia e antropologia, vê na prática os efeitos do modo de vida, conhece os espaços de encontro da comunidade, ouve as diferentes versões de uma mesma história quando contada por toda a família, vizinhos, etc. Sabe que trabalhará ali por muito tempo e que as pessoas voltarão ao seu consultório, com o tratamento que deu certo, com o tratamento que não deu certo e com outras respostas que não pode nem imaginar. Em um mesmo período de trabalho atende a Dona Ziza que lhe diz ser um anjo enviado por Deus, a Dona Maria que diz acreditar em você porque estudou muitos anos e o Gabriel que discute contigo um texto da Internet sobre problemas cardíacos. Se, como diz Maluf (2005), é “preciso compreender o mal e a doença em seus aspectos polissêmicos e multivocais...” me parece que o médico de família pode ser um expectador privilegiado desse mundo de incertezas. 56 Não pode contra ela a inteira medicina de facas numerais e aritméticas pinças João Cabral de Melo Neto em Uma Faca Só Lâmina (ou: serventia das ideias fixas) 1955 CAPÍTULO 2 - DA DEMANDA: O SOFRIMENTO SOCIAL NA AGENDA DA ATENÇÃO PRIMÁRIA BRASILEIRA (APS) Não é preciso muito tempo ou esforço para perceber o sofrimento dos profissionais de saúde da Atenção Primária (APS) em função da quantidade e complexidade das situações de sofrimento que recebem todos os dias das pessoas que atendem em seu trabalho. Quando explicava a esses profissionais que eu estava ali para fazer uma pesquisa sobre esse tema era comum ouvir frases de apoio à investigação porque rapidamente se lembravam de muitas situações recentes e marcantes e da angústia que lhes causava. Ao mesmo tempo em que diziam que eu deveria investigar também o sofrimento deles, recordavam-se das situações mais comuns que chegavam ao CS: “É assim, briga com o marido ou com a esposa, problemas de relacionamento com filhos, dificuldades no trabalho...”, ou “vivem numa condição muito difícil, pouco dinheiro, sem trabalho, problemas de drogas, álcool”. Essas são algumas das situações mais comuns que se ouve sobre uma demanda que costumam chamar de “problemas sociais” quando se conversa com as diferentes categorias profissionais que circulam pelos Centros de Saúde (C.S.). Um exemplo é o de Carolina, de 84 anos, que vem para uma consulta com a Dra. Suzana. Ela é acompanhada por seu filho. Carolina e o esposo são argentinos e foram trazidos pelo filho para Florianópolis para facilitar o cuidado, já que viviam sozinhos em Buenos Aires. Carolina começa assim o seu relato: Tengo mucha angustia, ganas de llorar, tristeza (…) Me siento mal, más triste, más todo, por un caso muy personal (…) Tengo otro problema, que es muy triste para mi y no sé como solucionarlo (…) Mi marido tiene un genio muy rematado, 57 muy agresivo, me hace muy mal, hace 56 años que estoy pasando días muy tristes en mi vida y no sé como solucionarlo. Antes de passar dos seus sintomas para o que ela chama de seu problema, que diz ser seu marido, ela se vira para o filho e para a médica e pergunta algumas vezes se pode falar sobre isso, como perguntando se aquele é um espaço adequado para que fale sobre suas dificuldades de relacionamento com o marido. O filho fala que a mãe sempre teve um problema de nervoso e que depois teria recebido o diagnóstico de depressão e que usou antidepressivo por muitos anos. Além da situação antiga com o marido a consulta caminha algum tempo pela descontextualização que sofreu ao sair da Argentina. A palavra sofrimento não é estranha nesse ambiente em que fizemos a pesquisa, não é necessária nenhuma subdivisão além da que já dizíamos, se estamos nos referindo ao do profissional de saúde ou ao de quem utiliza os serviços. Curiosamente, uma subcategorização do termo costumava ser requerida no ambiente universitário, sempre que apresentava meu tema de pesquisa: “sofrimento físico ou mental?”, “sofrimento psíquico ou orgânico?”, “sofrimento existencial ou por alguma doença?”. Por outro lado, sofrimento não é necessariamente uma categoria comum das pessoas que usam o sistema de saúde, no sentido de que elas mesmas chegassem dizendo - venho aqui por que estou sofrendo -, raramente encontramos essa afirmação. Não procurei delimitar para os meus interlocutores de pesquisa se me referia a algum tipo de problema específico, o que me permitiu entrar em contato com as situações mais amplas dessa prática clínica. O que me interessava inicialmente, no entanto, talvez tenha sido melhor definido por Kleinman com o que chamou de sofrimento social, que seria “desde um ponto de vista histórico e transcultural como um aspecto universal da experiência humana em que indivíduos e grupos tem que se submeter ou enfrentar certas cargas, problemas, e graves ferimentos ao corpo e ao espírito que podem ser agrupados em uma variedade de formas” (1995, p.101). Para o autor o sofrimento e a transcendência, mais do que uma característica humana universal, estão “entre as coisas mais em jogo na prática da experiência diária. Por essa razão elas merecem ser a matéria auto-consciente da etnografia e das comparações transculturais” (KLEINMAN, 1995, p.119). O termo me pareceu bom porque associava sofrimento - que costumeiramente nos remete na tradição ocidental a uma experiência individual, muito 58 subjetiva e particular - ao social que costuma exercer o efeito oposto ao nos levar para redes que estão acima dos indivíduos, dessubjetivadas ou criadoras de subjetividades, que impelem os sujeitos a determinadas ações ou comportamentos. Encontramos em outros autores da antropologia médica a utilização do termo sofrimento para se referir a um desconforto ou mal estar que pode ser expressado subjetivamente mas que, no exemplo de Good “se situava no âmbito das relações sociais...” (2003, p. 290). Segundo Correa Urquiza e cols. (2006, p.49), o sofrimento social pode ser entendido como uma categoria que engloba: “diferentes formas de adversidade humana que, devido às compartimentalizações burocráticas do conhecimento, encontram-se hoje em dia cindidas: doenças, incapacidades, pobreza, a violência e outros efeitos das instituições sociais”. Arthur Frank ao escrever sobre diferentes narrativas de sofrimento e as intrincadas associações e dissociações entre dor e sofrimento dirá que o: sofrimento se torna inútil precisamente porque o sofrimento de qualquer pessoa é irredutível: sendo nada mais do que é, o sofrimento não pode ter significado. Sofrimentos irrredutíveis não podem nunca ser comparados. Mas aqui os argumentos voltam-se para si mesmos. Uma vez se compreende que o sofrimento não pode ser comparado, então é [grifo do autor] possível falar de diferentes sofrimentos na mesma história, porque não há comparação. Além da comparação, a „existência universal‟ de sofrimento requer que diferentes formas comuniquem-se sobre ele. Onde não há comparação, há uma sobrecarga metonímica. Cada sofrimento é parte de um buraco maior; cada pessoa que sofre é chamada para esse buraco, como uma testemunha de outros sofrimentos (1995, p. 179). O campo de pesquisa ao qual me dediquei para observar esse tema do sofrimento social foi o da Atenção Primária (APS) do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), um espaço que me é muito próximo, pois é o meu próprio espaço de trabalho. Desde 2004 exerço a função de médico de família e comunidade (MFC) em centros de saúde da cidade de Florianópolis. E imagino, claro, que isso trará muitas limitações e algumas vantagens, que espero poder explorar adequadamente. A APS e 59 os sistemas públicos de saúde como conhecemos são instituições muito novas, que nascem após a segunda metade do século passado, e surgem muito em função de discussões que de algum modo serão perpassadas nesse em outros capítulos, como as do acesso universal aos serviços de saúde, visão integral e não-fragmentada das pessoas, prevenção e promoção de saúde, aproximação da vida familiar e comunitária, determinantes sociais de saúde, entre outros. Escolhemos uma amostra variada de C.S., mas particular de MFC, pois são médicos com pós-graduação ou título de especialidade em MFC. Esse perfil não compreende o de todos os clínicos que trabalham em CS no Brasil, mas nos permitirá falar em outro momento de um sistema cultural (ou subsistema) desses profissionais. O que nos interessa aprofundar nesse artigo terá sofrido, claro, a influência da maneira como esses MFC lidam com os pacientes e os problemas que trazem, mas observaremos principalmente a gama de situações que chegam cotidianamente aos C.S. e suas múltiplas formas de apresentação. O objetivo desse capítulo é contribuir com algumas interpretações e análises sobre o que representa essa demanda nesse espaço muito particular da pesquisa, que foram os C.S. e os consultórios de MFCs. O enfoque é uma análise transdiciplinar do tema, fundamentada em obras do campo da medicina e das ciências sociais, em particular da antropologia da saúde. 2.1 OS CENTROS DE SAÚDE E A ESTRATÉGIA EM SAÚDE DA FAMÍLIA Os Centros de Saúde e as equipes de saúde da família no Brasil fazem parte da rotina de aproximadamente 100 milhões de brasileiros, o que representa mais da metade da sua população. A chamada Estratégia de Saúde da Família (ESF) que começou em 1994 com o objetivo de ser o primeiro e continuado nível de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) já chega a mais de 30 mil equipes espalhadas por todo o país, com cada uma delas acompanhando aproximadamente 4 mil pessoas delimitadas por um território geográfico (DAB, 2009). O local de trabalho desses profissionais são os centros de saúde, que podem abrigar uma ou mais equipes e que oferecem uma gama de serviços, como curativos, vacinas, consultas médicas e de enfermagem, atividades coletivas como grupos, visitas domiciliares, exames preventivos. A distribuição desses C.S. reflete a heterogeneidade das diferentes regiões do pais: área rural de pequenas propriedades, área rural moderna mecanizada, pequenas cidades no interior do país, pequenas cidades próximas a grandes centros urbanos, região periférica conurbada de 60 metrópoles, região central de grandes cidades, pequenas comunidades em florestas como as reservas indígenas, etc.. A população que mais utiliza os C.S. provém dos setores de baixa renda e das classes médias baixas. Aqueles que têm uma renda maior costumam utilizar a rede privada, especialmente os planos de saúde, para um acompanhamento regular. Por outro lado, buscam atendimento no SUS quando necessitam de intervenções muito caras, não cobertas por seus planos, como transplantes, medicamentos para AIDS e hepatites. Essa é uma diferença em relação aos países da Europa ocidental e Canadá, cujos sistemas públicos de saúde e APS são acessados por uma grande fatia da classe média (STARFIELD, 2002). Por aproximadamente 4 meses acompanhei o trabalho de 4 médicos de família e comunidade (MFC) em 4 C.S. diferentes em Florianópolis, SC, sul do Brasil. Procurei observar principalmente as consultas médicas, aproximadamente 150 consultas gerais (em que não havia uma agenda a priori para algum grupo específico de pessoas), nas quais, além de observar, registrava minhas impressões em um diário de campo e gravava em áudio. E ao circular pelo C.S. pude, também, em muitas ocasiões, dialogar com pessoas que aguardavam consultas e com funcionários diversos. Participei de reuniões de equipe, visitas domiciliares e algumas consultas conjuntas com psiquiatra e psicóloga. A ideia não é se estender muito na descrição dos Centros de Saúde e de seus bairros mas quiçá permita ver como, mesmo em uma capital de estado, o C.S. da forma que se conhece hoje é uma instituição muito recente e como esse processo faz parte de uma modernização dessa sociedade que terá implicações no que Menendez (2002, p. 30911) chama de processo saúde-enfermidade-atenção. Para o autor, o processo saúde-enfermidade-atenção “segue sendo uma das áreas da vida cotidiana em que se estruturam a maior quantidade de simbolizações e representações em todas as sociedades, incluídas as sociedades atuais de maior desenvolvimento econômico. As representações e rituais de curação costumam expressar os princípios básicos de integração étnica e comunitária.” O objetivo, portanto, dessa parte será o de oferecer grosseiramente algumas informações sobre o contexto em que se dá a pesquisa de campo para analisar as características da demanda que chega aos C.S e buscar algumas interpretações sobre os significados que ela pode ter para quem demanda, para os profissionais de saúde e que inferências podemos fazer desde as ciências sociais. Os CS que frequentei estão em locais com características diferentes, o que se reflete de alguma forma na demanda. Um deles, o 61 menor, que chamo de Amendoeira, conta com apenas uma equipe de saúde da família e se localiza no litoral, em um bairro antigo da cidade, distante do centro, em que os seus moradores (hoje, em torno de 3 mil pessoas) viveram nesses últimos 300 anos da pesca e da agricultura, majoritariamente de subsistência. Apenas recentemente em sua história surge o C.S., que tem aproximadamente 20 anos, dos quais boa parte sem uma equipe de saúde ou um médico que oferecesse seus serviços continuadamente, como as 40 horas por semana atuais. Não faz muito, portanto, que os moradores desse bairro lançavam mão quase que exclusivamente de outros recursos, que não do aparato médico oficial (médicos públicos ou privados reconhecidos por suas instituições profissionais) para lidar com o que consideravam seus problemas de saúde. Eram muito comuns os cuidados oferecidos por mulheres da comunidade, que benziam, preparavam ervas medicinais e faziam os partos. Essa é uma prática em extinção no município e no país, pude conversar com diversas benzedeiras de outros bairros do mesmo município, geralmente senhoras com idade acima dos 90 anos, que dizem não haver mais interesse das suas filhas ou de outras mulheres da comunidade em aprender e continuar o seu legado. Médico era uma figura rara para essas pessoas, quando não davam conta de seu mal-estar na própria comunidade costumavam recorrer aos hospitais do centro da cidade e o acesso não era fácil, levavam muitas horas na estrada e ali recebiam atendimentos pontuais em emergências, eventualmente eram internados de acordo com o julgamento do médico. Como esse encontro com o médico e com o serviço hospitalar era raro, costuma ser lembrado com detalhes por essas pessoas. Esse bairro, Amendoeira, ainda mantém um pouco de sua estrutura tradicional, que acaba servindo agora como curiosidade turística e daí começa a vir boa parte da renda de seus moradores. E já passa também a receber novos moradores, profissionais liberais de classe média fugindo do centro da cidade ou trabalhadores braçais buscando aluguel mais barato e se aproveitando de uma rede de transporte que permite deslocamentos maiores em menor tempo. Os outros 3 bairros têm uma história semelhante no sentido dos C.S. serem uma novidade dos últimos 20 anos e em relação à forma como as pessoas lidavam antes com suas necessidades e recursos na área da saúde. Mas são diferentes quanto à posição que ocupam no tabuleiro da cidade, o que representam, o perfil de seus moradores, quais as principais atividades econômicas. Araucaria, de quase 10 mil habitantes, é um bairro de classe baixa principalmente, a maioria representada por moradores vindos de outros estados ou do interior de 62 SC para trabalhar no setor de serviços. Trata-se de um bairro típico de periferia das grandes cidades brasileiras, sem um atrativo turístico oficial, sem grande comércio local, por isso o chamam muitas vezes de bairro-dormitório, de todo modo, assim como o crescimento do bairro, a instalação de instituições estatais de saúde é recente. Garapuvu é um bairro antigo, que faz parte atualmente da conurbação de casas no entorno de um morro central na cidade. Há uma mistura de moradores antigos com os novos migrantes que vieram para essa cidade que rapidamente se moderniza. Situação semelhante é a do Figueira, com a diferença que este, no processo de modernização desenvolveu também um forte comércio local e algumas grandes lojas, que se aproveitam da sua localização estratégica, próxima a uma rodovia movimentada. Por outro lado, Figueira talvez seja desses quatro, o bairro com a maior favela, com um forte comércio de drogas e, portanto, com um contigente maior de pessoas em situação econômica difícil, caracterizando-se como área de vulnerabilidade social. É interessante notar que no Brasil, mesmo em capitais de estado como Florianópolis, convivem ou conviveram até muito recentemente situações de vida que poderíamos chamar de pré-modernas – economia de subsistência, família patriarcal, forte influência da igreja católica, formas tradicionais de saúdeenfermidade-atenção – a poucos quilômetros de aglomerados urbanos já bastante modernizados. Nas muitas vezes em que me desloquei em direção a esses C.S. para a pesquisa de campo, enquanto me investia da roupa de pesquisador, uma das coisas que me chamava a atenção ao passar pela comunidade era imaginá-la antes da construção desse espaço de atenção que é o C.S. e, como em um filme acelerado, eu o via surgir e as transformações que provocava nas pessoas e no seu entorno. Ou então, quando chegava mais cedo, antes de que o abrissem às 8h da manhã, e olhando para sua pequena prumada, um edifício inerme, vazio, silencioso, por quê?, costumava pensar, em mais alguns minutos, dezenas de pessoas sairiam de suas casas e entrariam por essa grande porta frontal, pedindo uma consulta, para dizer algo como o que contou Noemi para a a Dra. Gisele, no CS Figueira: tem coisas no meu coração que não cicatrizam (...) eu perco o chão, porque eu criei a filha com tanto carinho, tanto amor, trabalhei, me matei...[e chora enquanto narra a história] e ela sempre foi uma pessoa egoísta, uma pessoa ruim, uma pessoa malvada, uma pessoa assim que me parece que 63 não fui eu que ganhei aquela criança, parece que quando ela nasceu, já nasceu com o destino de ferrar minha vida e desde que ela nasceu que ela tá me ferrando... pra começar eu fui na maternidade pra ganhar um filho e ir embora e eu fiquei 18 dias internada, com infecção hospitalar e dali pra frente minha vida virou um inferno, inferno... eu dizia amanhã ela vai tá com 10 anos vai melhorar, 12 anos, 20 anos, 30 anos, eu tô esperando 40 anos ela melhorar e... Apesar de ter investido a maior parte da pesquisa de campo em um espaço muito particular, marcado por uma relação de poder que historicamente determina bastante os papéis de médico e paciente e suas conhecidas implicações, o que pude perceber nesses C.S é que em muitas oportunidades existe uma pauta por parte de quem entra naquele espaço, que pode ou não ser verbalizada a depender do desenrolar da consulta, que é a necessidade de expressar um sofrimento, falar sobre alguma situação incômoda. Geralmente, histórias de sofrimento, malestar, queixas como a de Noemi, que rapidamente se relacionam a desentendimentos familiares, problemas no trabalho, violência na comunidade, dificuldades próprias pessoais como a de lidar com doentes com alguma incapacidade, separações, perdas de entes queridos, etc.. Diante desses relatos, várias perguntas me ocorriam: Por quê o C.S tem sido um dos espaços procurados para esses lamentos? se como dizíamos, há 20 anos eles sequer estavam aí. Como o CS se insere nessa teia intrincada entre demandantes por alívio de um mal-estar e os espaços que oferecem acolhida? Seriam essas queixas que chegam de alguma maneira construídas e atraídas para o C.S. por aquilo que ele representa em termos mais amplos, a medicina ou biomedicina? Enfim, estas são algumas das perguntas que surgiram ao longo da pesquisa de campo e que procuraremos debater nesse espaço. Faço ideia da restrição que a pesquisa impõe ao observarmos essa demanda quase sempre a partir desse espaço, que é o consultório do médico, e algumas poucas vezes circulando pelo C.S., e que muitas outras inferências poderiam ser feitas se seguíssemos o itinerário dessas pessoas que buscam alívio para seus sofrimentos por tantos outros recursos de que dispõem (MALUF, 2005). De todo modo, creio que os resultados dessa pesquisa permitem caracterizar esse espaço como um desses recursos. Além do mais, nos permitirá em outro momento falar mais especificamente sobre o diálogo entre MFC e paciente e, ainda, abordar a partir desse lugar, o consultório, que é importante na definição 64 do role do MFC, um sistema cultural ou subsistema cultural desse profissional. 2.2 SITUAÇÕES MAIS COMUNS DE SOFRIMENTO ENCONTRADAS NOS C.S. Uma primeira e enorme dificuldade nessa etapa em que procuraremos descrever situações comuns de atendimento nos C.S. é a de definir melhor o que esse investigador chama de sofrimento e como foram separados os relatos que virão em seguida. Em função das características que já explicitamos acima sobre a APS, nem todas as visitas ao C.S. ou ao médico representam um momento de desconforto ou preocupação. Acompanhamos várias consultas em que havia um clima leve, descontraído, como de pré-natal, avaliações de rotina de bebês, retornos regulares de pessoas que acompanhavam por situações crônicas como hipertensão ou diabetes. Mas em muitos outros momentos, ou às vezes numa mesma consulta inicialmente mais relaxada, o ambiente torna-se pesado, alguma situação que gera malestar passa a ser relatada ou eventualmente não chega sequer a ser verbalizada, mas parece presente na expressão corporal. Os relatos que destacaremos aqui geralmente referem-se a situações de desconforto que, diretamente trazidas pelo demandante ou que emergem a partir do diálogo com o MFC, referem-se a problemas cujos principais nós habitam a vida privada, moral, familiar, laboral, comunitária de acordo com o que nos aponta a própria narrativa daquela pessoa. Uma primeira constatação, portanto, dessa pesquisa é que o C.S. tem sido um espaço muito utilizado pelas pessoas para falar sobre toda uma sorte de problemas contextuais. E aí me parece que são duas as principais motivações que têm essa demanda para que as encontremos diante do médico ou do enfermeiro (os profissionais mais acessados): 1. O que eu sinto é uma doença? 2. Preciso comunicar esse sofrimento de alguma forma para obter ou receber alívio. As pessoas sabem que estão procurando um centro de saúde e aparentam ter uma boa noção do que podem ou não receber aí, mas como observamos há uma grande demanda por comunicar por meio de sensações físicas desconfortáveis, sentimentos como tristeza ou angústia, problemas interpessoais, comunitários ou econômicos geralmente bem definidos por quem pediu a consulta. E as duas motivações principais que pude observar que fizeram com que essas pessoas se deslocassem de casa até o C.S. foram, como já disse: 1. descartar a possibilidade de que uma doença pudesse sintetizar e explicar as angústias que sentem e/ou; 2. a noção de que esse é um espaço legítimo para narrar alguma situação desconfortável, que 65 está atravessando como forma de aliviar o sofrimento. E essas duas situações costumavam surgir juntas, separadamente, ou a forma que me pareceu mais comum: a partir de um sintoma ou de uma sensação de desconforto abre-se um espaço para narrar uma história, conforme veremos nos relatos a seguir. 2.3 CECÍLIA E O SUICÍDIO DO NETO Cecília, de 73 anos, já é conhecida da Dra. Gisele, do CS Figueira, e dessa vez marcou a consulta pelo seguinte motivo: ...eu tô assim, ó [aponta para seu corpo e demonstra cansaço e abatimento], porque eu perdi o neto, o choque foi muito grande. (…) Ele se enforcou, né, ele não aceitou a vida dele, a separação [da esposa] (…) Foi um baque tão grande assim que, porque a gente não esperava, quando tá doente a gente espera, (…), quando eu perdi meu pai, a gente já esperava, mas eu fiquei num estado de nervos (…) mas dele me deu uma dor, uma dor, pra mim é do coração né? (…) E aí um cansaço, não sei se é de gripe, não sei... A história de Cecília condensa em apenas uma consulta algumas questões comuns da observação do campo que me parecem interessantes para discutir. Há um evento estressante definido e recente em sua vida, a morte do neto. Se seguimos a sua narrativa há dois temas aos quais se dedica mais, sintomas físicos que iniciaram logo após o evento traumático e, também, falar sobre a imponderabilidade que cerca esse suicídio, várias de suas falas tentam expressar sua incompreensão sobre o ocorrido. Apesar de que ela mesma relaciona suas sensações desconfortáveis ao acontecimento, busca na médica alguma orientação, algum remédio, como quando responde sobre o que espera do seu atendimento: “A senhora que deve saber o que pode me passar aqui pra mim, né?” Cecília é religiosa, frequenta regularmente uma igreja evangélica e disse que isso a tem ajudado muito nesse momento, mas o serviço de saúde local parece servir para ela como mais um espaço disponível no seu itinerário para lidar com uma das tonalidades desse sofrimento que expressa, que é a explicação para o que ocorreu ou simplesmente a oportunidade de narrar mais uma vez essa história. Se por um lado vem para descartar doenças como problemas cardíacos ou pulmonares, em cuja existência ela mesma parece não acreditar, por outro busca alivio para esse desconforto mais vago, tristeza, desânimo, 66 ansiedade, nervos que claramente atribui ao evento do suicídio. Provavelmente não nos ajudará muito na interpretação dessa demanda, mas não posso evitar de descrever um detalhe da cena: Cecília vestia uma camiseta escura e no seu peito aparecia com destaque a estampa: “Boys come, Boys go!”. Barbara vem para um retorno com a Dra. Suzana, do CS Amendoeira, após uma primeira consulta em que o problema principal era a tristeza que sentia após a morte de sua cadela e ela inicia dizendo: “estou bem melhor, agora estou fazendo um curso de veterinária, para ajudar os cachorros da rua, quando eu tive aqui eu tinha recém perdido ela, tava meio em baixa, e agora então depois passou (...) Eu estou bem, estou bem melhor, animada. Eu não sou de ficar caída”. Barbara procurou a médica na consulta anterior para falar de sua tristeza, esse foi o tema principal, e logo disse que havia perdido sua cadelinha e de como isso a havia abalado. Por sua postura na consulta, pela forma como lidou com a situação e pela frase final em que diz não ser o tipo de pessoa que fica caída, parecia ter desde o começo bastante consciência da relação entre a perda da cadela, as sensações que sentia e suas possibilidades de lidar com isso. De todo modo, a narrativa dessa tragédia passou também pelo CS e pela Dra. Suzana. De novo, me parece que o serviço de saúde surge no itinerário dessas pessoas por dois motivos, esclarecer se há alguma explicação médica para seus sintomas e também como um espaço legítimo para expressar os sofrimentos já independentemente da pessoa ter ou não em mente alguma doença específica. Por meio do termo medicalização poderíamos discutir desde as ciências sociais como a medicina (como uma instituição que incluiria também outras categorias profissionais da área da saúde, além da indústria farmacêutica e da de equipamentos médicos e diagnósticos) vem ampliando seu espaço de atuação nos últimos dois séculos. E o faremos em seguida. Mas creio que temos uma outra perspectiva de análise dessas situações ou uma outra hipótese: as pessoas não buscam somente uma explicação biomédica nos C.S., mas utilizam esse espaço também para expressar e narrar seus sofrimentos. Essas narrativas parecem colocar em alguns momentos a noção de doença entre parênteses, como sugerido por Basaglia (AMARANTE, 1994, p. 62-3), tanto por parte de quem relata quanto por parte do médico. Em outros momentos, as narrativas aparentam transitar entre uma coisa ou outra em um vai-e-vem complexo no qual o paciente se inclui e se exclui e em que se sente incluído ou excluído pelo médico em alguma categoria biomédica que de alguma forma sintetizaria toda uma experiência. Noutras vezes, o medicamento surge como uma das ações resultantes 67 entre o demandante e o médico, mas ele aparece de forma dissociada do tema da doença, que está ausente ou distante, e trata-se de um sintomático, que não se propõe a ser a cura porque não há uma doença em jogo. Enfim, o que pretendo dizer é que há uma possibilidade de discussão dessa observação de campo que não poderemos definir por meio da ideia de medicalização simplesmente, porque parece operar de um outro modo. Acredito que os aportes de alguns autores da antropologia médica possam ser muito úteis, como Good (2003, p. 284) por exemplo, que atribui muitas funções às estratégias narrativas, como a “manutenção de perspectivas alternativas e a representação do misterioso” e ainda outros: Os relatos têm lacunas, o não verbalizado o não explicado, que representam dimensões desconhecidas ou incognoscíveis da realidade que oferecem a esperança de que terminarão por encontrar poderosas fontes de eficácia que estão por descobrir (…) As narrativas daqueles que são sujeitos de sofrimento representam a enfermidade (…) como algo presente em uma vida. A enfermidade se assenta em uma historicidade humana, na temporalidade dos indivíduos, das famílias e das comunidades. Está presente como poderosas lembranças e como desejo. Entranha contradições e multiplicidade. Essas características descritas por Good (2003) nos ajudam a valorizar a narrativa de enfermidade ou de sofrimento como uma forma intersubjetiva de localizar essa experiência na vida vivida e como uma saída ao reorganizar o sentido, oferecer escolhas, caminhos para continuar. Para Frank, as narrativas “não descrevem simplesmente o self; elas são o meio do self ser” e se pergunta “como a enfermidade é uma ocasião para narrativas; o que os enfermos [ou quem sofre, poderíamos dizer] precisam situar em suas histórias?” (1995, p.53). Frank destaca nesse trabalho, as diferentes narrativas de pessoas que sofrem e narram suas histórias especialmente a partir de algumas doenças que mudam bruscamente a vida das pessoas, como cânceres e infartos, situações que ele mesmo vivenciou. E as tipologias que faz das narrativas ainda nos será muito útil aqui, mas o que gostaria de destacar nessa parte é que pude perceber nas narrativas que observei que muitas vezes o diagnóstico de uma doença, a sombra de uma doença, não estava presente e o espaço dava-se à narrativas de sofrimentos da vida 68 cotidiana. Nesse sentido, o C.S. representa para essas pessoas não apenas um lugar em que se descarta ou não a presença de alguma enfermidade, mas também em um espaço legítimo de expressão do sofrimento. Esses espaços são muitos em uma comunidade e não quero apresentá-los como espaços raros, como os amigos, o bar, a bebida, a igreja, o padre e o pastor evangélico, familiares, as redes de relação social virtuais, e nossos próprios diálogos interiores, além dos serviços de saúde fazem parte do itinerário de quem precisa relatar ou expressar corporalmente seu desconforto. Às vezes, essa comunicação de um mal-estar pode ser bastante corporal, o que costuma ser denominado na medicina como somatização, termo que o próprio Kleinman (1995) utiliza em seus livros, apesar da mudança de conotação que ele o dedica nesses últimos anos, de uma: “substituição de alguma coisa mais básica para uma maneira básica de estar-no-mundo” (KLEINMAN, 1995, p.9). E na observação das consultas o que pude perceber é que sempre existe, claro, uma comunicação com o corpo, mesmo quando se está verbalizando uma determinada situação, um mal-estar, em que a pessoa pode estar muito consciente de quais são as suas dificuldades e em que as traduz apenas com sintomas bastante subjetivos como tristeza, angústia, há todo o tempo uma linguagem corporal na relação com o receptor, que nem sempre parece ser consonante com o que está sendo verbalizado. Nesse sentido sempre há a posição do corpo, que quiçá fique mais íntegro na ideia do body-self (KLEINMAN, 1995; FRANK, 1995). Mas há muitas situações em que os sintomas físicos, como dor no peito, nas costas, dor de cabeça, tontura, sensação de bola na garganta, palpitações, zumbidos, parecem concentrar toda a atenção de quem sofre, suas falas costumam se abrir pouco para o contexto de sofrimento e se resumem muitas vezes a descrever esses sintomas um atrás do outro. Fátima, de 42 anos, já consultou muitas vezes com o Dr. Bernardo (C.S. Araucaria), por motivos variados, a partir do 8o minuto de consulta inicia um relato em que nos dirá que: “eu fico um pouco agitada, [o coração] fica acelerado, me dá náuseas (…), semana passada eu passei muito mal, fiquei com dor de cabeça, náusea, não consegui dormir (…), eu tenho notado, eu tô com um calor horrível no rosto, minha menstruação veio bem pouquinho (…), me deixa muito agitada, bem nervosa, sistema nervoso bem abalado (…), eu tô com a barriga enorme, dor de cabeça, eu caminho um pouco passo mal, fico cansada, fico sem respiração...”. E ainda trouxe outros sintomas durante a consulta. Passa a impressão de que tem uma necessidade grande de falar 69 dos seus sintomas, mas sem precisar se deter mais em um ou outro, tampouco se preocupa em descrevê-los em alguma sequência cronológica ou de um modo que seja mais inteligível para seu interlocutor, me arrisco a dizer que apesar do sofrimento que demonstra ao falar de seus sintomas físicos não dá sequer a impressão de que necessita que o médico se detenha mais em um ou outro, como se estivesse em um diálogo e não em uma apresentação formal de queixas para que alguém as resolva. São formas de narrativa muito comuns nos C.S. e, claro, fica mais fácil explicar sua ida a um médico já que as queixas localizam-se em pontos determinados do corpo biológico, território da biomedicina. O problema de o C.S. surgir como um recurso tão frequente para essa demanda de narrativas de sofrimentos sociais é o risco da reinterpretação de uma ampla gama de situações de mal-estar em diagnósticos médicos, especialmente psiquiátricos, não à toa há um grande crescimento da psiquiatria ambulatorial e uma aproximação inédita com a APS. Curiosamente, essas duas situações que descrevemos - uma que se refere à medicalização do sofrimento, a transformação de situações cotidianas em tema médico; e uma outra, que seria a entrada no C.S. e no consultório médico de narrativas de sofrimentos sociais que podem passar sem uma interpretação biomédica – representam, a primeira, a crítica que comumente se lê das ciências sociais em relação à biomedicina e, a segunda, uma saída para ampliar a clínica ao valorizar mais do que apenas os sinais biomédicos desse sofrimento social. Acho que é interessante colocar essas duas formas de interpretar essa demanda sob análise, seguindo o que Kleinman já nos dizia: “a interpretação do sofrimento de algumas pessoas ou grupos como a reprodução de uma relação de produção opressiva, a simbolização de conflitos dinâmicos no interior do self, ou como resistência à autoridade, é uma transformação da experiência cotidiana da mesma ordem que as reconstruções patologizantes da biomedicina” (1995, p. 96). O espaço da APS é também permeável às produções críticas da biomedicina, que vêm de vários lugares das ciências sociais em saúde. O próprio nascimento da APS, a estratégia saúde da família, está intimamente ligado ao projeto de que os profissionais de saúde sejam sensibilizados pelo território em que trabalham, para que percebam os determinantes sociais e culturais do local. O que parece interessante aqui nesse estudo é ver as repercussões dessa ampliação do conceito de saúde e de como isso pode ter legitimado a entrada de questões do âmbito privado (também cada vez mais difícil de definir) nos serviços de saúde. 70 Identificar que espaços para esses acontecimentos, relatos de sofrimentos cotidianos, simplesmente existam e aos borbotões na APS brasileira pode ser por si só uma constatação interessante e suficiente. Mas a partir desse ponto acho que há dois caminhos que podemos explorar e que podem render algumas reflexões. Um deles seria compreender melhor essa demanda desde uma perspectiva histórica, já que como dizíamos antes o C.S. da forma que existe hoje é uma instituição novíssima nesses bairros, em torno de 20 anos, assim como o é igualmente uma APS organizada em sistemas públicos nacionais de saúde, no Brasil e em outros países que a adotaram. Outro caminho é analisar qual é ou quais são as características que podem fazer desse espaço um lugar interessante e atrativo para se lamentar. 2.4 A MEDICINA COMO RECURSO PARA O ALÍVIO DOS SOFRIMENTOS Falar sobre a medicina desde um ponto de vista histórico não costuma ser uma tarefa fácil. Uma das maiores dificuldades e fatores de confusão talvez venha do fato de que sob o mesmo nome, medicina, erigiram-se, desapareceram e coexistem múltiplas formas de entender, de classificar, de praticar, de comunicar, de financiar, etc... Uma demarcação inicial importante é a de definir o modelo mais conhecido ou hegemônico, que tem sido chamado de biomedicina, por sua forte base de explicação biológica (KLEINMAN, 1995). Esse modelo faz uma interface histórica com um outro que frequentava o ambiente acadêmico e universitário anteriormente que seria representado por uma medicina influenciada pelos autores hipocráticos como Hipócrates, Galeno e Avicena. De uma explicação para a doença que se baseava na teoria dos humores, que determinavam o processo do adoecimento e também as formas de intervenção, passou-se a uma lógica de relações causais (lesões) específicas e fixas entre os sintomas e a doença, mudanças influenciadas, entre outras coisas, pela associação que se passou a fazer entre a bactéria e as infecções e também pela correlação de processos morbosos com alterações anátomo-patológicas. Tentarei resumir em dois relatos, dois testemunhos, situações que possam ajudar a caracterizar como se lidava em outros momentos com demandas que, de algum modo, nos lembram as narrativas que apresentamos acima. A primeira vem do texto Sobre la Melancolía: diagnóstico y curación de los afectos melancólicos, de Alonso de Santa Cruz, médico escolástico espanhol, escrito em 1569. Na parte final do livro, após vários capítulos em que esmiúça os textos clássicos sobre melancolia, suas características, explicações causais e tratamentos, Santa Cruz traz 71 exemplos de situações práticas que atendeu e como as manejou. Um exemplo é o do “octavo enfermo, hecho melancólico por el amor” (SANTA CRUZ, 2005 [1569], p. 97-98): Certo homem nobre amava perdidamente uma belíssima mulher com essa apetência de que Platão dizia que cada um deseja o bem para si; e com razão, pois o amor desse homem era, segundo Plotino, o ato da alma, que deseja o bem; e era o desejo da beleza, de que falava Marsílio. Este homem, ardendo cada dia em desejo dela, como não podia conseguir nada, nutrido por um filtro de amor a amava mais perdidamente. Primeiro o aumento e o estado dessa afecção cresceram de tal modo que noite e dia andava em vela. Macerava entretanto seu corpo de modo que chegou a um estado de consumpção semelhante ao que causa a febre héctica. Ao tornar-se seco seu cérebro, começou a delirar. Sobre isso, a meu juízo, parece que fala Platão em O banquete: “Quem por amor padece insanidade, não somente se diz que se fazem amantes porque o suco altrabiliario vai até o cérebro e altera o espírito animal e as faculdades do cérebro; senão que também são afligidos por uma enfermidade do coração, que procede desses humores. Em efeito, pelo desejo excessivo e pelo ardor do amor, o coração dos amantes ferve, arde e é oprimido. Por isso estão inquietos e ansiosos e vivem cheios de tristeza e angústia. Mas o amor não somente ataca o ânimo, senão que também muitas vezes exerce uma tirania sobre o corpo inteiro, produzindo insônia”. Com estas palavras Platão descreve a sede afetada e o dano que padece sua ação, e pinta admiravelmente a causa e os efeitos da mesma. Se isto é assim, não deixarei de mencionar a causa desta afecção, segundo Platão e também segundo Lactancio Firmiano. Diz Lactancio (De opificio Dei, cap. 4): “A causa da melancolia surgida por amor é a paixão da alma concupiscível, que existe no coração e no fígado pelo desejo da coisa amada. Em verdade, tal desejo ferve no coração e no fígado pela imaginação e pelos espíritos comuns”. Porém Platão disse assim: “Posto que a 72 intenção do amante se volta toda no frequente pensamento sobre o ser amado, aí está dirigida quase toda a força do corpo. De aí que não surtam efeito nem a digestão nem as ações restantes da natureza que são de utilidade para a alimentação. Para ele, há abundância de superfluidades e de cruezas que são atraídas para o fígado. De aí a geração de sangue mal e cru; de aí também que andem descoloridos e tristes, por causa do sangue cru difundido nas veias. Por fim (como o próprio Platão disse em O Banquete) o amor é uma espécie de insanidade... Havia pouquíssimos médicos com essa característica no período medieval, com formação universitária fortemente baseada nos textos dos médicos hipocráticos. Costumavam atender os reis, papas, nobres, importantes figuras da igreja e comerciantes prósperos. O que pude observar a partir do relato desse e de outros casos de Santa Cruz, é que chegavam até esses médicos situações de sofrimentos cotidianos, como a do caso acima, mas havia a necessidade de que fosse um quadro bastante dramático em que houvesse reclusões, recusa a se alimentar, agitação e na maioria dos casos relatados partia de um terceiro o pedido de ajuda. Ou, de acordo com Bartra (2001, p. 89), “para os médicos era importante definir em termos físicos as relações entre as funções psíquicas e as orgânicas”. E caberia aos fluidos, espíritos ou ventos interiores, “essa função mediadora (...) que permitia entender a interação entre alma e as funções orgânicas”. Melancolia era a categoria médica utilizada na ocasião para enquadrar situações que hoje se encontrariam em classificações médicas distintas, como depressão, bipolar, esquizofrenia, surtos psicóticos, entre outros. Apesar da racionalidade dos médicos hipocráticos ser bastante distinta da biomédica, percebe-se uma característica semelhante que é a tentativa de explicar situações muito complexas, como uma desilusão amorosa, por meio de conexões causais que se restringem ao corpo. Sei que tampouco falamos da mesma visão de corpo, o corpo medieval não é o mesmo corpo moderno, mas com isso quero dizer que há uma tentativa de enquadrar uma situação mais ampla dentro daquele que é seu campo de atuação, o do médico. Uma situação de sofrimento por “amor” ou por dificuldades na relação com um companheiro que pudemos observar na pesquisa foi a de Edmundo, que vinha para a primeira consulta com Dra. Suzana (C.S. Amendoeira). Ele havia passado já por uma consulta com a enfermeira, 73 que agendou com a médica. Ele inicia dizendo que está bem (o que talvez queira dizer que não se sente doente) e que: “o problema, que eu venho, e a Sra. Sabe, é por causa de uma relação mal resolvida no momento, que eu tô querendo sair dessa relação e ele não quer, insiste em continuar, porque a gente mora em cidades diferentes, de um dia para cá, eu tinha desconfiança mas eu levava, ele me falou que tava tendo relação com uma pessoa...”. E por aproximadamente 20 minutos Edmundo fala de como está se sentindo, angústia, tristeza, incerteza em relação ao que fazer, que atitude tomar, sempre relacionando suas sensações com a situação por que vem passando e de como sofre porque “gosto dele”. Em apenas um breve momento surge o tema da depressão, Edmundo se preocupa em saber se não há algo mais em relação às suas sensações, alguma explicação e alguma solução médica para sua situação. Sei que estamos falando de contextos tão díspares (da medicina e da melancolia do século XVI na Espanha e do sofrimento dos dias atuais) que não podemos interpretar um ou outro por aproximação, mas o primeiro exemplo pode nos ajudar a estranhar a situação que nos é mais familiar, mais próxima, a última. O exemplo de Edmundo nos faz pensar que a categoria médica depressão, que seria sim uma redução e uma reificação de situações mais amplas em um modelo biomédico, é apenas um véu nesse caso, fino, facilmente transponível que permite levar Edmundo a um espaço de fala e de escuta, e colocar sua situação, seu problema, suas angústias diante de outro(s). Não vemos exemplos semelhantes nos relatos de Alonso de Santa Cruz, no sentido de que alguém voluntariamente procure o médico por um problema que conscientemente relaciona a uma situação de sua vida afetiva e muito menos que esse espaço possa ser terapêutico por meio da fala e da escuta (talking cure). Pelo contrário, SANTA CRUZ (2005 [1569], p. 99) descreve um caso relatado por Galeno que pode nos demonstrar como a situação é bem diferente. Galeno é chamado para atender a uma mulher que passava a noite em vigília e que quando dormia tinha um sono agitado e diz “como a encontrei sem febre, eu a interroguei sobre cada uma das coisas que sabemos que podiam haver passado fora da vigília”. E como a mulher não parecia querer responder ao seu interrogatório, pois virou-se para o outro lado e deitou-se como se quisesse dormir, Galeno teria pensado: “ou bem esta mulher padecia de uma baixa anímica por efeito de la atrabilis, ou sofria por certa tristeza que não queria confessar”. A técnica que dispensará “ao descobrir que não estava danada em nenhuma parte do seu corpo, senão que somente padecia de uma alteração em seu ânimo” será avaliar a frequência de seu 74 pulso enquanto alguém fala propositadamente em ocasiões diferentes nomes de pessoas conhecidas, dentre elas o de Pílades, de quem era “vítima de amor”, e seu pulso se agitava enormemente. Uma outra referência vem de um texto literário, mas que traz muitos aportes históricos, que é o de Victor Hugo, em Les Miserables, de 1840 (2002, p.44), em uma passagem, o personagem do bispo de Digne comenta o livro Filosofia da Ciência Médica e nele faz uma nota: “Por acaso, não sou também médico como eles? Também tenho meus doentes; primeiro os deles, que eles chamam de doentes, e depois os meus, que chamo de infelizes”. Nesse período, a biomedicina já se desenvolve em ritmo acelerado, especialmente na França, os hospitais já se assemelham aos hospitais como conhecemos hoje, atuais locais privilegiados para observar e estudar as doenças (FOUCAULT, 2003). Tanto no período dos médicos hipocráticos, escolásticos, quanto na moderna medicina, parece não haver uma abertura para os sofrimentos existenciais diretamente, somente quando o corpo (no caso medieval ou no moderno) adoece é que se iniciam as explicações racionais próprias e as terapêuticas e que geralmente não se referem à intervenções psicológicas, familiares ou sociais. Na virada do século XIX para o século XX é que passa a existir a ideia de uma psicologia médica, bastante influenciada no início pela psicanálise. O clínico geral, figura comum no século XIX, na Europa Ocidental, nos EUA, também no Brasil, não se deparava com situações como a que descrevemos acima. O seu catálogo de doenças rechaçava esses casos, que de acordo com sua avaliação poderiam ser orientados a buscar ajuda religiosa, filosófica ou psiquiátrica se os sintomas lhe pudessem sugerir algum transtorno psiquiátrico, como a melancolia, a mania ou a dementiae precoaex. Mesmo a prática psiquiátrica desse período estava voltada mais para os casos de psicose. E ainda hoje, nas faculdades de medicina mais tradicionais, é comum os professores orientarem a não dar espaço para que o paciente fale além do que os interessa como médicos. Mas a situação vem mudando em faculdades médicas, serviços públicos de saúde e as abordagens dos profissionais e as possibilidades de utilização desses serviços para os usuários têm aumentado. Mcwhinney (2010, p.68) é um MFC notório conhecido por ter formulado as bases teórico-práticas dessa área de atuação. Nesse excerto abaixo, retirado do livro Manual de Medicina de Família e Comunidade, muito conhecido dos MFC, ele se refere a como lidam esses profissionais com situações semelhantes as que vimos acima: 75 O estado de ansiedade sofrido por um jovem atleta é uma doença como pneumonia ou câncer? Eu não acho que algum MFC teria dúvida sobre essa pergunta. Não, elas não são doenças como pneumonia ou câncer. Elas são crises existenciais, encontradas por indivíduos com escolhas angustiantes confrontando-os. Tratá-las como doenças como quaisquer outras seria agir como se a pessoa fosse um sistema mecânico, sem a capacidade de fazer escolhas morais. (...) A maioria das chamadas doenças mentais encontradas por MFC, contudo, são crises existenciais, e esses são problemas mais do espírito humano do que doenças. A ansiedade e os sintomas físicos produzidos por essas crises não são anormais. Elas não são algo para ser tratado ou curado. Elas deveriam ser entendidas mais como um convite para o auto-exame. (...) Alguns críticos da medicina e da psiquiatria tem argumentado que não é ocupação do médico estar envolvido em questões desse tipo. Para isso, eu acho que qualquer MFC responderia, „Diga-me como eu o evito‟. Ao dirigir-se a essa demanda de pessoas que sofrem por questões existenciais, mas que não são doentes na sua acepção, ele traz uma ambiguidade, que me parece uma das características marcantes no modo como os MFC lidam com esse tema. Afinal é uma demanda que pode ser entendida como deslocada em relação ao seu campo de trabalho, como um efeito da medicalização ou da desmesurada importância da biomedicina, mas que por outro lado coloca em destaque uma das referidas vantagens ou virtudes do MFC em relação às outras especialidades médicas: que a forma peculiar com que aborda esse problema é o que evitará uma (maior) patologização dessa demanda. Isso, claro, se nos referimos, no campo da medicina de família e comunidade, ao grupo mais influenciado pela área da psicologia médica e da comunicação clínica, que tem uma forte representação original em Michael Balint (2005), psicanalista que trabalhou com MFCs na Inglaterra do pós-guerra, cujo trabalho está condensado no livro O Médico, Seu Paciente e a Doença. Nesse e em outros livros, Balint e seus seguidores destacam uma abordagem centrada-na-pessoa, em que o objetivo é ir além dos sintomas para o contexto do sofrimento. 76 Recentemente, passa a haver também uma aproximação cada vez mais forte da psiquiatria na APS, e aí o enfoque principal é outro, a correta identificação de doenças psiquiátricas a partir de uma descontextualizada identificação de sintomas. Não nos aprofundaremos aqui nas diferentes formas de abordagem médica dessas queixas, mas na relação que essas diferentes posturas e possibilidades de ação médica guardam com a demanda que chega ao C.S. Pois, apesar de muitos profissionais da APS afirmarem, como dizíamos no início, não compreender porque as pessoas vêm ao C.S. por situações que consideram como não-médicas, provavelmente há alguma sinalização por parte de quem oferece o serviço de que essa demanda será aceita e, ainda, de que será prestado algum serviço que provoque efeitos positivos, do contrário essa demanda deixaria de existir. Mas qual é a sinalização do que pode ser ou não uma demanda em C.S. ou Centros de Primária nos serviços públicos nacionais de saúde? Quais os efeitos positivos dessa prática, abordagem ou espaço que colocam o C.S. no itinerário daqueles que desejam verbalizar ou comunicar algum sofrimento? 2.5 CONFIDENCIALIDADE, IMPARCIALIDADE, IRRECIPROCIDADE Nessa parte gostaria de abordar as situações em que percebemos que a demanda se concentra em narrar situações de sofrimento sem haver necessariamente a sombra da classificação ou da intervenção médica. Claro que em algum sentido ainda falamos de medicalização, porque trata-se de recorrer à empresa médica por situações que como vimos costumavam estar distantes do espaço de atuação da medicina. Mas gostaria de focar a discussão em tentar compreender melhor os sentidos, os motivos, os significados que esse espaço trazem para quem o utiliza. Para isso contaremos o exemplo de Lucio, de 46 anos, que vem para consultar com a Dra. Gisele, do C.S. Figueira. Ele acompanha também com o psiquiatra, em um C.S. de referência, e diz ter o diagnóstico de bipolar. Boa parte da consulta no entanto concentra-se nas suas dificuldades com a esposa: “Eu tô com muita raiva, no limite, entendeu (…) Ela ficou com medo de mim [depois que ele teria agredido o irmão da esposa] então ela não faz mais nada (…) Eu atuo há 10 anos como segurança e a postura das pessoas que trabalham com a gente, a gente vai aguentando, mas não tem sangue de barata”. Pude perguntar a ele depois da consulta porque havia buscado o C.S. e sobre outros recursos para lidar com o que ele trouxe como maior dificuldade, sua irritabilidade. Lucio nos diz que “não tenho 77 amigos” e ao perguntar sobre sua religiosidade conta que “não sou um ateu, um incrédulo, já acreditei muito”, mas que esse não é um recurso nesse momento. O que ele parece nos sinalizar são duas coisas, primeiro uma necessidade de expressar suas dificuldades, seus sofrimentos, e outra é a falta de outros espaços para esse exercício além do C.S. Para Lucio, o C.S. parece servir como a única opção para uma “limpeza de chaminé”, o termo cunhado por Anna Ó, sobre as primeiras sessões de cura pela fala com Breuer, parceiro de Freud no livro Estudos sobre a Histeria (BREUER e FREUD, 2006, p. 232). Mas temos que cuidar para não naturalizar essa necessidade de expressão do sofrimento em C.S, que me parece bastante circunstancial. Em seu livro clássico, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, Evans-Pritchard (2005) em que descreve sua etnografia, realizada na década de 1920, entre o povo Azande, da região central da África, nos fala desse sistema cultural baseado no que chamou de bruxaria, oráculos e magia (originalmente mangu, soroka e ngua). Destaco um trecho que me parece interessante (EVANS-PRITCHARD, 2005, p. 79): é na variedade de eventos que são considerados moralmente significantes que as noções morais azande diferem mais profundamente das nossas. Pois, para um zande, quase todo acontecimento que lhe prejudica se deve às más intenções de outrem. O que lhe faz mal é moralmente mau, isto é, procede de um homem mau. Todo infortúnio implica a noção de injúria e o desejo de retaliação. Pois toda perda é considerada pelos Azande como imputável a bruxos. Para eles, a morte, seja quando for, é assassinato e clama por vingança; para eles o fato importante é o evento ou a situação da morte, e não o instrumento que a ocasionou, seja este a doença, um animal selvagem ou a lança do inimigo. A ideia de citar uma situação que nos parece tão distante, no tempo e no espaço, é para ver como essa cultura, dos azande, “estabelece uma ligação entre o sistema terapêutico e as enfermidades indígenas” (MARTINEZ HERNAEZ, 2008, p. 21). Situações desagradáveis, inesperadas, na cultura zande, contam com uma trama de recursos simbólicos que dão sentido aos por quês desses adventos. De acordo com Martinez Hernáez, apesar da sua leitura de base que separa 78 o tempo todo a sua visão científica da primitiva, Evans-Pritchard nos oferece a interessante observação de que o povo azande atribui às explicações místicas ou irracionais apenas as questões que tratam do porquê dos acontecimentos e não do como eles ocorreram, enquanto o porquê nos remete a valores, o como nos remete a feitos e acontecimentos (2008, p. 25). O que provavelmente buscava Cecília no seu itinerário para lidar com o sofrimento pela perda do neto era entender o que em nossa sociedade secular, racional, atribuímos ao inexplicável. Sabemos como ele morreu, a medicina pode explicar em detalhes a cadeia causal do enforcamento ao fim da atividade de seus órgãos vitais. É possível ainda associar diversas das situações desagradáveis pelas quais vinha passando, como a separação, mas ainda não explicaria por quê tantos outros que sofreram coisas piores não tiveram a mesma atitude. O que tentei trazer com esse exemplo é que essa necessidade que pode parecer universal e intrínseca de expressar ou narrar os sofrimentos subjetivos pode não ser uma questão em culturas como a do povo azande em que há outros recursos para lidar com o que atribuímos ao imponderável. Por isso, acho que é preciso abordar de duas maneiras essa demanda mais explicitamente interessada em narrar seus sofrimentos para o MFC. Uma primeira está relacionada à formação desse sujeito, que sente e se vê cada vez mais individualizado, descolado de um coletivo, que é próprio da nossa cultura moderna ocidental. E a segunda seria tentar compreender que vantagens pode apresentar o C.S. e o MFC para servir como recurso de escuta a esse sujeito. Não perderemos muito tempo em relação ao primeiro ponto, senão tentar resumir brevemente o trabalho de Marcel Mauss (2003) em seu texto - Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a de “eu” -, em que tenta “explicar como uma das categorias do espírito humano – uma dessas ideias que acreditamos inatas – lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos através de inúmeras vicissitudes” (2003, p. 369). Mauss (2003, p.376) inicia com a noção de personagem, que são os papéis ou máscaras permanentes ou não em que “a partir das classes e dos clãs, ordenam-se as 'pessoas humanas', e como, a partir destas, ordenam-se os gestos dos atores num drama”. Passa em seguida à noção de pessoa na antiga sociedade indiana, em que o “eu” representaria por meio do termo ahamkara (fabricação do eu) ou a noção de um eu ilusório em samkhya, que significa composição. Da mesma forma, nos explica, no budismo antigo, o eu surge como “apenas um composto, divisível, separável de skandha, e buscava seu aniquilamento no monge” (MAUSS, 2003, p. 383) Com o termo 79 persona, de origem latina, que mantemos hoje na palavra pessoa, nasce uma noção de eu que vai além de um elemento de organização coletiva e passa a ser um “fato fundamental do direito” (MAUSS, 2003, p. 385). Um outro costume romano que demonstra essa fundação da persona, segundo Mauss (2003, p. 387), são os nomes, prenomes e cognomes que passam a adotar e a distingui-lo. Para Mauss (2003, p. 392), no entanto, foram os “cristãos que fizeram da pessoa moral uma entidade metafísica, depois de terem sentido sua força religiosa”. A unidade da pessoa seria igualada em relação à unidade de deus e daí a noção atual de uma pessoa como uma substantia rationalis individua, substância racional individual. O próximo passo a que nos leva o autor, é a da pessoa como ser psicológico e Mauss (2003, p. 392) descreve esse caminho da seguinte forma: a mentalidade de nossos antepassados até o século XVII, e mesmo até o final do século XVIII, é atormentada pela questão de saber se a alma individual é uma substância ou se é sustentada por uma substância – se é natureza do homem ou se é apenas uma das duas naturezas do homem; se é una e indivisível ou divisível e separável; se é livre, fonte absoluta de ações, ou se é determinada e está encadeada por outros destinos, por uma predestinação. Mauss (2003) passará sucintamente por querelas filosóficas, de Espinosa, Descartes, Hume, Berkeley, Kant, para finalizar com Fichte, que para Mauss foi quem fez dela, da categoria do “Eu”, “condição de consciência e da ciência, da Razão Pura” (2003, p. 396). Toda esta aparente digressão em relação ao nosso tema vem para auxiliar-nos a compreender que uma demanda por espaços individualizados para narrativas de sofrimento precisam ser contextualizadas a um período e cultura em que essa categoria do “Eu” descrita por Mauss (2003) apresenta-se bastante psicologizada e individualizada. Essa categoria, a do “Eu”, de como as pessoas se individualizam em relação a um coletivo e também como expressam sua subjetividade aparecerá de modo bastante heterogêneo nas observações da pesquisa. O tema do sofrimento social parece ser uma boa forma de avaliar subsistemas culturais da sociedade contemporânea, no nosso caso entre as diferentes tribos que frequentam um C.S., pessoas mais velhas que cresceram em uma sociedade pré-moderna, adolescentes, etc.. 80 O outro ponto de partida seria o que atrai essas pessoas para o C.S. para a narrativa de sofrimentos para além do tema da medicalização? Acho que poderíamos desenvolver essa discussão por meio de algumas características particulares desse espaço, que seriam: 1. a confidencialidade; 2. a pretensa ausência de julgamentos morais, e; 3. o descompromisso em relação a uma reciprocidade. Se já dissemos que uma das características da (pós)modernidade é a construção desse sujeito independente, psicologizado, instado frequentemente a fazer escolhas que já não encontram referenciais únicos, fixos, o C.S. pode ser um espaço interessante para colocar seus dilemas pessoais e ver como ecoam. O mesmo papel provavelmente cumpririam para a classe média alta e alta o psicanalista, o psicólogo ou o psiquiatra para as abordagens mais biomédicas. Em várias das consultas que observamos, como no caso do Lucio, parece haver um momento em que o mais importante para quem narra é a narrativa em si mesma, ter a oportunidade de falar de seu problema sem necessariamente esperar do outro uma solução definida ou definitiva. O ouvinte, no entanto, não é como um amigo, um vizinho, porque supostamente é um sujeito do saber, mas o que o profissional de saúde parece oferecer de melhor ao narrador é o fato de que mesmo em um bairro pequeno com 3 mil habitantes suas questões mais íntimas não sairão daquele espaço. Uma outra vantagem, é que ao nos queixarmos para alguém com quem convivemos temos uma certa obrigação, de reciprocidade, de ser aquele que ouve e aconselha em uma próxima ocasião, o que não acontece no C.S. E há, ainda, o senso comum e os ditames ético-profissionais que evitam que esse profissional faça julgamentos morais muito óbvios ou exaltados, sob pena de ser processado ou acusado de tê-lo feito. A antropologia médica nos oferece ainda muitas outras possibilidades de pensar essa demanda. Martinez Hernaez (2008) em seu livro Antropologia Medica: Teorias sobre la cultura, el poder y la enfermidade faz um interessante resumo sobre o desenvolvimento da antropologia médica desde o início do século passado até o atual momento que pode nos ajudar a pensar as possibilidades de interpretação dessa demanda de sofrimento social que chega à APS. Já apresentamos mais acima um texto, o de Evans-Pritchard (2003), que pertence, segundo Martinez Hernaez (2008) ao modelo clássico, em que se realizavam etnografias em sociedades ou culturas diferentes da própria, ocidental, em que a leitura do investigador sobre o outro, o exótico, hierarquizava as noções de ciência, a nossa, e crença, a deles. Se exploramos estudos etnográficos da década de 1950 e 1960, do 81 modelo paradigmático descrito por Martínez Hernáez, encontraríamos estudos de sociedades modernas ocidentais com um enfoque utilitarista para a biomedicina ou para políticas de saúde pública. Essa linha da antropologia médica ainda mantém sua força atualmente se pensarmos que é por meio dela que muitos profissionais de saúde se aproximam dessa área. Desde a virada do século XIX para o XX, provavelmente por múltiplas influências, como a psicanálise e estudos sobre determinantes sociais de saúde, chegamos a uma definição do conceito de saúde como a proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 1948, do “completo bem estar, físico, psíquico e social”. A constituição brasileira de 1988 em seu artigo 196 concebe saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Apesar de vivermos um avanço incomparável da biomedicina, em direção à explicações cada vez mais aprofundadas em termos fisiopatológicos e genéticos, não se pode dizer que não houve também nesse período uma valorização das condições sociais e psicológicas na compreensão desse conceito, cada vez mais caro, que se chama saúde. Não é difícil que qualquer estudante de saúde lhe diga rapidamente que os problemas de saúde são biopsicossociais, que tudo pode influenciar, que as condições de vida tem a ver, etc.. Mas é uma ampliação do conceito de saúde, bem ao modo apresentado por Good nesse trecho (2003, p. 81-82): As ciências do comportamento médico – psicologia médica, sociologia do comportamento da enfermidade, ciências do comportamento aplicadas à saúde pública e à epidemiologia – tiveram grande relevância na educação e na investigação médica norte-americana durante várias décadas e tem se desenvolvido rapidamente ao largo dos últimos quinze anos contribuindo para a crítica do que tem se designado amplamente como “modelo médico”. Sem dúvida, em grande medida, esses trabalhos se baseiam em modelos de crenças e comportamentos firmemente enraizados em um paradigma positivista ou empirista, que compartilham com a biomedicina. A linguagem da crença é ubíqua e, ainda que se critique a biomedicina por não ter em conta as variáveis sociais e psicológicas, o 82 conhecimento médico se considera majoritariamente normativo (…) E as aplicações se orientam em grande medida a educar os indivíduos a modificar o comportamento irracional, isso é reduzir os fatores de risco, a seguir as prescrições médicas ou os adequados recursos da atenção médica. Nesse excerto, a crítica é semelhante a que Martínez Hernáez (2008) nos relata em relação ao modelo paradigmático, de uma subordinação das ciências sociais à biomedicina ou de uma determinada visão de saúde pública. Compreender melhor como a população pobre da favela explica o processo de adoecimento, as doenças sexualmente transmissíveis, a necessidade e o uso de drogas, entre outros, para intervir e provocar mudanças no sentido do que se considera ideal (ideal que jamais será objeto de reflexão ou etnográfico). De acordo com essa leitura, por exemplo, se proporcionamos ao profissional de saúde esse entendimento da importância de se conhecer o território (em um sentido amplo) em que vive a população que atende, a escuta das queixas existenciais não seria tão irrecíproca como dizíamos, já que servirá para que paulatinamente ofereça como moeda de troca os seus ideais morais, sua concepção de família, de saúde, etc.. De acordo com a síntese das correntes da antropologia médica que nos faz Martinez Hernaez (2008, p. 38), a partir da década de 1960 surgirá o que chama de modelo crítico, que se desdobra em diferentes linhas teórico-práticas, como a fenomenologia e a neo-marxista, ele nos diz que: A antropologia médica é, de fato, um dos campos de maior debate teórico nos últimos tempos (GOOD, 1994, CAMBROSIO, YOUNG y LOCK, 2000). As discussões entre fenomenologia e marxismo encontraram na enfermidade e na atenção médica um foco privilegiado para discutir sobre a importância da superestrutura e da infraestrutura na vida social. As instituições médicas, por sua parte, se converteram em um objeto nuclear para debater problemas como o poder, a dominação e isso que Foucault (1990) denominou biopolítica. 83 Para Good (2003, p. 138), por exemplo, que se fundamenta mais na fenomenologia, a medicina atual tem um papel de “mediação entre fisiologia e soteriologia. A enfermidade combina dimensões físicas e existenciais, a dor corporal e o sofrimento humano. Por mais materialista que seja, e por mais que esteja baseada nas ciências naturais, a medicina, como uma forma de atividade, combina os âmbitos moral e material”. Good (2003) nesse exemplo se aproxima à leitura que se tem feito desde a segunda metade do século passado, especialmente, que tem aproximado os profissionais de saúde de uma visão mais integral do processo saúde-doença e, também, como consequência de um certo borramento no limite entre o normal e o patológico, já que a abordagem já não se centra mais tanto na doença médica senão no adoecer do paciente. As noções correntes na APS de acolhimento, escuta qualificada, abordagem-centrada-na-pessoa e clínica ampliada se alimentam também desse entendimento do processo saúde-doença em que passa a haver um interesse dos profissionais de saúde pelas narrativas que trazem os pacientes sem se limitar à visão objetiva da doença. E o que pudemos ver na observação de campo é que nesses casos em que a principal demanda se trata de uma questão existencial por meio de uma narrativa sobre sintomas bastante subjetivos e problemas concretos de vida, já não é tão fácil definir os conceitos de disease e illness, porque muitas vezes o demandante vem com uma suspeita de doença com jargões médicos e o médico ou enfermeiro suspeita de que não se trata de nenhuma doença “orgânica” senão do processo de separação por que passa ou das dificuldades que enfrenta no trabalho. Do mesmo modo com os Explanatory Models (EM) de Kleinman (1988), por que o senso comum já está tão medicalizado e as pessoas possuem tantas informações biomédicas que não é raro ver o profissional de saúde no papel de buscar outros modelos explanatórios para a situação que se traz. Kleinman (1995, p. 8) nos dirá em outro momento que “eu, como muitos outros, indubitavelmente incluindo o próprio Geertz, tenho me tornado menos impressionado com conexões sistemáticas e mais pelas diferenças, ausências, fendas, contradições e incertezas”. Nesse ponto, o autor se aproximar da leitura de autores chamados pós-modernos (BAUMAN, 2001; GIDDENS, 2002) em que se identifica nesse período da modernidade uma impossibilidade de leituras totalizadoras, determinantes. O que nos levaria para nossa observação de campo sobre essa demanda a valorizar ou a destacar mais não tanto as semelhanças ou generalizações que poderíamos fazer a partir dessas narrativas mas as diferenças, as particularidades, a maneira 84 como os atores, profissionais de saúde e pacientes, desviam ou permanentemente fogem das nossas expectativas de explicação muito baseadas em desenhos teóricos prévios. E de fato, abundam exemplos de situações bastante díspares na APS: como quando o diagnóstico médico resume para um, outro, ou ambos, médicos e pacientes, todo um contexto mais amplo; momentos em que o consultório não se assemelha à imagem que mais comumente fazemos de um espaço médico quando se percebe tantas narrativas sobre relacionamentos familiares, problemas econômicos, dificuldades no trabalho; da mesma forma, a relação médico-paciente transita muitas vezes entre o sagrado e o profano, entre um distanciamento, uma verticalidade, que é produzida por ambos, ou uma relação que parece íntima, de amizade, ou ainda uma outra bastante funcional, pouco afetiva, banal, como se fossem cliente e consumidor (tema que será aprofundado no capítulo 4). Se valorizamos o contexto social em que se dá essa situação, quais são as condições de vida que conformam e constituem essa experiência falaremos desde um ponto de vista dos marxistas ou neomarxistas. A partir dessa leitura, mais sistemática, as narrativas de sofrimento social deixam de ser valorizadas apenas em seus aspectos mais subjetivos ou intersubjetivos, de sua rede simbólica, e passam a ser vistas como efeitos das relações de poder a que estão submetidas. Poderíamos desde aí avançar em duas frentes: falar da relação de poder entre médico e paciente e sobre o tema da medicalização; ou a partir dessas narrativas de sofrimento social procurar entender as principais formas ou instrumentos de opressão a que se referem nossos narradores. 2.6 UMA MEDICALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO As demandas que acompanhamos nesses 4 meses na APS pode servir de exemplo do processo de medicalização. É provável que se acompanhássemos um MFC ou um clinico geral há 3 ou 4 décadas atrás não nos depararíamos com uma variedade tão grande de situações como as que encontramos hoje para as quais se busca uma explicação médica e também alívio do sofrimento. É provável, por outro lado, que muitos me lembrarão da famosa citação, provavelmente oriunda da Idade Média, baluarte de uma medicina que se define como humanista: “aliviar às vezes, consolar sempre, curar raramente”. Mas como já vimos é muito particular o modo como a medicina moderna absorve, categoriza e propõe as intervenções para os temas de que se apropria. Poderíamos citar vários exemplos relacionados ao tema do comportamento, da alimentação, da sexualidade ou da atividade sexual, 85 da aparência física, etc... A ampliação do catálogo de assuntos sobre os quais a medicina tem algo a dizer se reflete imediatamente na demanda que chega ao C.S., o mais próximo representante local dessa instituição global e poderosa. Há muitos padrões normativos na sociedade atualmente que passam pela avaliação médica ou por uma avaliação com algum profissional de saúde: o peso e altura ideais, a forma corporal ideal, a alimentação correta, os vícios proibidos, a frequência da atividade sexual, a quantidade de sol a se expor, a memória e a inteligência adequadas, entre outros. E pudemos presenciar inúmeras situações em que o tema do sofrimento se vincula ao da medicalização, de duas formas principais: 1. naqueles casos em que o sofrimento decorre de uma grande expectativa sobre as possibilidades de um serviço ou produto médico; 2. naqueles casos em que o próprio sofrimento é vinculado à alguma doença psiquiátrica. Para exemplificar a primeira categoria, vejamos a história de Giovana, de 17 anos, que vem para consultar com a Dra. Fabiana (CS Garapuvu). Ela é jovem, magra, veste-se de um modo diferente do público geral desse CS, parece bastante preocupada com a aparência. Em poucos minutos de consulta ela nos traz várias preocupações: dor de estômago, dor de garganta, acha que está acima do peso, dor de cabeça, corrimento vaginal, a pílula está fazendo mal; e para cada uma dessas situações relata inúmeras visitas à farmácia privada do bairro e tantas ou mais medicações experimentadas. Giovana parece exemplificar bem as pessoas que buscam atingir determinadas normas sociais, como a da aparência física, ou de bem estar, por meio da medicina. Lembra o que já nos alertava Illich (1976) ao falar da busca patológica pela saúde, quando corrigia o que havia escrito em seu famoso livro, Nemesis da Medicina, sobre a heteronomia na saúde. Illich dirá que já poderia ter previsto o quadro que se nos anunciava hoje, essa estranha forma de autonomia em saúde, que faz com as pessoas se preocupem e adoeçam cada vez mais na busca ansiosa por padrões idealizados. Da mesma forma, Fernanda relata à Dra. Gisele sua preocupação com a tireóide após ter visto uma reportagem na TV que associava “problema na tireoide” à “sensação de frio” que sente eventualmente. Em seguida fala de um ultrassom que fez do abdome, aquele “que pega tudo né?” por que sentia dor no estômago e “apresentou uma anormalidade no rim esquerdo, mas disseram que era normal”. O que pretendia mostrar com esse exemplo, é que parece ser uma grande fonte de sofrimento para Giovana as expectativas que gera e as respostas que espera da medicina para atingir uma espécie de bem-estar físico, de aparência física, e de anestesia em relação a qualquer tipo de sintoma. 86 Para ilustrar o segundo modelo, mais propriamente de uma medicalização do sofrimento, poderíamos falar de Nadia, que vem para sua primeira consulta com Dra. Gisele (CS Figueira) e inicia sua fala dizendo que: “eu não sei se eu posso chamar de depressão, porque eu era muito alegre, contente e minha vida transformou completamente (…) faz uns 2 meses. Eu sinto muito tristeza, muita vontade de chorar [e chora] (…) não tenho problemas, família, filhos. A gente passou uma dificuldade grande, minha filha saiu de casa, de 15 anos. A gente veio do interior, estamos sozinhos aqui, a gente trabalha muito, em horários diferentes, tem pouco contato. Lá a gente se visita bastante, aqui é muito longe. Mas acho que não é por isso. Eu era uma pessoa muito alegre, temos uns amigos aqui, a gente... só que sei lá. Talvez seja isso da minha filha. Ela tinha um namoradinho que a gente não aprovava” e daí em diante Nadia firma sua narrativa, mais caótica no início, relatando a história da filha, de um relacionamento que não aprovavam, da suspeita de gravidez e de um aborto. “Ela mudou completamente só que acho que eu fiquei com o trauma daquilo, porque foi muito complicado e o cara taí, né?”. A história de Nadia pode exemplificar bem a situação que colocávamos acima porque ela parece trazer duas necessidades para a MFC, a de descartar ou não um diagnóstico médico, nesse caso, de depressão, e uma outra de desabafar. Mas aqui gostaria de destacar a ideia de medicalização, de como uma situação tão complexa como a que ela descreve encontraria uma síntese no diagnóstico de depressão, para o qual afinal há intervenções mais objetivas. Por medicalização entenderemos aqui a transformação contínua de determinadas situações, variações ou anomalias em novos objetos de estudo da biomedicina. Anomalia, que para Canguilhem (1982) é “a variação individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo”, mas não é uma patologia. Esses temas são incorporados por ela e passam a ser entendidos por meio de sua lógica particular. Para Camargo Jr. (2003, p. 73-74), a medicina moderna se erige a partir de uma teoria das doenças, em que se organiza um conjunto distinto de representações, como a anamnese, a semiologia, as classificações diagnósticas e os tratamentos. É cara à biomedicina a categorização de doença. Me parece haver aí um limite entre o que pertence ou não ao seu campo de atuação. Encontraremos as bases conceituais de como nasce a medicina em torno de uma teoria das doenças bem descritas em O Nascimento da Clínica (2003) de Michel Foucault. Nesse texto, o autor (2005) nos relata como a anatomia-patológica moldará um novo olhar e um novo discurso clínico erigidos em torno da doença como entidade biológica concreta e 87 independente da particularidade do sujeito. O problema em relação a uma medicalização do sofrimento, capitaneada por uma nova psiquiatria, que desde o DSM-III vem se afastando de interpretações mais psicodinâmicas em direção aos parâmetros biomédicos, é que as explicações reducionistas nesse caso ampliam-se porque os “sintomas psíquicos”, nos diz Martinez Hernaez (2008, p. 136) “envolvem outro tipo de referentes, como os valores e obrigações sociais, as transgressões e as ofensas dos atores sociais (…) as enfermidades mentais constituem violações da organização dos lugares públicos, das ruas, da vizinhança e dos comércios”. E a despeito de a psiquiatria possuir um marcador biológico que possa definir a lesão orgânica que causa as entidades patológicas que anuncia, as categorizações baseadas apenas em sintomas subjetivos e os efeitos dos medicamentos utilizados nas intervenções têm feito com que ela receba o mesmo status de outras especialidades médicas (CAPONI, 2009). Desse modo, o exemplo de Nadia poderia facilmente fazer parte do diagnóstico de depressão independente do contexto que nos explicou, porque ele não é necessário para a classificação. Claro que dependeria muito da abordagem de cada profissional, mas facilmente toda a sua narrativa poderia ser condensada em uma entidade patológica, chamada depressão, que é muito comum ou prevalente, e que por motivos que jamais saberemos foi afetada por ela. Boa parte das suas dificuldades e atitudes que se seguiram ao início dos “sintomas” poderiam igualmente ser atribuídas às típicas manifestações dessa entidade morbosa. Kleinman (1995, p. 115) traz um exemplo semelhante quanto ao modo como a biomedicina pode apagar os significados políticos e morais do sofrimento humano ao resumi-lo a sintomas e diagnósticos, como nos diagnósticos de desordem do estresse pós-traumático e tragédias vividas em guerras ou em períodos de fome, como na China entre 1959 e 1961. Além da medicalização, como já dizíamos mais acima, essas narrativas de sofrimento poderiam ser observadas ainda desde um outro ponto de vista em relação ao poder, agora não mais somente na relação médico-paciente, mas referindo-nos às formas de opressão que as estruturas sociais e o modo de vida a que podem estar submetidos os sujeitos. Nesse sentido, como os bairros em que fizemos as observações sofreram grandes transformações recentes, de um modo de vida bastante pré-moderno para um moderno (e ao mesmo tempo tardo-moderno), é interessante observar como esses diferentes modos de vida relacionamse a diferentes modelos de saúde-enfermidade-atenção, assim como a distintas formas de sofrer e de expressar o sofrimento social. Mesmo essas narrativas que acompanhamos, involucradas pelo consultório do 88 MFC ou pelo C.S., revelam bastante a esse respeito. Nas comunidades mais antigas e tradicionais, como no C.S Figueira e Amendoeira, especialmente, o contato com os moradores nativos maiores de 60 anos contam a história de um tempo em que a maioria vivia da agricultura de subsistência ou da pesca, possuíam os meios de produção e eram bastante autônomos em relação às suas necessidades materiais, como alimentos, roupa, mobiliários, assim como o eram em relação às necessidades em saúde. Esses senhores e senhoras não costumam frequentar tanto o C.S., é curioso porque quando vem costumam dizer “não gosto muito de vir em médico”, ou “nunca precisei, minha saúde é boa” e atribuem essa vinda a um pedido dos filhos ou dos netos, para quem dizem que é “importante vir no médico, fazer exames, prevenir”. Mas para além das imensas modificações que os modos de vida provocam em relação ao modelo de saúde-enfermidade-atenção, outras diferenças que se percebe a partir dessas narrativas no C.S. referem-se a aspectos ainda mais amplos, como as novas relações trabalhistas, as mudanças em relação às questões de gênero, as migrações. Um exemplo é o caso de Antônio, de 44 anos, que vem para uma segunda consulta com Dr. Bernardo (C.S. Araucaria) por um “estresse no trabalho”. Passa por uma situação difícil e que não pode resolver, que é a relação com a sua superiora. Antônio pede ajuda porque não sabe como resolver essa situação inusitada para ele: “quando eu tenho um problema eu vou e resolvo e esse eu não posso, porque eu dependo desse emprego (...) nunca tinha acontecido isso, eu nunca tinha trabalhado para ninguém. Então, (…) se eu for discutir eu vou perder o emprego e eu preciso, então como é que eu vou trabalhar um negócio desse vendo ela todo dia e ela me enchendo o saco?”. Esse é mais um exemplo interessante de demanda que aparece para o MFC, porque o C.S. surge novamente mais como um espaço para um lamento, uma narrativa para um observador especial que talvez lhe ajude a encontrar uma saída (que provavelmente não poderia ser feita no próprio local de trabalho e que talvez já tenha sido feito demasiadas vezes em casa sem o resultado esperado), do que a esperança de que haja de fato aí uma resposta mágica. Mas o que pode demonstrar essa história são esses novos campos de tensão, gerados por postos de trabalho com pouco significado para o trabalhador além da renda mensal, pouca autonomia e relações profissionais muitas vezes autoritárias em um tempo em que curiosamente se anuncia não aceitar esse tipo de postura. No caso de Antonio, parece ser difícil aceitar porque sempre foi autônomo e, talvez, seja ainda mais difícil porque sua superiora é uma mulher. Enfim, poderíamos nos estender ainda mais sobre essas ou outras narrativas em 89 que o C.S. surge como um recurso no caminho daqueles que sofrem, ao seu modo, mas em consequência de situações que vemos repetidas vezes e parecem falar da maneira como se organiza a sociedade, suas atividades econômicas, suas instituições, suas relações de poder. 2.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos observar na pesquisa de campo como é ampla e complexa a demanda que busca hoje os C.S. e o MFC. O fato de essas equipes de saúde da família, no exemplo brasileiro, atenderem pessoas de várias faixas etárias por um longo tempo e oferecerem uma agenda aberta, no sentido de não haver alguma restrição por problema de saúde ou algum catálogo prévio de doenças, amplia as possibilidades desse espaço, pela heterogeneidade das situações e das abordagens dos profissionais, para uma análise desde as ciências sociais. Nesse capítulo tentamos de um modo bastante artificial dividir o trabalho de campo e focar mais no demandante ou na demanda que chega até o C.S. e o MFC. A primeira constatação é de que o C.S. é um espaço bastante utilizado como recurso para que as pessoas narrem suas histórias de sofrimento. Algumas vezes bastante relacionadas a uma doença própria, a como lidar com um câncer, com alguma doença degenerativa, com alguma deficiência física. Os exemplos que destacamos aqui, no entanto, voltavam-se mais para outras duas situações: 1. sofrimentos narrados (ou demonstrados de um modo mais corporal) que buscavam uma explicação médica, uma síntese por meio de um diagnóstico e uma resolução específica; 2. narrativas de sofrimento relacionadas a situações de conflito geralmente bem demarcadas que precisavam ser narradas, sem haver necessariamente aqui a sombra do diagnóstico médico. Procuramos desenvolver possibilidades diferentes de interpretar e analisar essas duas demandas, que na observação de campo, como já disse, costumavam se apresentar muitas vezes juntas, com ou sem uma clara hierarquia entre elas. Em relação à primeira, tentamos discutir a partir da noção ou do conceito de medicalização e de como a medicina moderna e seu modo de saber-fazer tem avançado sobre mais e mais temas cotidianos. Fizemos uma breve contextualização histórica com poucos exemplos para ver como o tema do comportamento, das atitudes, das dúvidas e angústias existenciais passa ao mesmo tempo a ser integrado ao campo da medicina e da saúde pública e a servir de recurso para essas demandas. Um fenômeno que, como não poderia deixar de ser, é fruto do seu tempo, e que em alguns espaços como o que pudemos 90 observar, da periferia de países periféricos, pode revelar simultaneamente características que muitos autores atribuem ao prémoderno, à modernidade e quiçá a uma pós-modernidade. O C.S. e o consultório do MFC servem nesse caso como um espaço fértil para análises sobre essa demanda, que pode vir com jargões e diagnósticos médicos, narrativas mais psicologizadas ou mais somáticas, descrições de sofrimentos decorrentes de questões estruturais sociais, entre outras. Mais do que apontar um caminho, acredito que a análise que fizemos talvez ajude a validar todas essas diferentes formas de ver o mesmo problema. Para os profissionais de saúde que lidam cotidianamente com essa demanda que observamos há sim implicações práticas, mudanças na forma de entender e de agir, quando se colocam em contato com essas reflexões, é como dar um passo atrás e retornar ao espaço de prática de uma outra maneira. Para os cientistas sociais, tratase de perceber como o espaço da APS e o trabalho cotidiano do MFC ainda é bastante polissêmico e oferece múltiplas possibilidades de investigação, de interpretação e de atuação. 91 CAPÍTULO 3 - DA OFERTA: A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE (MFC) COMO UMA (SUB)CULTURA No capítulo anterior, vimos como chega aos Centros de Saúde (CS) essa demanda cada vez maior por atenção que, auxiliados por Kleinman (1995), situamos na categoria de sofrimento social. De algum modo, já apresentávamos ali uma certa responsabilidade da oferta de serviços de saúde - de como ela se apresenta e se organiza - na criação e no enquadramento dessa demanda. Na maioria dos países, especialmente naqueles mais desenvolvidos, é o médico generalista ou o médico de família e comunidade (MFC) quem oferece o primeiro atendimento e o seguimento para aqueles que solicitam algum suporte para seu sofrimento. Nesse capítulo que trata mais especificamente do(a) MFC, a proposta é fazer uma contextualização histórico-cultural dessa figura que, junto com os pacientes, protagoniza a pesquisa de campo. Por atuar como MFC há quase 10 anos, muitas outras fontes devem ser incluídas nessa análise, além da observação de consultas. A discussão sobre uma identidade para o MFC é frequente tanto na rotina de trabalho quanto nos espaços acadêmicos, como nos congressos, listas de discussão, livros de referência, falas de cânones da área, etc. A mesma discussão pode ser observada não apenas entre MFCs do Brasil, mas em todos aqueles países em que esses profissionais procuram se organizar associativamente e ocupar maior espaço no próprio meio médico, na academia, nos meios de comunicação, entre outros. Entender a MFC como um sistema cultural ou um subsistema cultural seria um desafio para toda uma etnografia, mas que aqui representará apenas uma pequena empreitada, quiçá o início de um trabalho para ser retomado e ampliado algum dia. Como um nativo desse (sub)sistema cultural, o exercício será, como o de toda a tese, o de ir-e-vir ou talvez o de ser-ou-não-ser o MFC e procurar retirar desses deslocamentos tanto a descrição densa do vivido quanto uma análise mais ampla e reflexiva que nos ajude a situar a MFC e a teia de significados que tece e em que é tecida (GEERTZ, 1989, p. 4). Assim como tem sido cada vez mais comum em trabalhos das ciências sociais e da antropologia, portanto, pretendo utilizar também a minha experiência pessoal como MFC como uma categoria analítica. E foi somente quando já contava com 6 meses de haver terminado o curso de medicina que tive o primeiro contato com a medicina de família e comunidade. Ainda hoje, quase 10 anos depois, 92 me lembro daquela sensação inicial dos primeiros atendimentos como médico-residente em um Centro de Saúde (CS), como a de alguém que entrava em um terreno que acreditava conhecer bem, afinal era um médico recém-formado, mas essa impressão inicial ia se desmanchando conforme dava seguidos passos em falso. As referências anteriores, da faculdade de medicina, pareciam pouco valer e muitas vezes atrapalhavam. As experiências práticas e as leituras teóricas a que éramos submetidos durante a residência em MFC pareciam confirmar essa impressão de que se tratava de uma medicina diferente daquela que aprendíamos na faculdade. Mas que medicina é essa afinal, a MFC? Essa é uma pergunta que me tenho feito nesses anos todos e que servirá de ponto de partida para analisarmos no presente capítulo a MFC como um (sub)sistema cultural. Segundo Velho (1980, p.18), o trabalho do antropólogo “lida e tem como objetivo de reflexão a maneira como culturas, sociedades e grupos sociais representam, organizam e classificam suas experiências”. Para o autor, no entanto, nas sociedades complexas contemporâneas “a vida social e a cultura se dão em múltiplos planos, em várias realidades que estão referidas a níveis institucionais distintos” (VELHO, 1980, p.18). Provém daí a noção de subcultura, como uma forma de “tentar lidar com a diversidade (…) mais micro da vida social”, sem perder de vista a rede de significados mais ampla, os aspectos mais generalizáveis de uma cultura (VELHO, 2004, p.84-5). No caso da MFC, é claro que podemos falar que ela faz parte de uma cultura médica universal (no momento hegemonicamente representada pela biomedicina) que se sustenta em uma rede própria de significados, de relações de poder e de processos de (inter)subjetivação e mesmo de embodiment (ou corporeidade). Por outro lado, tentaremos demonstrar algumas características particulares que colocariam a MFC como uma subcultura, porque ao mesmo tempo em que se alimenta de símbolos importantes da biomedicina, rechaça outros, a ponto de existir um constante estranhamento identitário bidirecional entre os “especialistas” e os “clínicos gerais”, os “médicos do hospital” e os do “postinho”. Kleinman (1995, p. 25-26) já nos apontava essa distância relativa entre o trabalho na Atenção Primária em Saúde (APS) e a geração de conhecimentos que vêm da biomedicina: Eu vou primariamente lidar com a biomedicina dos criadores do conhecimento (pesquisadores, autores de livros-texto, professores) e com as instituições de cuidado terciárias de alta 93 tecnologia que dominam o treinamento médico e que representam o alto status na profissão. Eu reconheço que o conhecimento de trabalho do practitioner [denominação inglesa do MFC] comum tratando problemas de saúde de rotina na comunidade é mais complexo e aberto a um mais amplo espectro de influências. Para descrever e analisar o trabalho dos MFC, em busca de uma rede de significados própria ou que guarda alguma distância com a da biomedicina, analisaremos alguns dos espaços frequentados por esses profissionais com o apoio de diversos autores que pertencem ou transitam em áreas como as da Ciências de Saúde e Saúde Pública, Ciências Sociais em Saúde, Antropologia em Saúde, entre outras. E comecemos por onde começam a se formar os novos médicos, o curso de medicina. 3.1 BIOMEDICINA E FORMAÇÃO MÉDICA Good (2003) descreve bem em seu texto as transformações porque passam os estudantes de medicina durante os 6 anos do curso. A maioria das faculdades de medicina no Brasil e no mundo (da chamada era flexneriana2), assim como a escola de medicina de Harvard (Estados Unidos da América) descrita por Good (2003), dividem o currículo em dois ciclos: um de ciência básica em que se estudam as bases químicas e físicas do corpo humano e dos processos patológicos por meio de disciplinas como anatomia, fisiologia, farmacologia, histologia; e outro, de formação clínica, em que o estudante passa a ter contato com as doenças por meio de pacientes em ambiente hospitalar, etapa geralmente fragmentada nas distintas especialidades médicas. Há outras disciplinas que saem um pouco do eixo da patologia e da doença, mas que costumam desempenhar um papel secundário no currículo escolar, como saúde pública ou medicina comunitária, bioestatística ou epidemiologia básica, bioética e, ainda, comunicação clínica ou relação médicopaciente. Nos últimos anos tem havido em quase todo o mundo um esforço para que essas disciplinas assumam um papel mais relevante na formação do médico, assim como para que haja uma maior e mais 2 Assim denominada por se referir ao Relatório de Flexner (Flexner Report), resultado de uma extensa avaliação das faculdades de medicina norte-americanas e canadenses no início do século passado pelo educador Abraham Flexner. O Relatório contribuiu enormemente para a homogeneização dos currículos da faculdade de medicina nos Estados Unidos e em todo o mundo, seguindo o padrão estabelecido na Universidade de Johns Hopkins, considerada como modelo de excelência à época. 94 precoce inserção do estudante de medicina no ambiente da APS. Uma certa transição entre o aprendizado centrado nos aspectos biológicos e patológicos e os aspectos mais amplos que envolvem o processo saúdedoença pode ser visto em trecho das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001, p. 12) que indicam às faculdades de medicina o(a):  Conhecimento das bases moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos, aplicados aos problemas de sua prática e na forma como o médico o utiliza;  Compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença; As características do curso de medicina, a introdução a uma linguagem específica, que são modos de se referir a locais ou a processos do corpo humano, assim como a forma especial como se narram os casos clínicos e também a forma peculiar com que se interrogam os pacientes e como se captam informações e achados clínicos promovem uma grande e rápida transformação nos estudantes de medicina. Good (2003, p. 157) refere-se a esses processos porque passa o estudante como uma série de “práticas interpretativas que constituirão um complexo 'jogo de linguagem' (...) que produz um 'modo de vida'”. Esse modo de ver, entender e classificar as doenças passa a ser usado cotidianamente e para os mais variados assuntos pelos aspirantes a médicos, às vezes até como uma forma jocosa de incorporar essa linguagem. O internato médico, nos últimos 18 ou 24 meses da faculdade, representa a etapa final para muitos estudantes nessa tarefa de vestir a máscara de médico ao colocá-los em situações práticas de atendimento em que se vêem sozinhos algumas vezes (ou sob uma supervisão um pouco mais distanciada) diante dos pacientes. Com o jaleco branco, sentado na cadeira ou posição do médico, ouvindo a história, fazendo as perguntas com alguma insegurança, tentando colocar em movimento o raciocínio que transforma sintomas (relatos subjetivos de desconforto) e sinais físicos corporais em alguma doença já catalogada pela medicina e, ao mesmo tempo, visualizando sua própria postura no consultório e buscando imitar algum dos professores que lhe servem como referência até mesmo nos seus cacoetes vai 95 produzindo esse embodiment que naturalizará nele essa identidade. Good (2003, p. 159) considera o ambiente hospitalar usado para formação médica como um “âmbito institucional extraordinariamente 'totalizador'”, porque o estudante está constantemente sendo observado em vários aspectos, não apenas em relação aos seus conhecimentos teóricos e práticos, mas também quanto a sua postura e comportamento. As características da biomedicina como uma instituição foram descritas por muitos autores, dentre eles Foucault (2003), que analisara as mudanças no discurso, no olhar, e na formação médica na França entre os séculos XVIII e XIX. De uma medicina classificatória, que descrevia detalhadamente as doenças ao modo de Lineu, para uma outra que mergulha no corpo humano e associa a lesão patológica a uma doença e seu conjunto de sintomas. Para Camargo Jr. (2003, p.110), a biomedicina se caracteriza justamente por erigir-se em torno a uma teoria das doenças, em que: traz implícita a ideia de que as doenças são objetos com existência autônoma, traduzíveis pela ocorrência de lesões que seriam por sua vez decorrência de uma cadeia de eventos desencadeada a partir de uma causa ou de causas múltiplas; o sistema diagnóstico é dirigido à identificação das doenças, a partir da caracterização de suas lesões; a terapêutica é hierarquizada segundo sua capacidade de atingir às causas últimas das doenças; a morfologia e a dinâmica vital servem sobretudo como auxiliares na caracterização do processo mórbido. Esse jeito de ver o seu objeto de estudo continua sendo uma das principais aquisições pelos estudantes de medicina durante o curso. Por outro lado, não poderíamos dizer que esse processo ocorrerá de forma homogênea com todos os estudantes, como já nos apontaram clássicos estudos das ciências sociais que falam dessa relação entre uma força institucional e as diferentes respostas dos sujeitos envolvidos. Penso, por exemplo, no conceito de habitus de Bourdieu, (1994, p. 23), que nos diz: “O habitus é o princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unitário, quer dizer uma junção unitária de escolhas de pessoas, de bens, de práticas”. Ou ainda, de modo mais extenso, que os habitus são: 96 princípios geradores de práticas distintas e distintivas – aquilo que o trabalhador come e, especialmente, a maneira de comer, e o esporte que prática, suas opiniões políticas e a forma de expressar diferem sistematicamente do consumidor ou das atividades correspondentes do patrão industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão, de gostos, diferentes. Eles são as diferenças entre o que é bom e o que é mau, entre o que é mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc. mas não é o mesmo. Em um curso de medicina no Brasil, já há uma pré-seleção na entrada que é o grau de dificuldade imposto pela grande concorrência nos exames vestibulares, especialmente para as universidades públicas, consideradas melhores. O investimento necessário para preparar um jovem para esses obstáculos determinou (e ainda determina) por muitos anos que entrassem apenas pessoas provindas das classes médias e altas brasileiras. Em um estudo feito na Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo, apenas 12,4% dos estudantes tinham renda familiar menor do que 10 salários mínimos e para 13.2% dos alunos a renda superava os 50 salários mínimos (FERREIRA e cols., 2000, p. 225). E, além das origens familiares e econômicas, o próprio curso de medicina tratará de ser mais uma força uniformizadora em relação ao habitus da forma como descreve Bourdieu (1994). De todo modo, ao se aproximar um pouco mais das pessoas e escolhas dentro de uma mesma turma de estudantes de medicina veremos particularidades. Bastaria me lembrar do último ano de faculdade e das diferentes formas como os meus colegas de faculdade e e eu mesmo lidávamos com essa pesada vestimenta. Enquanto alguns pareciam bastante confortáveis e desempenhavam o papel tão bem quanto a maioria de nossos professores, outros circulavam com dificuldade pelas enfermarias e ambulatórios. O alto investimento social que representa a entrada em uma faculdade de medicina cria uma situação diferente de muitos outros cursos, em que se observa um número maior de desistências ou troca de faculdades. Se em cursos como matemática, marketing e publicidade, educação física e administração as taxas de evasão média no Brasil entre 2001 e 2005 passaram dos 30%, as de medicina não chegaram a 5% no mesmo período (LOBO e cols., 2007, p. 654). E se, somada a essa característica, 97 temos nesse caso também uma das maiores pressões por transformação pessoal, o que veremos (além de muito sofrimento) será a tentativa de encontrar na vida profissional diferentes possibilidades de lidar com a identidade médica. Há muitos fatores que influenciam hoje a escolha por uma especialidade médica e, claro, a remuneração é uma das mais importantes, mas acredito que também influencia muito a forma como reagiu esse estudante ao que lhe foi apresentado como sendo as características da biomedicina durante o curso. Aqueles que não se sentem à vontade na relação com o paciente podem ter encontrado em algumas áreas como radiologia, anestesiologia ou patologia, uma alternativa. A grande maioria é atraída atualmente por especialidades cujo conhecimento é bastante focal, o que também diminui o alcance e o impacto social da sua máscara de médico ao se desresponsabilizar por responder a tudo aquilo que não pertence a sua restrita área de conhecimento. Mas o nosso tema são os MFC e a primeira pergunta que poderíamos fazer é se há alguma forma particular de reação ao processo instituído de formação biomédica que ajudará a selecionar ou a separar esses futuros MFC? E quais teriam sido os fatores que influenciaram na escolha pela MFC? Essa é uma pergunta que tive que responder muitas vezes, porque a MFC não era e ainda não é uma opção comum entre os médicos formandos. Não apenas os próprios colegas da faculdade, mas também familiares e pessoas próximas estranhavam a opção e repetiam muitas vezes essa questão. A resposta que me acostumei a dar esses anos todos e que agora aproveito para discutir mais amplamente era justamente a de que minha opção pela MFC provinha de um certo desencontro entre minhas expectativas quanto à carreira de médico e a formação médica a que tinha sido exposto, ou seja, um certo desconforto ou mal-estar nos primeiros anos da faculdade que agora, muitos anos depois, traduzo como uma decepção por não encontrar ali algumas discussões que esperava e que me pareciam diretamente relacionadas ao papel do médico. Vida, morte, saúde, doença, comunicação, ética, cultura, história da medicina e do cuidado, diferentes possibilidades de técnicas e práticas, e ainda uma visão crítica sobre o conceito de ciência, desde apresentar a própria fisiopatologia de uma forma mais atraente até a entender os bastidores (epistemologia inclusive) de como são feitos e pensados os estudos científicos. Veremos que dois dos MFC que acompanhamos trarão questões semelhantes às minhas. No meu caso, o centro acadêmico e as discussões do movimento estudantil, seguida da opção pela MFC e, finalmente, pós-graduações em ciências sociais em saúde fazem parte, provavelmente, dessa reação ao mal-estar que o 98 currículo biomédico me causou, além, é claro, de muitas outras coincidências e acasos inexplicáveis que soem desenhar nossas biografias ou projetos de vida. Pode ser que represente um panorama bastante temporal e circunstancial, mas o contato com MFC, médicos especialistas focais, estudantes de medicina, do Brasil e de outros países da América do Sul, Canadá e Europa Ocidental demonstra que a escolha pela MFC costuma representar uma opção marginal, como se ao elegê-la o formando estivesse abandonando a medicina da tecnologia e das intervenções em doenças raras, por uma com menos status, mais simples, banal, que lida com situações amenas. E como não havia (e ainda é raro nas maiorias das faculdades de medicina do mundo todo) um papel destacado da MFC no currículo formal do curso, a opção por uma residência de MFC ou simplesmente por trabalhar como MFC costuma surgir por dois motivos: como uma reação negativa ao modelo biomédico por diferentes razões; ou por outras questões circunstanciais como não ter conseguido ingressar na residência médica que gostaria, por uma maior facilidade para conseguir trabalhar na APS ou para escolher um determinado município para viver, entre outras. Para pensarmos a opção pela MFC como uma reação ao modelo biomédico poderíamos começar por algumas pesquisas que falam das expectativas do estudante de medicina no início da faculdade, elas costumam demonstrar que grande parte desses alunos tem ideais bastante românticos em relação à profissão que escolheram. Esses jovens, a maioria com menos de 20 anos, declaram ter optado pela medicina como resultado de uma visão bastante humanista, de escutar as pessoas, aliviar o sofrimento, salvar vidas, etc... Como demonstram Ferreira e cols. (2000, p. 226) em seu estudo com alunos do 3º ano de medicina, mais da metade ou 53.4% escolheram-na por vocação (ou identificação com a profissão) e 26.7% teriam feito essa opção por altruísmo (investimento social), restando apenas 2.6% por mercado de trabalho. No mesmo estudo, Ferreira e cols. (2000, p. 226) demonstram como essas explicações mudam ao longo do curso, pois para os alunos do internato, do último ano, a opção pela medicina como uma escolha altruísta cai para 18.1% e a do mercado de trabalho mais do que dobra, para 5.4%. O mergulho profundo que os estudantes fazem nos 3 primeiros anos no aprendizado do corpo biológico e, em seguida, na visão focada na doença nos ambulatórios fragmentados hospitalares oferece aos estudantes duas opções: a de incorporar esse modo de ver, biomédico; ou de buscar sozinho outras alternativas. E alguns imaginam encontrar 99 uma saída na MFC, assim como nas chamadas “medicinas alternativas”, “complementares” ou “práticas integrativas”, que incluem racionalidades médicas distintas da biomedicina como homeopatia e acupuntura, ou lidando com políticas de saúde em cargos de gestão ou na academia. Ferreira e cols. (2000, p. 227) nos brindam ainda com a proporção que encontrou em sua pesquisa entre aqueles que optam pelas subespecialidades (79% no 3º. ano e 84% no internato) e por áreas gerais (15.5% no 3º. ano e 16.7% no internato), essas últimas aqui definidas como clínica médica, pediatria, cirurgia, gineco-obstetrícia e medicina social. Fosse dada apenas a opção pela MFC e os dados seriam ainda menores. A biografia dos MFC que acompanhamos fala um pouco dessa tensão, dessa distância entre a medicina que se aprende na faculdade e o que esperavam da carreira de médico antes do curso ou, às vezes, de uma desconformidade que é construída no contato mesmo com a biomedicina. A MFC Gisele (do C.S. Figueira) nos exemplifica quando diz que: “acho que as explicações [sobre ter escolhido trabalhar como MFC] provavelmente vêm de uma história anterior ao ingresso na universidade. (…) a MFC me trouxe a possibilidade de exercer a profissão da forma que a imaginava antes de iniciar a graduação.” Gisele fala especificamente do desencontro entre essas expectativas prévias sobre a medicina e o que mais tarde encontraria durante o curso, “uma insatisfação com a prática habitual de muito de meus professores e outros profissionais que acompanhava no curso de medicina: desrespeito com os pacientes, transformação das pessoas em simples objetos e preocupação excessiva com retorno financeiro”. Nesse caminho, Gisele encontraria no movimento estudantil, onde acredita “ter adquirido um olhar diferenciado, ou melhor, critico sobre a prática habitual da medicina”, e na MFC, uma “forma diferente de praticar a medicina em que na maioria das vezes o interesse do paciente deve vir em primeiro lugar e uma preocupação maior em estabelecer uma relação ética e de respeito entre médico e paciente.” Nessa fala da Gisele e que se pode ouvir de muitos MFC fica claro um movimento de afastamento em relação à biomedicina (ou, de outro modo, aos profissionais e professores de medicina que acabam sendo um contra-exemplo). Apesar das diferenças que Gisele aponta entre a prática da MFC e da medicina que aprendeu na faculdade, ressalta a importância da clínica, do raciocínio clínico para exercer a MFC: “Sempre gostei muito de estudar e exercitar o raciocínio clínico. Acho que quando compreendi que o MFC precisa ter uma qualificação clínica e, sobretudo, fazer a clinica diariamente escolhi este caminho.” 100 Suzana, MFC do CS Amendoeira, nos traz um bom exemplo do que se chama role model, aqueles que são influenciados por algum médico ou médico-professor durante o curso, pela sua postura, pelo seu trabalho e a partir daí mudam muitas vezes planos anteriores e decidem seguir uma outra carreira. O role model é uma figura muito importante na MFC e que vem de um modelo de formação bastante artesanal, do aprendiz que se encanta com o mestre, acompanha-o por alguns anos em um processo de aprendizagem mais personalizado do que as residências médicas hospitalares em que o residente passa por muitos e diferentes estágios em pouco tempo. Suzana, sobre o seu role model, nos diz que: Quando entrei no curso pensava em fazer uma especialidade como neuro, depois psiquiatria, mas entrei em contato com a saúde pública. O Marcão foi meu professor de bioestatística na 3ª fase do curso e meteu pilha em um monte de gente. Nessa época a gente nem tinha aula com ele de saúde pública, mas ele já procurava adeptos. Isso foi em 1979/1980. Ele chamava a gente prá ajudar em campanha de vacinação, pois na época estava na prefeitura, ou ainda tinha contatos lá, não lembro. Lembro que fui fazer vacinação anti-sarampo na Costa da Lagoa, pode? eu nem imaginava como aplicar um injetável. E sabe quem ensinou prá gente? o Marcão. Ele trouxe o isopor com as vacinas, o material e tudo mais e ensinou como aplicava a vacina subcutânea, em frente do antigo prédio da faculdade de medicina. Em vez de aula de bioestatística, a gente (quem quis ir) foi vacinar. Pois é. Depois a turma formou um grupo prá fazer trabalho com a comunidade de Ratones, envolvendo a associação de moradores. Foi por aí a fora. Quando pude, lá pela 4ª ou 5ª fase, comecei a fazer estágio completamente extracurricular e extra tudo, na Costeira. O ambulatório que o Marcão e o Lúcio montaram numa casa que eles alugaram e que os alunos que tinham afinidade iam no intervalo da grade curricular. Pois é, depois acho que você sabe. Quando me formei eu não optei pela residência, pois queria fazer clínica geral. Não queria clínica médica, ou pediatria ou assemelhados. Queria 101 poder atender a todos na família. Assim foi. Hoje sei que fiz a escolha certa. Suzana destaca novamente o que discutíamos mais acima de a MFC ser uma opção diferente das demais, o que talvez fique mais evidente quando nos diz no final que hoje sabe ter feito a escolha certa, após mais de 20 anos de trabalho e, provavelmente, de perguntar-se sobre a escolha que fez. E sua fala nos faz pensar também que o fato de escolher uma área da medicina marginal em relação à biomedicina pode colocar o MFC em uma posição bastante reflexiva. A dificuldade e a necessidade de responder a que se refere exatamente o trabalho do MFC em um tempo que as especialidades médicas rapidamente explicam as suas formas de atuação por meio de uma ou outra parte do corpo ou por intervenções específicas leva o MFC muitas vezes a essas divagações sobre o seu papel como profissional de saúde. Como vimos no capítulo anterior, as características da demanda que atende que envolvem situações que facilmente deslizam do campo da biomedicina para situações e contextos familiares ou sociais também mexe com essa questão identitária. A MFC Fabiana (do C.S. Garapuvu) nos diz que o “que me levou a não me especializar” foi o fato de que “sempre pensei que perderia a essência do paciente”. Além do trabalho como MFC, Fabiana, estudou ainda homeopatia, mas com o mesmo propósito, o de “trabalhar a pessoa como um todo”. No seu caso, foi por meio da vivência prática, no atendimento como clínica geral no interior do estado, que foi conhecendo o modo de trabalhar da MFC. Fabiana nos traz ainda um tema bastante discutido nesse meio, que é o da MFC como a “especialidade do geral”. É somente porque se trata de uma medicina com pontos de descontinuidade em relação à biomedicina e que os seus profissionais se sintam e sejam vistos como marginais, que as principais sociedades de MFC do mundo todo repetem o discurso de que é sim uma especialidade médica, que dispõem de tecnologias específicas, leves, de que é tão ou mais complexa do que as outras divisões da medicina. Os termos que destacamos, especialidade, tecnologia, complexidade, são como sabemos caros ao jargão biomédico. E aqui não se trata de negar todos esses pareceres, mas de tentar mostrar o que eles significam e, nesse caso, a intenção parece ser a de dizer para os outros, biomédicos especialistas, que os MFC existem, são importantes e que podem se comunicar na mesma linguagem, em um movimento de aproximação. Movimento esse que poderíamos encontrar em inúmeros textos oficiais das associações nacionais de MFC. 102 Bernardo (do C.S. Araucaria) buscou alternativas à formação biomédica por sua “tradição naturista” e dedicou-se por muitos anos à homeopatia. Preocupado com a perda da habilidade clínica alopática (biomédica) ao dedicar-se apenas à homeopatia buscou uma residência médica geral, uma especialização prática ampla que o ajudasse a se manter atualizado e a aperfeiçoar-se na clínica de todas as faixas etárias. O caso de Bernardo é interessante por que buscou a formação em MFC como uma forma de não se sentir tão marginal à clínica biomédica como se sentia na homeopatia, mas será também por meio dessa residência médica que, como diz, “mergulha numa espécie de epistemologia que desconhecia através do Mcwhinney [Ian McWhinney, médico de família no Canadá e autor de um livro que é referência para os MFCs – Manual de Medicina de Família e Comunidade] e outros autores”. Bernardo nos diz que “a minha ignorância e deficiência pessoal foi o principal fator” e que por isso sempre teve “que correr atrás”. E essa fala nos leva para uma característica comum dos MFC, mas também poderia se referir a outros praticantes de medicinas marginais, que é essa sensação permanente de estar fora do lugar, de uma insatisfação original (que provém do desencontro com os ditames da formação biomédica) e que levará o jovem formando ou médico recém-formado a uma busca, muitas vezes infinita, de satisfação profissional. É claro que, de algum modo, esse mal-estar que descrevíamos é muito comum e próprio dos tempos (pós)modernos e não é exclusivo da MFC, mas o que me parece é que a MFC predispõe mais facilmente os seus protagonistas a essa sensação de deslocamento, porque não podem a exemplo de seus pares especialistas de órgãos, dizer concretamente que são médicos do coração, do cérebro, dos ossos, da mulher, da criança, dos exames de imagens, dos exames patológicos, etc.. Esse quadro que desenhamos em que procuramos compreender as razões da escolha da MFC poderia sim ser expandido para além das fronteiras do Brasil. Apesar de que nos países da Europa ocidental e Canadá, além de Cuba, há sistemas públicos nacionais de saúde há mais de 40 anos, em média, e que contam com uma Atenção Primária em Saúde (APS) melhor estruturada do que a brasileira, que colocam a MFC como uma das residências que mais formam profissionais por meio de regulação estatal, o que se vê mesmo nesses países é que a maioria dos estudantes de medicina preferiria escolher alguma especialidade focal em vez da MFC (SCOTT e cols., 2007). No Brasil, médicos que optam fazer uma residência em MFC ou dedicar sua vida a esse trabalho são raros, uma minoria que muito raramente chega a 10% em cada turma de formandos em medicina, o que já dá uma ideia das 103 características dos nossos interlocutores de pesquisa (FERREIRA e cols., 2000). McWhinney (1996, p.433) em um artigo bastante conhecido, intitulado “The Importance of Being Different”, sintetiza várias questões que podemos chamar de epistomológicas para a MFC. Em relação a essa sensação de deslocamento e de marginalidade dos MFCs, ele nos dirá que: Em um artigo baseado em entrevistas com 12 general practitioners (GPs) da academia e uma amostra de GPs full-time na Escócia em 1975, Reid descreveu a sensação de alienação dos GPs acadêmicos do mainstream acadêmico, e de seus colegas de prática full-time. Eles se sentiam „marginais‟ na escola médica. A MFC [general practice no original] acadêmica tem feito um progresso considerável desde então, ainda que, eu acredito, não se sente confortável no meio acadêmico. Para ganhar aceitação, diz-se, a MFC deveria se tornar menos pragmática, mais teórica e mais produtiva em pesquisas quantitativas. Minha visão é que a MFC é marginal porque ela difere de modo fundamental do mainstream acadêmico e que nosso valor para a medicina repousa nas diferenças. Eventualmente, eu penso, que o mainstream acadêmico tornar-se-á mais parecido conosco do que vice-versa. E por meio da ideia de homem marginal (marginal man) é que Reid (1982) disseca em seu artigo a distância dos MFC para o que se poderia caracterizar como os representantes da biomedicina (o mainstream). E na sequência, McWhinney (1996, p. 433) tratará de explicitar os motivos pelos quais acredita que a MFC é essencialmente diferente do conhecimento e da prática biomédica, em 4 partes. A primeira é a de que a MFC é a única disciplina que se define em termos de relações, especialmente da relação médico-paciente (tema que debateremos mais aprofundadamente no capítulo 4). Diferentemente de outros campos que se definem por conteúdos como doenças, sistemas orgânicos ou tecnologias, e nos quais a RMP se estabelece a posteriori, diz McWhinney (1996, p. 433), para a MFC a RMP vem antes do conteúdo. Ele diz “Nós conhecemos pessoas antes de sabermos que doentes eles serão” (McWHINNEY, 1996, p. 433). O autor, ainda, prevê 104 uma série de consequências para essa premissa, como o fato de que “não estar atado a uma tecnologia particular ou a um grupo de doenças é libertador” (McWHINNEY, 1996, p. 433), porque lhe dá a qualidade de ser mais flexível e adaptável e de lidar com as incertezas. Seguindo o debate epistemológico, McWhinney (1996, p. 433) apresenta seu segundo postulado, o de que os MFCs tendem a pensar mais em termos de pacientes individuais do que a partir de generalizações abstratas. Nesse aparte, o autor, fala justamente do tensionamento entre o cuidado da pessoa conhecida em seu contexto e do distanciamento e da abstração que representa a doença, aquela classificação diagnóstica, na cosmologia de doenças conhecidas. E critica o modelo que diz reinar soberano na universidade moderna: “O médico é requerido para categorizar a doença, mas não para atender aos sentimentos do paciente ou à sua compreensão da experiência” (McWHINNEY, 1996, p. 434). Freidson (1988) também trata da mentalidade clínica e do clínico geral em seu trabalho, ao dizer que o MFC (practitioner) tem uma visão diferente sobre o seu trabalho que o teórico ou o investigador. Para ele, o clínico “é propenso a confiar em sua própria acumulação pessoal, experiência de primeira-mão [grifo do autor] em vez de princípios abstratos ou „conhecimento de livro‟, particularmente ao assessar e manejar aqueles aspectos do seu trabalho que não podem ser tratados rotineiramente” (1988, p.168-9). Para se contrapor a uma metáfora corrente na medicina moderna, McWhinney (1996, p. 434) nos dará seu 3º. postulado, o de que a MFC baseia-se em uma metáfora organicista em vez da metáfora mecanicista da biologia. Pensar de modo organicista, dirá McWhinney, é entender que cada organismo é particular e que quanto “mais complexo o particular, maior a incerteza, e um paciente doente é um organismo muito complexo” (1996, p. 434). Em contraposição ao pensamento linear e causal da medicina moderna e da filosofia mecanicista, o pensamento organicista é não-linear e multifacetado. E ainda explicando a racionalidade que deveria subsidiar não apenas a MFC mas uma nova medicina, McWhinney (1996, p. 434) dirá que: “os múltiplos retornos entre organismo e ambiente, e entre todos os tipos de organismos, requerem-nos pensar em redes causais, não em linhas de força”. E, por fim, na 4ª. proposição, McWhinney (1996, p. 435) coloca a MFC como o único campo (da área da saúde) que transcende a divisão dualística entre mente e corpo que percorre toda a medicina. McWhinney (1996, p. 435) dirá que: “dividimos terapias em física ou psicológica. Na prática clínica, internistas e cirurgiões não exploram as 105 emoções, psiquiatras não examinam o corpo. Como a MFC se define em termos de relações, não pode se dividir dessa maneira”. E, em seguida, oferecerá uma série de exemplos práticos, em que o MFC transcende essa divisão, para finalizar com novas ideias sobre as bases que sustentaria a MFC, além da visão organicista. Dirá: “Eu comecei dizendo que a MFC não tem uma tecnologia para chamar de própria. Eu agora vou modificar isso e dizer que nossa ferramenta terapêutica somos nós mesmos na relação de cura (cuidado) – o „doutor droga‟ como Balint disse” (McWHINNEY, 1996, p. 435). E após apresentar e valorizar as diferentes emoções e a importância do afeto na RMP, McWhinney traz mais um território a se explorar nessa epistemologia da MFC: “Pode a medicina se tornar uma disciplina auto-reflexiva? (1996, p. 436)” McWhinney trabalha nesse artigo, claro, as diferenças e é isso que procura destacar, mas a incitação e a exaltação do ser diferente ao mesmo tempo que busca um distanciamento reconhece a hegemonia do saber-poder da biomedicina. A distância relativa da MFC da biomedicina, de simultânea aproximação e distanciamento, nos apresenta nesse excerto de Gervas (2003, p. 358) mais um espaço de tensionamento, em relação à formação dos residentes: Ano após ano os futuros residentes de Medicina de Família escolhem a especialidade porque não há outra; a selecionam, pois, por um critério negativo. Em muitos hospitais os residentes de MFC estão à margem das prioridades e da organização, e sua formação é mais do que defeituosa, pois é vicariante, excessivamente ancorada na visão dos especialistas hospitalares. Os médicos de cabeceira [denominação antiga espanhola para o MFC] aprendem na própria carne que a ciência só existe nos hospitais e que fora deles só há brutalidade e desassossego. Se imita o modelo dos especialistas mesmo na consulta (predomínio do técnico) e nas sessões clínicas, por exemplo. Aqui Gervas, que é MFC em um pueblo na Espanha, e com quem pude conversar sobre esse e outros temas durante o estágio de doutorado e quando de uma longa pesquisa que realizou avaliando mais de 70 C.S. da APS brasileira, nos fala de uma MFC que deve buscar seu próprio espaço, distante do modelo hospitalar ou desse entendimento de 106 científico. Gervas trabalhou muitos anos como MFC, como dizíamos, em um vilarejo rural próximo à Madrid, mas ao mesmo tempo organizando encontros de MFC e publicando nos principais jornais médicos do mundo, como o British Medical Journal (BMJ), Lancet, entre outros. Ele defende em vários de seus artigos uma maior autonomia dos MFC em relação aos ditames dos protocolos homogeneizantes que vêm da gestão e uma revisão constante e própria do MFC sobre os temas mais comuns com que lida sem comprar cegamente o que lê nas principais revistas médicas. A exemplo de McWhinney, Gervas parece nos falar também uma epistemologia da MFC. Como pudemos ver nas declarações dos MFC que acompanhamos, e das diferenças e tensões que existem entre a MFC e a biomedicina, não há um rechaço ou uma incompatibilidade completa entre uma e outra, o que se vê são pontos de continuidade e de descontinuidade. Parece ser uma das características fundamentais da MFC a sua distância relativa da biomedicina, um ser-ou-não-ser permanente, que é usado de maneira bastante ambígua pelos MFC, porque ora se fortalecem por não serem como os biomédicos (“os especialistas”) como quando enfatizam os aspectos psicológicos, sociais, desmedicalizantes do seu trabalho, assim como se aproxima dela quando ressaltam as vantagens da sua clínica com os melhores argumentos biomédicos, “baseados em evidências”. A imagem que me vem é a de um movimento pendular, a MFC de hoje não é mais como a clínica do século XIX que, afinal, era a única clínica de então, mas a de uma área de prática (e alguma teoria) que se move atualmente na órbita da biomedicina, distante dela, diferente dela, mas sempre em relação a ela, aproximando-se e afastando-se. Essa forma de organização pendular, como num sistema gravitacional, é muito nova, porque só faz sentido aludir a ela em um tempo em que convivem uma medicina superespecializada, dependente de aquisições industriais recentes, e uma clínica geral com algumas características que fazem lembrar a clínica do século XIX, mas que não é a mesma coisa. É uma clínica geral que convive com especialidades médicas bastante fragmentadas e, geralmente, sob a gestão de grandes sistemas nacionais públicos de saúde. Mais adiante, voltaremos a essas questões mais históricas, das reminiscências que a clínica geral do século XIX e começo do século XX provocam ainda nos MFC. Antes, no entanto, aproximemo-nos um pouco mais da MFC e da APS por meio da sua rotina de trabalho, do dia-a-dia de nossos interlocutores de pesquisa. 107 3.2 O MFC, A APS E A ROTINA DE TRABALHO Bernardo é médico há 14 anos, nesse período assistiu a um enorme crescimento da MFC no Brasil, muito por conta do Programa de Saúde da Família (PSF) que se inicia em 1994, depois rebatizado como Estratégia de Saúde da Família (ESF), e que hoje já conta com 32 mil equipes no país atendendo a mais de 100 milhões de pessoas, metade da população brasileira (CNES, 2011). Cada equipe é formada por 1 enfermeiro, 1 médico, 1 ou 3 técnicos de enfermagem e de 5 a 10 agentes comunitários de saúde (ACS). A rotina de trabalho na ESF na maioria das equipes brasileiras corresponde a 40 horas de trabalho divididas em atendimentos no consultório, a maior parte do tempo (à exceção dos ACS, que atuam mais nos domicílios), e visitas domiciliares a pessoas com dificuldade para sair de casa, além de atividades coletivas como grupos de educação em saúde e as reuniões de equipe e do C.S para planejamento de atividades. Cada uma dessas equipes é responsável por uma população definida por um território geográfico e que deveria corresponder a no máximo 4000 pessoas. A maneira como organizam a agenda de consultas, como definem o atendimento das demandas não agendadas, como se programam para as visitas domiciliares e como organizam as reuniões da equipe e do CS é bastante heterogênea em todo o país, basta ver que já o é no caso dos 4 MFC que acompanhamos. Os MFC no Brasil são assalariados, geralmente contratados pelo próprio município, já que a ESF é de total responsabilidade municipal. Os demais serviços de saúde, emergências, atenção secundária ou terciária, podem ser oferecidos ou não pelo próprio município, dependendo de seus recursos e da necessidade. O modelo de APS é bastante diferente em cada país. Portugal e Espanha, por exemplo, trabalham com profissionais de saúde assalariados, com algum incentivo financeiro por rendimento. Holanda, Inglaterra, Alemanha, por outro lado, oferecem uma APS bastante calcada na figura do médico que geralmente é dono de sua própria clínica e vende seus serviços direta ou indiretamente para o estado. Apesar de ser um profissional liberal, um empresário que gere a própria clínica, sozinho ou em sociedade com mais médicos ou enfermeiros, há uma forte regulação estatal para que ofereça fácil acesso a sua lista de pacientes e serviços de qualidade. Independentemente das enormes diferenças entre esses países, há muitas semelhanças e uma grande identificação entre os MFC, como se pode ver nos congressos internacionais da área. As características que apontamos acima, dessa relativa distância da biomedicina, da posição reflexiva do MFC, da 108 afirmação de que fazem uma clínica diferente, de uma certa marginalidade em relação à produção de conhecimento e, principalmente, das características da demanda que atendem diariamente são temas que fluem facilmente, com bastante identificação, entre MFC de todo o mundo (SCOTT e cols., 2007; GERVAS, 2003). Gisele trabalha em um CS grande (Figueira), com 6 equipes de saúde da família, cada uma responsável por 2500 pessoas aproximadamente. No Brasil, assim como em Cuba, mas não como nos outros países que apontamos, as equipes de saúde e os MFC oferecem seus serviços para uma população definida e limitada por um espaço geográfico, que pode ser um bairro todo ou parte dele. Em outros países, o mais comum é que as pessoas possam escolher seu médico ou equipe de saúde independentemente do bairro em que vivam, isso, claro, desde que essa equipe ou MFC ainda tenha vagas disponíveis. É motivo de confusão e não parece haver uma regra clara, no entanto, no Brasil para os casos de pessoas que desejem ser atendidas por uma equipe diferente da do seu bairro de origem. E em muitos casos, em bairros populosos, com muitas equipes de saúde da família, os C.S. não costumam oferecer um atendimento definido pela área em que a pessoa vive. Mas não é o caso de Gisele, o CS em que trabalha atende há muitos anos de acordo com o território e possuem uma relação, quantidade de pessoas por equipe melhor do que a maioria dos similares na cidade e no país. Mas qual é sua rotina de trabalho, afinal, e como ela poderia nos ajudar a caracterizar o MFC a partir de sua rotina? Várias das situações e exemplos que traremos aqui ajudarão de certo modo a reforçar os pontos que destacávamos mais acima sobre as características do MFC. Gisele tem vários momentos, várias horas do seu dia de trabalho, abertas para uma demanda livre, que chamam de “acolhimento”, duas das 8h diárias de trabalho estão voltadas para atendimentos que não foram previamente agendados. Como o tema do acesso é um dos pilares da APS, ou seja, as pessoas precisam conseguir falar rapidamente com sua equipe ou MFC quando acharem necessário, vimos arranjos nos 4 CS que acompanhamos para esse tipo de demanda. A facilidade do acesso guarda uma relação com o tema da medicalização, que já trabalhamos em outra parte (TESSER e cols, 2008), por que ao mesmo tempo em que procura evitar a busca de serviços potencialmente mais medicalizantes, como emergências médicas, farmácias privadas, serviços ambulatoriais especializados, por outro lado, atrai para o CS muitas situações que poderiam ter outra solução de forma autônoma sem a necessidade de uma interpretação médica. E esse dilema pode ser facilmente visto nos atendimentos que Gisele presta no chamado “acolhimento”, quando 109 atende muitos casos de gripes, resfriados, geralmente em crianças, que os pais trazem mesmo sabendo do que se trata, mas para “tirar a dúvida”, descartar “alguma coisa mais grave”. Em muitos outros casos são medos, receios de que o que sentem, palpitações, sensação de bola na garganta, dor no peito em jovens, possam representar uma grave ameaça a suas vidas. E comumente vemos Gisele, Bernardo, Fabiana e Suzana dizendo que não há nada para fazer, que a medicina não é necessária ou não tem uma resposta para esses problemas, que os conselhos das avós podem ser úteis, como o repouso ou o chá e que aquela ansiedade ou angústia pode sim ter relação com a separação, com problemas no trabalho e não com alguma outra doença. Enfim, nesse espaço da demanda espontânea costumamos ver muitas atuações desses MFC em que, naquele movimento pendular que descrevíamos, distanciam-se ou tentam se distanciar de algumas características da biomedicina, já que é o paciente muitas vezes que está na posição de explicar sua situação por meio de uma teoria das doenças e o MFC na de questioná-lo. Suzana trabalha em um CS pequeno (Amendoeira), em que há apenas uma equipe de saúde da família, dedica todos os períodos da manhã ao atendimento de consultas, que são agendadas diretamente na recepção com uma técnica administrativa. A agenda se estende por algumas semanas. Seu CS está localizado em um bairro tradicional de pescadores, mas que nos últimos anos passou a receber basicamente dois grupos de imigrantes, ou novos moradores, pessoas de classe média alta que fogem do centro da cidade e buscam viver em um local em que, costumam dizer, se está mais próximo da natureza; e também pessoas da classe baixa, que vêm do interior em busca de trabalho, são os pedreiros, as domésticas, jardineiros, motoboys, camareiras. A facilidade para ver esse pequeno bairro como um todo e rapidamente apreender um pouco sobre sua história, as pessoas que vivem aí, suas regras próprias dá uma ideia de outra característica dos profissionais que trabalham na APS, que está relacionada ao que chamam de longitudinalidade, mas que é mais do que isso. Longitudinalidade no jargão dos profissionais da área é a possibilidade de acompanhar uma mesma pessoa, família ou população por um longo período, mas o que vemos é que a equipe e o MFC desenvolvem um olhar sobre a comunidade que acompanham que também nos levará para essa oscilação entre a biomedicina e alguma outra coisa, que nesse caso se trata de um olhar geral sobre o modo de vida das pessoas dessa comunidade em que, como em um quebracabeças sem-fim, os MFC e demais profissionais da APS vão juntando 110 informações, peças, sobre situações particulares das pessoas que atendem. Após algumas das consultas acompanhando Suzana, apesar de estarmos ali 10, 20 ou 30 minutos fechados em uma sala de 3x3m observando um teatro que muitas vezes não me parecia fazer sentido, porque não entendia determinadas falas ou algumas condutas, ela me contava ou me mostrava depois alguma peça, não que faltasse porque não quero dar a impressão de um sistema completo ou fechado, mas que mudava subitamente a interpretação do que havíamos acabado de ver. Tentarei ilustrar por meio do exemplo de Vanir, uma mulher de 48 anos, que vem para um retorno com Suzana. Ela acompanhava também com o psiquiatra da região, fazia uso de antidepressivos, e durante a consulta discorre tranquilamente sobre os efeitos da medicação, que não tem surtido o efeito esperado para ela, e sobre outras situações antigas e novas, calorão que relaciona à menopausa, uma bolinha que percebeu na mama, dor de estômago. Em seguida, Vanir solicita o uso de um sedativo, que com uma leve resistência é prescrito pela médica. Enfim, havia ficado para o observador-investigador a impressão de uma consulta que corria muito tranquila, muito frouxa, com uma abordagem que flutuava na superfície das queixas que eram trazidas e cujas respostas eram aplicadas uma para cada sintoma, um encaminhamento para o ginecologista, um remédio para a ansiedade e insônia, outro para a dor de estômago. Após a consulta, conversamos sobre Vanir, e sua história ganha outras cores. Suzana me diz: bem interessante o caso dela, ela veio de repente, desespero, estava sem comer, quase surtando, estava praticamente seca, sem comunicação física, uma pessoa que morou no exterior, surtou, tava no exterior, ficou perdida no aeroporto, estava no aeroporto de Marraqueche, ela chegou aqui, chorando, vieram morar aqui, andava quilômetros de bicicleta, rodava todo o mundo, não comia. Falei para o [psiquiatra], alguma coisa vamos ter que fazer. Ela vinha aqui chorando, começou a comer aos pouquinhos, foi ao grupo, começou a falar aos pouquinhos, parece que falou de uma história de um abuso, e antes não conseguia ficar no grupo, uma ansiedade, uma loucura, e aí não conseguia mais trabalhar, e ela fazia publicidade, trabalhava com campanhas publicitárias, mídia, e aí não 111 conseguiu mais trabalhar, é, não foi fácil, e melhorou assim... O interessante desse relato é que, a diferença dos relatos médicos tradicionais, em vez de se fixar na descrição dos sintomas, na cronologia, nas dúvidas diagnósticas e no tratamento, volta-se para o contexto em que vivia antes dessa mudança porque teria passado, o que fazia, com que trabalhava, como sofreu nesse período e como tem superado essa fase. E agora ouvindo-o novamente e lendo e relendo, percebo como o próprio relato da Suzana é uma narrativa bastante caótica, parece até mesmo simular na forma de contar a história vivida por Vanir, de como seu mundo virou de repente de cabeça para baixo, “uma pessoa que morou no exterior, surtou...”, “...e aí não conseguia mais trabalhar, e ela fazia publicidade...”. Não me parecia ou não percebi, pelo menos, que Suzana sofresse a história de Vanir, o que costumam chamar de contra-transferência, mas que essa era a maneira como apreendia o seu “caso”, destacando mais o contexto em que se inseria esse seu adoecimento do que a particularidade de seus sintomas. A visualização espacial que fazia enquanto atendia Vanir provavelmente colocava a sua situação ao lado de outras histórias de vida de sua comunidade de pacientes, assim como o médico que trabalha em uma enfermaria hospitalar ou em um ambulatório de especialidades faria em relação às particularidades orgânicas da doença daquele paciente em relação a todos os outros que viu ou que acompanha (como já nos descreveu Foucault em O Nascimento da Clínica). Esse olhar do MFC, assim como o olhar clínico, valoriza a experiência, o empiricismo, porque está calcado na ideia de que é um conhecimento muito particular, vivido apenas por quem atendeu aquela pessoa. No seu caso, viriam daí os chamados segredos profissionais, ou seja, aqueles conhecimentos muito próprios da prática de cada um e muito pouco generalizáveis. A diferença, como já dissemos, é que para a maioria dos médicos, especialistas focais, esse segredo virá geralmente de situações clínicas strito sensu e muito pouco de inferências sobre a vida familiar ou comunitária dos seus pacientes, como ocorre com esses MFC. Mesmo na Argentina, Holanda, Espanha, países com sistemas de saúde e APS diferentes em que tive a oportunidade de acompanhar consultas de MFC aparecia de modo muito forte esse olhar que à diferença do olhar clínico, que penetra o corpo em busca da lesão ou disfunção fisiológica, atravessa as paredes do consultório e busca referências e conexões nas informações previamente conhecidas sobre trabalho, família, situações difíceis no bairro ou características pessoais 112 atribuíveis ao problema. Uma espécie de olhar clínico comunitário, que no mundo da MFC costuma ser resumido no conceito de abordagem centrada na pessoa e entre os acadêmicos da saúde coletiva ganhou também a alcunha de clínica ampliada. Apesar de vindas de movimentos políticos e de referências ideológicas distintas, tanto a abordagem centrada na pessoa quanto a clínica ampliada propõem uma reforma da clínica moderna, que na proposta dessa última seria (CAMPOS e AMARAL, 2007, p. 852): ampliar o objeto de trabalho da clínica. (...) A Medicina Tradicional se encarrega do tratamento de doenças; para a clínica ampliada, haveria necessidade de se ampliar esse objeto, agregando a ele, além das doenças, também problemas de saúde (situações que ampliam o risco ou vulnerabilidade das pessoas). A ampliação mais importante, contudo, seria a consideração de que em concreto, não há problema de saúde ou doença sem que estejam encarnadas em sujeitos, em pessoas. Se McWhinney (1996) parecia falar de uma revolução na clínica ao questionar a racionalidade mecanicista ali mesmo onde ela parece mais forte, na biologia; Campos e Amaral (2007, p. 853) falam de uma reforma na clínica e de uma inclusão de novos conhecimentos aos saberes biomédicos já dados, como quando dizem: “a clínica necessitará de recorrer a conhecimentos, já sistematizados em outras áreas, sobre o funcionamento do sujeito quando considerado para além de sua dimensão orgânica ou biológica.” Se McWhinney (1996) parte de uma visão sistêmica e organicista para calcar a clínica da APS em um MFC ou um generalista que centra sua prática na relação com pessoas ao longo do tempo; Campos e Amaral (2007) preocupam-se com a produção de saúde de modo mais amplo e isso suscitaria um cuidado entre profissionais de saúde (quaisquer, não necessariamente generalistas) e sujeitos que além da dimensão biológica, possuem uma “dimensão social e subjetiva”. Nesse entendimento, o MFC não é essencial, já que diferentes profissionais podem dar conta separadamente dessas dimensões. E parece haver alguma tensão, como a que exemplificamos entre dois autores bastante conhecidos, entre MFCs e pesquisadores e agentes políticos da saúde coletiva (obviamente sem generalizar) em relação à clínica da APS e os profissionais que deveriam ocupar esse espaço. 113 De todo modo, como já pudemos discutir no capítulo anterior, tanto em um modelo quanto em outro, a ampliação do cuidado ou o cuidado centrado na pessoa podem propiciar tanto uma menor transformação de sintomas de mal-estar em diagnóstico médico quanto um maior entendimento da população de que o CS é um recurso válido para lidar com o sofrimento social e com outras situações que outrora estiveram fora do seu escopo. E o tema da medicalização parece ser um daqueles temas em que MFC e acadêmicos da saúde coletiva se acham mais próximos na crítica. Bernardo trabalha em um CS (Araucária) de porte mediano, nem tão grande quanto o de Gisele, nem tão pequeno como o de Suzana. São quatro equipes de saúde da família que atendem a uma população de aproximadamente 13 mil pessoas. O CS em que trabalha é um edifício funcional, planejado para essa função e bastante impessoal nesse sentido. Igual ao CS em que eu mesmo trabalho, que está por sua vez em uma região bastante distinta. Apesar da brutal semelhança entre um e outro, o mesmo desenho visto de fora, a mesma recepção, consultórios com o mesmo tamanho, o mesmo corredor largo que me anuncia a sala de espera, o auditório, a sala de vacina, logo percebo como a equipe e a comunidade que o utilizam vão criando diferenças que o tornam quase irreconhecível, o que me causava uma sensação bastante estranha, a de ser tão parecido e tão diferente ao mesmo tempo. O meu mergulho inicial no CS Araucária me provocou ainda outros desconfortos, pois eu vinha de acompanhar o trabalho no CS Figueira em que, por algum motivo, as pessoas que trabalhavam ali pareciam mais animadas, ou seja, em que percebia muita energia para tentar melhorar o trabalho, várias iniciativas a cada semana como novos grupos, novas formas de acesso, programações culturais, cartazes que apareciam e desapareciam das paredes. Essa sensação e o fato de ter sentido diferentes emoções ao percorrer em pouco tempo 4 diferentes CS e, simultaneamente, sempre trabalhando em um outro CS, nos dá uma outra característica da APS e que também personifica no MFC, que é essa porosidade ao entorno. Se quando lemos os documentos sobre organização dos serviços de saúde, sejam dos sistemas nacionais, estaduais ou municipais de saúde temos a impressão de uma oferta bastante homogênea, porque há uma força para homogeneizar os locais de trabalho, os profissionais, suas vestimentas e, principalmente, suas práticas o que vemos, por outro lado, são grandes diferenças entre um CS e outro, apesar de estarem no mesmo município sob a mesma gestão. A uniformização, defendida por muitos gestores, e a adaptação ao entorno, defendida por MFC e autores próximos à APS, é um dos pontos de tensão mais presentes no dia-a-dia desses serviços. 114 Em favor da heterogeneidade poderíamos citar Gervas (2010) que nos diz: “A APS é muito distinta em cada país, adaptada ao entorno social e geográfico. Deveria ser distinta em cada zona cultural distinta, dentro de cada país, pois o seu é à adaptação ao entorno”. E da tendência uniformizadora, poderíamos citar muitos documentos institucionais que procuram estabelecer regras para construção dos CS, regras para o acesso da população, para a organização das agendas, para os uniformes dos profissionais e, principalmente, para as condutas clínicas. A proximidade com as principais questões da comunidade e a convivência cotidiana em uma situação de bastante igualdade de direitos e deveres com os demais profissionais do CS (é o que se vê no Brasil e na Espanha, por exemplo, apesar das diferenças salariais) pode criar muitos tensões políticas, como o que pudemos ver no CS Araucária. Não nos interessa aqui entrar nesses detalhes, mas apenas demonstrar o que pudemos ver de uma ou outra maneira nos 4 CS que freqüentamos, talvez com mais força no CS Araucária, que definimos mais acima como porosidade ao entorno, mas que é essa implicação política do MFC em relação às condições de trabalho, à organização dos serviços no C.S., e às condições de vida da população que atende. Claro que em outros âmbitos do trabalho médico também poderíamos encontrar implicações políticas, e muitas, não é de outra forma que se disputam recursos públicos para a atenção terciária, por exemplo. A diferença em relação à APS é justamente a sua localização e o seu espaço de trabalho que propicia sua forma particular de implicação. Fabiana trabalha no CS Garapuvu, que é mediano, são 2 equipes de saúde da família. O CS é pequeno para a quantidade de pessoas que trabalham ali e para a população que atendem. Não há uma sala de espera propriamente dita, há um corredor de espera, em que os vizinhos que ali se encontram transformam-no, algumas vezes, em um fórum de discussão dos temas locais: a qualidade do atendimento do CS, problemas na escola, a violência, fofocas sobre os vizinhos, entre outros. Fabiana faz um horário diferente do 8h-12h e 13h-17h, trabalha duas manhãs das 7h às 13h e 6h todas as tardes. Em todos esses períodos atende casos de encaixe, a todo o momento costuma se formar uma fila em frente sua porta, algumas vezes mediada pela atendente da recepção ou pelo enfermeiro com quem trabalha, noutras não. Separa alguns períodos para grupos, como o de biodança, e outros para atendimentos específicos, como a manhã em que atende apenas mulheres, esse período foi o que acompanhamos em duas oportunidades. Uma característica geral do MFC que apreenderemos da observação do trabalho de Fabiana é o da sua forma de atendimento clínico. Como já dissemos mais acima, 115 ela também é homeopata e sua consulta reflete bastante essa sua racionalidade, claro, adaptada ao tempo e às necessidades da APS. Mas a forma como os MFC que acompanhamos exercem sua clínica costuma ser apontada pelos próprios como bastante diferente da maioria dos médicos especialistas focais. Essa clínica diferente, também apontada por Gisele mais acima, poderia ser sintetizada em cada atendimento do MFC, naquele momento dentro do consultório que dura alguns minutos, e que pudemos acompanhar em mais de 150 oportunidades. Em que essa clínica difere e de quem ela difere seriam as perguntas que nos levariam novamente àquela relação tensa com a biomedicina. É dela que se quer diferenciar, por um lado, e por outro os MFC também querem fazer um melhor proveito dela. Mas como é essa clinica? Todos os MFC atendem pessoas de diferentes idades com demandas as mais variadas por um longo período de suas vidas. Há atendimentos em que o que predomina é a conversa (consultas de instruções sobre métodos contraceptivos, p. ex.), em outros o exame físico (alguma queixa aguda, febre, dor no abdome, massa ou tumor visível), em outros algum procedimento (inserção de Dispositivo Intra Uterino – DIU-, retirada de cera do ouvido, retirada de unha encravada, cauterização de verrugas genitais, coleta de preventivo do colo do útero, etc.). O tema da consulta pode mudar bruscamente de uma reação inesperada de um medicamento para a hipertensão para uma bolinha que surgiu nas costas e o estresse que se está passando pela escolha marital da filha. Talvez esteja aí a primeira grande diferença dessa clínica em relação às outras, essa postura aberta do MFC quanto às demandas trazidas pelas pessoas que atende. Essa é umas das principais características que o assemelha ao clínico geral do século XIX, que sem a presença das demais especialidades existentes hoje, monopolizava uma ampla gama de atenção e de serviços. Para completar ainda essa descrição sobre o trabalho dos MFC que acompanhamos, precisaríamos acrescentar que todos fazem visitas domiciliares, geralmente naqueles casos em que a pessoa não pode sair de casa. Todos estão envolvidos de alguma forma com atividades coletivas, coordenam, participam ou encaminham as pessoas para participar desses grupos. Veremos que diversas situações encontradas no atendimento individual, no consultório, serão encaminhadas para esses espaços. Grupos de relaxamento, de biodança, de gestantes, de suporte psicológico, de hipertensos e ou diabéticos, de mulheres, e muitos outros fazem parte desse repertório. Nem todas essas características estão circunscritas aos médicos que se dizem MFC, há uma certa formatação da ESF Brasil afora, que faz com que a maioria das equipes atendam todas as faixas etárias, 116 façam visitas domiciliares, tenham reuniões com a equipe, e coordenem ou participem dos grupos mais comuns de atividade coletiva, que são os de hipertensos ou diabéticos, de gestantes e de 3ª. Idade. A diferença dos MFC que acompanhamos em relação a uma maioria que trabalha na ESF brasileira talvez provenha do fato de que nossos interlocutores se identificam como médicos de família e comunidade. Bernardo e Gisele fizeram a residência médica (que são 2 anos de especialização teóricoprática após os 6 anos de graduação), Fabiana e Suzana fizeram a prova de título da especialidade (uma prova teórica que pode ser feita após 3 anos de atuação na área), Bernardo e Fabiana tem ainda formação em homeopatia. Todos escolheram trabalhar nessa área, o que pode ser um viés dessa pesquisa. Com esses 4 que acompanhamos provavelmente estaremos apresentando quais as semelhanças e diferenças possíveis em um universo de 3 ou 4 mil médicos que trabalham hoje na APS, o que de todo modo já representaria um universo razoável. Quem seriam os outros? Não há nenhuma grande e detalhada pesquisa sobre isso, mas supõe-se por observação e diálogos com gestores e profissionais de saúde de todo o Brasil que: 1. são recém-formados que seguem trabalhando na ESF e que não consideram necessária uma pósgraduação para isso; 2. recém-formados também mas que trabalham enquanto aguardam até tentar novamente um prova de residência de outra especialidade; 3. médicos com 10 anos ou mais de profissão, sem uma formação específica, que conciliam o atendimento em clínicas privadas com a ESF; 4. médicos com residência ou especialização em alguma outra área, mas que não consideram suficiente o que ganham na sua área e trabalham parte do tempo na ESF. Depois de conhecermos um pouco sobre as características dos médicos que escolhem fazer MFC, e também sobre algumas características peculiares de seu trabalho e de como influenciam sua maneira de praticar a medicina (e quiçá de ver o mundo), tentaremos em seguida aprofundar a discussão que já vimos fazendo sobre essa relação entre biomedicina e MFC por meio de um olhar mais histórico. 3.3. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA Contar ou desenvolver alguma história da medicina ou da medicina de família e comunidade não está entre os principais objetivos desse trabalho, mas é uma parte importante da tese, qual seja, apresentar quem são os médicos de família e comunidade que acompanhamos na pesquisa de campo, e de maneira mais ampla, como chegamos no início do século XXI, no Brasil, a ter médicos como eles, aí me parece que há um contexto interessante para desenvolver. 117 Se encontrar os marcos históricos que fundaram a biomedicina parece hoje uma tarefa mais fácil por ter sido descrita por tantos autores, localizar a MFC no tempo já não é uma iniciativa tão simples. Há uma referência sintética, mas muito significativa para os MFC, que é o primeiro capítulo do Manual de Medicina de Família e Comunidade,, de Ian McWhinney, publicado no início da década de 1980 e que separa a história do MFC em 3 eras: a era do clínico geral do século XVIII e XIX; a era das hiperespecializações do fim do século XIX e primeira metade do século XX; e o MFC, principalmente em sistemas públicos de saúde, da segunda metade do século XX (MCWHINNEY, 2010). Uma imagem que está muito associada ao MFC dos dias atuais é a desse clínico geral do século XIX descrito por McWhinney (2010) e que, no Brasil, ainda era muito comum até há algumas décadas, especialmente no interior do país. Um médico que não havia feito nenhuma pós-graduação ou especialização formal e que atendia em clínicas privadas ou em domicílio os problemas mais comuns de diferentes faixas etárias ao longo do tempo. Em muitos países, como Inglaterra, Holanda, Alemanha serão esses mesmos clínicos que passarão a vender seus serviços para o estado quando da constituição dos sistemas nacionais de saúde e da APS após a 2a. grande guerra. No Brasil, o SUS e a APS pública chegaram bem mais tarde, em 1988 e 1994 respectivamente, e a medicina privada já se encontrava em um processo muito adiantado de fragmentação e de hiperespecialização, assim como a formação médica. Já não seriam mais esses clínicos (porque quase já não existiam) a se tornarem os novos MFC brasileiros, mas uma imagem idealizada deles ainda se mantém para uma parcela da população, especialmente para a classe média, que utilizava seus serviços em um Brasil mais interiorano, como o que havia até a década 1960. As classes mais baixas não tinham acesso a esse tipo de médico e lidavam com suas doenças em casa, com chás, ervas medicinais ou por meio das curandeiras locais, que faziam um pouco de tudo, ensinavam a preparar as ervas, benziam e faziam os partos. Aprendiam o trabalho de modo artesanal, de mãe para filha, e aquelas que se destacavam recebiam pouco a pouco a confiança dos seus e da comunidade. Muitas dessas senhoras estão morrendo agora e não deixaram herdeiras, é uma prática em franca extinção. A MFC, ao contrário, encontra-se em um período de rápido crescimento. E não é difícil descrevermos cronologicamente os avanços institucionais que consolidaram-na como uma especialidade médica reconhecida pelos órgãos profissionais da categoria, como a área que se insere com mais força na APS, que também vem ganhando espaço nos 118 currículos das faculdades de medicina. Poderíamos descrever passo-apasso porque esse crescimento está atrelado, no Brasil e na maioria dos países, ao desenvolvimento dos estados de bem-estar-social (welfare state) e há muitos documentos, geralmente contratos ou normativas oficiais, que o demonstram. Esse momento da MFC, no entanto, costuma ser contraposto em vários dos relatos históricos a um outro momento e a uma outra figura, que é a do clínico geral. É muito viva ainda na memória a ideia do “clínico geral de antigamente”. Afirmação que, como veremos, pode ser enaltecida ou rechaçada, como no texto abaixo, mas que de todo modo trazem para o presente da MFC uma discussão histórica (GUSSO, 2010): Como definir a especialidade Medicina de Família e Comunidade? Considerando a organização do sistema de saúde e a superespecialização vista atualmente na área médica, essa tarefa não é fácil. Algumas explicações corriqueiras são: “o médico de família e comunidade é aquele clínico geral antigo que ia na casa das pessoas” ou “o médico de família e comunidade é aquele que não se especializou em nada” ou ainda “é uma nova especialidade no Brasil”. Essas explicações são cercadas de imprecisões ou incorreções que este artigo pretende minimizar. Mais do que chegarmos a um veredicto sobre a relação entre o MFC atual e seu papel como médico e o clínico geral do século XIX e começo do século XX, um primeiro importante apontamento que poderíamos fazer é o de que esse é um debate muito importante para os MFC. E a identidade que se procurar dar a esse novo MFC se dá em relação a esse clínico geral, por aproximação ou distanciamento: o clínico geral ou generalista antigo que fazia de tudo porque não havia ainda uma ideia de especialização na medicina versus o médico de família e comunidade, um especialista consciente de suas demarcações práticas e científicas; o clínico geral privado que atendia em um consultório particular ou na casa das pessoas versus o MFC assalariado ou associado a sistemas públicos nacionais de saúde que atende em uma clínica pública. Ou por meio das semelhanças, que seriam o fato de atender a pessoas de todas as idades, por muito tempo, próximo do local em que vivem essas pessoas, valorizando na abordagem clínica aspectos da personalidade, do convívio familiar e social. 119 Vejamos como esse tema surge quando os MFC abordam os aspectos históricos. Para McWhinney (2010), o surgimento da MFC do século XX provém de ramificações dos boticários do século XVIII e início do século XIX e, posteriormente, dos clínicos gerais do século XIX. Ele dirá que “a medicina de família e comunidade evoluiu a partir de uma ramificação mais antiga da medicina – clínica geral. A relação entre elas, entretanto, não é simples...” (2010, p. 14). O autor procura destacar o contexto histórico que teria produzido essas mudanças, a que chama de evoluções. Adota a ideia, compartilhada por vários outros (dentre eles, FOUCAULT, 2003), de que a medicina como conhecemos hoje é procedente da do século XIX: “Nos séculos XVII e XVIII, os médicos eram um pequeno grupo de elite, formado por homens cultos educados nas poucas universidades existentes.” Dos boticários, comerciantes responsáveis pela prescrição e venda de fármacos, viriam os clínicos, premidos pela “resposta a novas necessidades” (MCWHINNEY, 2010, p. 15). A partir de regulamentações promovidas pelo estado, descreve mais as ocorridas na Grã-Bretanha, os boticários abrirão espaço para o que chama de “A era do clínico geral”, que dominará o panorama médico no século XIX na Europa e América do Norte. A revolução tecnológica do fim do século XIX, com o “progresso das ciências (química, física, fisiologia e bacteriologia) começava a ter um impacto na medicina” (MCWHINNEY, 2010, p.17). Outro marco apontado pelo autor será a reforma da educação médica promovida nos EUA por Abraham Flexner e seu relatório sobre a situação do ensino nas faculdades americanas. Para o autor essas mudanças condicionaram o surgimento da “era da especialização” da primeira metade do século XX, que levará ao ocaso o clínico geral: O número de clínicos gerais diminuiu de forma constante a partir da década de 1930, tanto em termos absolutos como proporcionais na profissão médica como um todo. O processo foi acelerado pelo desaparecimento virtual dos clínicos gerais nos corpos docentes das escolas médicas após a Segunda Guerra Mundial e em virtude da fragmentação das especialidades principais a partir da década de 1950. (MCWHINNEY, 2010, p. 18) O passo seguinte, na descrição de McWhinney, será o de que com o ápice da era da especialização surge a necessidade de um novo 120 tipo de médico generalista, que deve ser diferente dos “antigos clínicos gerais”, porque deixará de ser um “grupo indiferenciado dentro da profissão, definido principalmente pela falta de treinamento e qualificação”, para ele o “novo médico generalista agora tem um papel claramente diferenciado e um conjunto definido de habilidades” (2010, p. 18). É interessante observar que McWhinney faz uma leitura relativamente crítica, historicizada, apoiada por outros autores, sobre os séculos XVIII, XIX e início do século XX, para concluir com o surgimento do novo médico generalista-especialista mais marcado por uma defesa dessa área com um discurso próprio do seu tempo. O que, aliás, fará com mais ênfase no capítulo seguinte em que abordará os “Princípios da Medicina de Família e Comunidade”. McWhinney é um dos ícones dessa defesa, incorporada pela maioria das Associações de Medicina de Família e Comunidade do mundo todo em ser reconhecida perante a sociedade, o estado e, principalmente, pelas demais instituições da própria corporação como uma especialidade médica. Talvez provenha daí a enorme preocupação dos MFC com as declarações tão comumente ouvidas e, muitas vezes, de maneira saudosa pela população de que se trata do ressurgimento do antigo clínico geral. Por outro lado, aceitam de bom grado as críticas que se faz à deterioração da relação médico-paciente, à falta de integralidade da abordagem, à desumanização provocada pela “era da especialização” em que se os conecta deliberadamente aos clínicos gerais de antigamente. Parece se tratar de uma ambiguidade de que se aproveita. Para ser aceita como uma área médica reconhecida pela corporação médica é preciso falar em especialização do conhecimento, fragmentação e delimitação dos campos teóricos e de prática, até para que não pareça uma ameaça a grupos de médicos que disputam o mesmo espaço. Para ganhar rapidamente prestígio diante da população usa-se o recall que a ideia de médico de família ou clínico geral goza. E voltamos outra vez a observar aquele movimento pendular entre a MFC e a biomedicina. Desse modo o antigo e o novo se articulam na figura do médico de família na afirmação da sua área de atuação desde a segunda metade do século XX, período em que passamos, segundo pensadores como Giddens (1991), de uma modernidade para uma modernidade tardia. Procurarei situar a MFC e a APS em relação a essas reflexões sociológicas mais adiante, mas convém adiantar a ponderação de que talvez o MFC possa representar bem essa figura da modernidade tardia, da pós-modernidade ou da modernidade líquida, em quem convivem o antigo e o novo, em que há maior reflexividade institucional, uma 121 relação mais aberta entre médicos e pacientes, uma abertura para novos modos de cuidado não médicos ou não tão hegemônicos, uma flexibilização das rotinas de trabalho e da organização do cuidado, a convivência de diferentes formas de entendimento sobre o processo saúde-doença, ao mesmo tempo em que usa diversos jargões bastante modernos como especialidade, tecnologias, medicina-baseada em evidências, etc.. Em algumas declarações institucionais da MFC vemos não apenas uma identificação dessa com os clínicos gerais do século XIX, mas também com a medicina hipocrática. Se McWhinney (2010) já nos trazia, de certo modo, uma história contada com matizes materialistas e evolucionistas ao falar de um contexto que impele ao surgimento e desaparecimento de algumas espécies, a história contada pela American Academy of Family Medicine (AAFP, 2009) é bem ao modo das típicas histórias internas da medicina, como podemos ver desde sua página na Internet: “Medicina de Família é a evolução natural da prática médica histórica. Os primeiros médicos eram generalistas. Por milhares de anos, generalistas proveram todo o cuidado médico disponível. (…) Com a expansão do conhecimento médico e o avanço tecnológico muitos médicos escolheram limitar suas práticas a áreas específicas, definidas da medicina”. Com o foco todo na instituição médica surge uma linha evolutiva que traz até o MFC atual, sua mais bem acabada expressão, e as opções que foram feitas ao longo do caminho nada mais são do que escolhas deliberadas que indivíduos como nós fizeram em dado momento. O que eu pretendo fazer nessa parte não se trata nem de uma história interna ou externa, senão uma certa história do presente, ou seja, desde que percebemos que há um conflito histórico relacionado à identidade do MFC, gostaria mais de discutir os significados que essas referências ao clínico geral ou aos médicos hipocráticos têm para a formação dessa identidade do que propriamente buscar no passado informações ou documentos que provem qualquer coisa. Nesse sentido, as referências que faremos às práticas médicas do passado, mesmo com um passado ainda mais remoto do que o do clínico geral do século XIX, representaria não a valorização de uma essência do conhecimento médico em todos os tempos, mas a reafirmação dessa noção de que a cultura no ocidente moderno dá-se, como dizia Nietzsche, em uma construção destrutiva e em uma destruição criativa, em que não se apagam totalmente velhas formas de fazer, mas em que se recria a partir delas, muitas vezes apagando suas pistas. 122 Para Gervas (2003, p. 357), “el Olvido de la historia”, é um dos motivos que têm levado a MFC e a APS a uma “depressão coletiva”, causada por uma hipertrofia de especialistas e da atenção hospitalar, ele nos diz que: Como bons espanhóis acreditamos que a história começa hoje. Dá ternura (e pena), por exemplo, ouvir falar da Atenção Primária na Espanha e ver que começam sua história com a implantação da especialidade de Medicina de Família, ou com o decreto das Estruturas Básicas de Saúde, como se não houvessem existido os “físicos” e a legislação de Alfonso X o Sábio e uma larga história que passa, também, pelas iniciativas da Segunda República. A hiperespecialização da medicina a que assistimos nos últimos 50 anos ou pouco mais e que é marcante na formação dos médicos nesse período provoca uma atitude em relação ao tempo de valorização das tecnologias atuais e das que estão por vir. A vivência dessa medicina assim como a experiência cotidiana que temos com os aparatos tecnológicos leva à ideia de que o passado remoto era pleno de bárbaros, o passado recente só não deve ser esquecido porque reconhecemos que foi o que nos trouxe até aqui, mas o que interessa mesmo é esperar ansiosamente pela próxima tecnologia, que nos livrará do câncer, descobrirá causas genéticas para determinadas patologias e vacinas para o vírus da AIDS. A tensão que novamente vemos aqui da biomedicina com a MFC é que para ela a história é importante. Interessa aos MFC, em defesa de uma medicina mais humanizada, de uma visão mais ampla (social) do processo saúde-doença, buscar referências teóricas e práticas anteriores à era da hiperespecialização. E aqui o que pretendo apontar é que, menos do que tentar encontrar alguma relação entre os generalistas hipocráticos, os clínicos gerais do século XIX e os MFC atuais, o passado é tão importante para os MFC quanto o futuro o é para os especialistas focais. E, claro, que tanto o passado para um quanto o futuro para outro falam muito melhor de como se vêem e se movem no presente do que servem para rememorar ou para predizer qualquer coisa válida de outro tempo. Michel Foucault, em O Nascimento da Clínica (2003), trata logo de afastar qualquer perspectiva sobre uma história contínua, uma história interna, da medicina. Como vários autores clássicos da história da medicina faziam uma relação entre os médicos hipocráticos e os 123 médicos modernos, como uma retomada de um olhar científico novamente desprovido dos referenciais metafísicos e místicos do medievo, Foucault trata de se afastar dessa interpretação em defesa de sua ideia de episteme, de que um determinado momento histórico produz novas subjetividades e formas de entendimento que criam descontinuidades em relação a epistemes anteriores. Portanto, para Foucault (2003, p.157) não há uma continuidade entre a medicina grega e a atual, houve uma ruptura que implicou na formação da medicina científica: O acesso do olhar médico ao interior do corpo doente não é a continuação de um movimento de aproximação que teria se desenvolvido, mais ou menos regularmente, a partir do dia em que o olhar, que começava a ser científico, do primeiro médico se dirigiu, de longe, ao corpo do primeiro paciente; é o resultado de uma reformulação ao nível próprio do saber e não ao nível dos conhecimentos acumulados, afinados, aprofundados, ajustados. O que eu entendo que Foucault pretende pontuar é que diferentemente de uma história da medicina que chega a esse momento como uma acumulação de conhecimentos, de uma quantidade de conhecimentos, devida a pessoas ilustres ou cientistas de todos os tempos, que com o mesmo olhar científico, a mesma visão sobre a natureza, que contribuíram consecutivamente para o progresso dessa ciência monolítica, o que temos é que em diferentes momentos históricos haverá uma vivência simbólica tão distinta que não pode se comunicar com outros períodos com a mesma linguagem. Para Foucault (2003), cada momento histórico instaura um novo modo de falar e de olhar os corpos, por isso não existe um saber médico que percorra a história desvelando a verdade do corpo. A ideia de que a medicina estaria vinculada ao progresso da técnica, às últimas descobertas científicas e que se trata de inventar respostas mais sofisticadas para velhas perguntas, ou modos mais sofisticados de olhar para o interior do corpo, pertence a uma lógica otimista todo-poderosa que caracterizou a ciência do século XIX. Por outro lado, me parece que aquilo que uma cultura traz de outra época e antropofagicamente reconstrói a sua maneira pode nos oferecer uma brecha para fazer essa discussão, que apontávamos antes, de uma história do presente. E esse debate talvez seja o mais importante 124 a que se possa chegar nessa parte da tese. Como dizia antes, é muito comum ouvirmos de diferentes pessoas, classes sociais e profissões, ao se falar sobre o MFC, de um retorno a tempos remotos, de um retorno a uma medicina que não é essa que vemos o tempo todo, como a hegemônica, a hiperespecializada e tecnológica. Ao mesmo tempo em que vemos também vários MFC tentando dizer que não se trata desse retorno, mas de algo novo, que traz conhecimentos e técnicas de uma medicina que se perdeu, antiga, mas também uma novidade porque se relaciona o tempo todo com a medicina científica ou moderna. 3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como previa, de algum modo, o tema parece pedir mais do que pude oferecer nesse capítulo. A sensação que me vem ao relê-lo agora para tentar dar um acabamento final é a de que apenas desembrulhamos um pacote que, antes de chegar a revelar o seu conteúdo, revela-nos mais uma caixinha, mais um embrulho, e assim sucessivamente. Não muito diferente, talvez, do que o que se lê, ironicamente, na maioria das conclusões das metanálises de ensaios clínicos randomizados, tão em voga nos últimos anos, que fazem uma série de perguntas para nos responder ao final que: “são necessários mais estudos rigorosos sobre o tema...”. Na maior parte do texto surgiu com destaque a distância relativa entre a MFC e a biomedicina. Vimos que desde a faculdade, os MFCs que acabam escolhendo atuar nessa área, parecem fazer sua opção na medida em que rechaçam algumas das características fundamentais da biomedicina e dos professores que acabam servindo como um contraexemplo. Não se trata somente de uma distância científica ou acadêmica, mas que se extende para aspectos culturais, sociais, políticos e filosóficos. A posição forte e hegemônica da biomedicina, no entanto, parece provocar um tal efeito gravitacional que a MFC orbita ali em volta, indo-e-voltando, lidando sabiamente com o fato de ser diferente e de não ser tão diferente para ganhar espaço. Se vimos que, diferentemente da era do clínico geral, no século XIX, não há como não pensar em uma convivência atualmente entre o generalista e os especialistas, há por outro lado, um desejo de que conhecimentos muito próprios do espaço de prática do MFC influenciem e modifiquem a visão de mundo da biomedicina. Assim seria ao se valorizar a incerteza em vez das evidências, a narrativa em vez anamnese na história clínica, a relação médico-paciente e sua eficácia, entre outras. Ao mesmo tempo, vê-se também um assalto constante da racionalidade biomédica em relação a tudo que quer ou parece ser 125 diferente na prática e teoria da MFC. São frequentes nas gestões de saúde, protocolos para a APS que fragmentam o cuidado ao dividir a atenção em saúde da mulher, da criança, mental, etc. Com o crescimento da MFC no Brasil, no sistema público especialmente, passa a haver uma aproximação maior de especialidades médicas que se interessam em observar mais de perto a clínica da APS. Do mesmo modo, a chamada medicina baseada em evidências, cujas metanálises abarcam situações mais amplas e variadas e passam a ser cada vez mais utilizadas na prática clínica. 126 CAPÍTULO 4 - DO ENCONTRO: A RELAÇÃO MFC-PACIENTE (RMP), DA LUTA À DANÇA, DO SAGRADO AO PROFANO Nos capítulos anteriores já teremos apresentado e analisado quais são e como surgem as demandas que chamamos de sofrimento social nos Centros de Saúde (C.S.); quais as características peculiares do médico de família e comunidade (MFC) e também a especificidade do seu local de trabalho, a atenção primária em saúde (APS). O trabalho de campo, no entanto, concentrou-se na observação de consultas entre médicos e pacientes e nos faltaria tratar um pouco mais desse encontro, analisando como se dá essa relação e que implicações pode ter para o objeto da pesquisa. Em mais de 100 oportunidades estive em um consultório médico em 4 diferentes C.S., gravando as consultas em áudio e, também, anotando em um diário de campo as informações e sensações que me pareciam mais importantes. Eu costumava ficar mais ao lado do médico(a) do que do(a) paciente, mas sentado de lado de modo que pudesse observá-los ao mesmo tempo em que atuavam. Algumas vezes se dirigiam a mim, como médico ou como pesquisador, e se desfazia aquele intenso jogo 1x1 e eu entrava em cena e isso parecia acontecer porque no diálogo surgia algum tema que os fazia lembrar de mim ou porque a conversa deles caía em algum vazio que necessariamente tornava meu corpo inerte grande demais para ficar despercebido. Algumas vezes me peguei observando mais o paciente, sua narrativa, expressões corporais, noutras mais o(a) médico(a), sua postura, suas reações. Mas em muitas ocasiões o olhar alcançava aqueles dois corpos que dialogavam de muitas maneiras, que iam da luta à dança, do sagrado ao profano. 4.1 ANTES, O CONSULTÓRIO No diário de campo, enquanto acompanhava as consultas, anotei observações também sobre o consultório médico. Nos 4 centros de saúde em que estive, o consultórios médicos tinham uma aparência despojada, funcional, sem artigos pessoais, com uma mesa de ferro ou de madeira ocupando uma posição central, um computador, cadeiras de um lado e de outro, e a maca junto à parede branca. Um armário pequeno completava o cenário. Olhar um consultório vazio dá uma sensação semelhante a de ver um campo de futebol, um ringue ou um palco vazios. São espaços, como o picadeiro, que para viverem dependem muito de seus personagens. 127 Outros espaços parecem sobreviver melhor à ausência das pessoas, a nossa casa, as ruas, o comércio, uma biblioteca ou um parque me passam a impressão de dizerem algo a despeito de haver ali uma ação. Um cemitério parece ainda mais vivo quando vazio. Observar o primeiro lance de vida nesses lugares tão dependentes de pessoas é impactante como um parto. Os lutadores se movem com o primeiro gongo, o ator ou atores surge(m) no palco, os jogadores passam a se mover em campo com o apito inicial, o paciente entra no consultório, o médico o cumprimenta, e o inesperado (o que é contigente) é o que dá vida ao ambiente. Depois que começa o dia, o consultório viverá grandes e menores momentos até o apito final, quando caem as cortinas e ele se esvazia novamente. O consultório, assim como o confessionário, parece ser um local reservado para rituais, talvez porque não tenha outros fins senão aquele. Para o paciente, costuma ser marcante a primeira vez que se entra naquela sala, afinal trata-se de falar de si ou de sinais e sensações que podem lhe parecer incompreensíveis e que serão decodificadas e traduzidas (ou melhor, transformadas) pelo médico. Uma das características, portanto, que parecem fazer desse lugar um ambiente particular é essa; ao passar por aquela porta e sentar naquela cadeira a sua vida ocupará um lugar central, e quiçá surjam questões da sua vida que escapem do seu controle e compreensão. Poucos lugares sociais podem lhe reservar tamanha deferência. Para o estudante de medicina, o momento de entrar no consultório e de ocupar o lugar do médico também é cercado de expectativas e de ansiedade. No currículo formal essa cena pode demorar de 2 a 3 anos para ocorrer. E o aprendiz precisa incorporar algumas regras do ritual para com o tempo agir de modo natural, sentirse mais médico e menos como alguém que atua, Levi-Strauss (2008, p. 195) dirá que “Quesalid não se tornou um grande xamã porque curava seus doentes, curava seus doentes porque se tornou um grande xamã.” No Brasil, diferentemente de alguns países europeus, como a Holanda, por exemplo, não se dá muito valor para o ensino das habilidades de comunicação em uma consulta ou para a relação médico-paciente. O estudante aqui aprende como fazer uma entrevista voltada para o diagnóstico de uma doença e absorve o jeito de ser médico, o modo de falar, de ser empático (ou não), de suas experiências como paciente e de um ou outro professor médico que acompanha e que admira (GROSSEMAN e STOLL, 2008). Uma incorporação que é na maioria das vezes irreflexiva, sem maior questionamento teórico, epistemológico, das consequências de um modelo ou outro de prática. 128 Com o passar dos anos, o médico corre o risco de banalizar demais seus encontros com os pacientes, afinal realizará milhares deles durante sua vida. Mas para alguns autores, como Gervas (2009), há momentos em que as consultas se tornam mais sagradas do que o habitual, ou como dizem Balint e Norel (1973), ocorre um flash e, nesses casos, a sensação de participar de um momento mágico não pode (ou não deveria) ser reprimida. Mas há muitos outros momentos (quem sabe a maioria dos encontros atuais) em que o espaço e a cena parecem profanos, crus, desprovidos de qualquer sinal ou sensação de que se trata de um espaço sagrado (especial). Nesses momentos parecem prevalecer os atos mecânicos, a técnica dura, o protocolo, o que é esperado. A minha própria presença ali no campo mexia de muitos modos com esse balanço entre o sagrado e o profano que aparece nos consultórios médicos (pós)modernos. Despir-me da roupa de médico e ficar ali como um pesquisador observando atentamente a cena provocava, por um lado, uma desritualização pela dubiedade do meu papel (afinal, que médico é esse que deixa seu lugar de curandeiro para observar e investigar outros curandeiros?) e, por outro, uma sacralização ainda maior, já que evidenciava a importância de se captar aquele momento único, a ponto de fazer com que um médico o investigasse como pesquisador. O decorrer da pesquisa de campo e a própria atuação como médico de família traz muitos outros exemplos de como por meio do sagrado e do profano podemos interpretar a consulta e o consultório médico atualmente. E a convivência do sagrado e do profano, assim como dos momentos de luta e de dança, especialmente na consulta do MFC, nos leva à ideia de que esse encontro pode ser interpretado como um encontro pós-moderno, ou líquido (na concepção de Bauman, 2001). Antes de aprofundar esse debate, no entanto, vejamos brevemente como o tema da RMP tem sido estudado e debatido nos últimos anos. 4.2 ESTUDOS SOBRE A RMP Ao se revisar estudos sobre o tema da RMP, vemos uma produção crescente e heterogênea. Em muitos autores, ela surgirá como um tema central, é o caso de Entralgo (2003), que se dedica a buscar uma história da RMP no mundo ocidental, tentando lidar com o conflito de valorizar ao mesmo tempo as particularidades de figuras milenares, a de médico e de paciente, e o contexto de cada época que pode mudar completamente o entendimento do que represente esse binômio. A maioria dos estudos encontrados, no entanto, e a maior parte da 129 bibliografia sobre RMP voltada para profissionais de saúde concentra-se na técnica, nas habilidades necessárias para que o encontro possa ser mais produtivo, mais rápido e gerar menos mal-estar para ambos. Muitos outros autores, importantes referências para as ciências sociais em saúde tratarão do tema de forma marginal, ele surge como parte de uma pesquisa mais ambiciosa, que usa o tema da medicina ou da RMP para teorizações sociais mais amplas e complexas, como é o caso de Foucault (2003), Illich (1975), Levi-Strauss (2008), Giddens (2002), Freidson (1988). Entralgo (2003) separa a relação medico-paciente de acordo com os tradicionais períodos da história ocidental: da Grécia clássica, a Idade Média (alta e baixa), da sociedade burguesa do século XIX e, por fim, o período atual. Em cada um desses momentos históricos, a consulta e a relação respondiam ao papel social de médicos e de pacientes, assim como ao entendimento de persona e do processo saúdedoença. Para Entralgo (2003), “a sociologia da relação médica deve ser estudada desde dentro desta, não somente desde a sociedade enquanto tal, também desde o conjunto bipessoal que constituem o médico e o paciente.” Nesta parte do texto, Entralgo (2003, p. 190-91) procura contrapor-se à teoria de Talcott Parsons ao “estabelecer uma tipologia sociológica das formas defeituosas da relação médica”. Para ele, (ENTRALGO, 2003, p. 191), “Condicionada a sua vez desde fora (desde a sociedade enquanto tal) e desde dentro (desde sua condição bipessoal ou quase-diádica), a relação médica é em si mesma social. Como afirma, “o ato médico possui um caráter ao mesmo tempo social e pessoal”. Dirá que é pessoal porque o encontro se dá entre duas pessoas e social porque são pessoas que vivem em uma cultura (o autor usa sociedade) que “em muito boa medida condiciona seus modos de ser e de se encontrar” (ENTRALGO 2003, p. 44). Essa cisão entre a análise da relação e da consulta médica desde um ponto de vista interno, dos aspectos psicológicos envolvidos e das ferramentas comunicativas, e a partir de uma abordagem externa, do contexto social que envolve e define as bases desse espaço, é perceptível ao se revisar os autores que estudam o tema. A área da comunicação médico-paciente ou da relação médico-paciente tem crescido enormemente desde a 2ª. metade do século passado. Por um lado, como uma forma de compreender melhor as queixas dos pacientes, da técnica de entrevista para captar melhor os significados do relato da doença ou problema e, também, como uma maneira de trazê-los para o centro da consulta, falando sobre suas hipóteses diagnósticas, seus medos, angústias e escolhendo o seu caminho a partir dali (ENTRALGO, 2003; 130 BALINT, 2005; PENDLETON e cols., 2011; STEWART e cols, 2010; BORRELL i CARRIÓ, 2007). Por outro lado, esse processo pode ser visto e analisado desde um ponto de vista mais sociológico, que seria o do porquê em determinado momento da história do ocidente, os pacientes que antes seguiam (ou pareciam seguir sem contestação) os conselhos médicos passam a ter mais direito a voz e opinião (GIDDENS, 2002; WILLIANS & CALNAN, 1996). Para Menendez (2002, p. 313) a relação médico-paciente pode ser descrita e analisada: Em um nível microsociológico e reduzida a seus aspectos técnicos, mas também pode ser referida às múltiplas dimensões que intervém nessa relação através da etnia, do gênero ou da classe social, assim como a níveis macrossociológicos que podem incluir tal relação dentro da relação colonizador/colonizado ou cidadão legal /cidadão indocumentado. Se bem o nível e as dimensões dentro dos quais se analisa a relação médico /paciente dependerão do problema específico selecionado, deve assumir-se que cada um deles por si só não esgota a compreensão dessa problemática e produz uma leitura parcial da mesma. As publicações que destacam uma perspectiva interna ou mais microssociológica vêm, na sua maioria, de revistas médicas ou de psicologia, nas quais se apresenta a ideia de uma medicina-centrada-napessoa em oposição a uma medicina-centrada-na-doença (ou de modo mais amplo em abordagem centrada-na-pessoa e centrada-na-doença) e são apresentadas técnicas de comunicação para uma boa relação médico-paciente (BALINT, 1966 e 2005; MCWHINNEY, 1989, MAY et al, 2006; ASHWORTH et al, 2003; BENSING et al, 2000; BENSING, 2000; KJELDMAND et al, 2006; ROTER, 2000; MOORE et al, 2004; EVANS, 2003). Muitas pesquisas entram nos consultórios médicos e avaliam a atuação de médicos e pacientes e os resultados das diferentes abordagens, geralmente a partir de questionários padronizados em que se mede se os profissionais são mais centrados-na-doença ou na pessoa (MEAD & BOWER, 2000; STREET JR et al, 2007; BRINKMUINEN et al, 2003, DEBRA et al, 2008). Dizemos haver uma novidade nessa área porque se utilizamos como referência a medicina moderna ocidental, que expande sua influência desde a Europa no século XIX para os Estados Unidos e, 131 depois, para o resto do mundo no século XX e XXI, veremos as enormes mudanças que ocorrem, apesar de nesse período sempre haver coexistido a ideia de um médico que dialoga com um paciente. Os antigos tratados de propedêutica médica ensinavam ao estudante de medicina que havia uma função no diálogo (ou interrogatório) com o paciente que era como obter da melhor forma possível as informações necessárias para um correto diagnóstico clínico. E se voltarmos ainda mais no tempo, encontraremos muita heterogeneidade na idade média européia e alguma tentativa de uniformização nas escolas gregas, em que há algumas descrições sobre o tema, que falam por exemplo da diferença na RMP ao lidar com nobres ou escravos. Como demonstra Entralgo (2003, p. 67) entre os médicos gregos, as práticas de comunicação eram bastante distintas, pois “a medicina de que desfrutam os estratos superiores da sociedade antiga incluía o diálogo com o doente e a consideração de suas circunstâncias pessoais e biográficas”. A psicanálise talvez tenha sido a grande novidade nessa área no fim do século XIX e início do século XX, quando destacou a importância da transferência e da contratransferência na RMP. Breuer e Freud (2006) perceberam que avançar na compreensão da histeria passava por uma forma de terapia baseada na fala em que uma intensa relação emocional do paciente para com o terapeuta era necessária. Uma leitura mais prática para os médicos será fornecida por Balint, que por 20 anos realizou seminários com os general practitioners (GPs, como são conhecidos os médicos generalistas ou de família e comunidade na Grã-Bretanha) e dizia entre outras coisas que o “a droga mais frequentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico” (BALINT, 2005, p. 3). E, de fato, Balint será um dos precursores do conceito de medicina centrada na pessoa, na década de 1950. No mesmo período, Rogers usaria a ideia de aconselhamento centrado no cliente. Na enfermagem, Newman e Young da década de 1970 desenvolvem a mesma linha de raciocínio. Esses conceitos passaram a ser organizados e expostos de modo mais prático para os profissionais de saúde especialmente por Stewart e cols (2010), que desenvolveram o método clínico centrado na pessoa, e por Pendleton, que fala das tarefas do médico geral em A Nova Consulta (2011). Com alguma diferença, a maioria dos autores que ensinam técnicas de habilidade de comunicação e como melhorar a relação médico-paciente enfatizam alguns aspectos centrais: ser empático, afável, apresentar-se, chamar pelo nome, os primeiros segundos do encontro são fundamentais para a sequência do acompanhamento; fazer 132 uma boa escuta, especialmente no início da consulta, em que se deve deixar o paciente falar por alguns minutos sem interromper; privilegiar as perguntas abertas sempre para não favorecer um caminho ou para não induzir a entrevista; organizar a consulta de modo a ter na sequência um momento para a entrevista, outro para o exame físico, um para expressar suas considerações sobre o problema e, por fim, outro para o que será feito com as demandas trazidas; orientam que o plano de tratamento seja bastante aberto e negociado com o paciente. Claro, além desse eixo geral que sintetizei acima, há uma série de exemplos concretos sobre como lidar com situações variadas da prática clínica. Para o médico generalista, Juan Gervas (2009, p. 41), o que dizíamos acima poderia ser assim resumido: A comunicação amável, cálida, digna, empática, respeituosa e serena com o paciente tem impacto positivo em sua saúde. Ao oferecer uma atenção digna se consegue amabilidade no trato e, além disso, uma melhora importante no resultado em saúde. As consultas dignas são mais efetivas, conseguem melhores resultados e um estilo de prática que faz fluidas as relações médicopaciente presentes e futuras. Nas consultas dignas é fundamental um estilo de boas formas, um asseio adequado, uma linguagem corporal serena, umas maneiras apropriadas ao contexto de cada paciente e problema, receber e despedir de pé na porta, dar a mão e olhar apropriadamente ao paciente nos olhos. Os primeiros momentos, assim como os últimos, são chaves para conseguir uma entrevista digna e eficaz. As primeiras hipóteses clínicas se estabelecem nos primeiros 30 segundos, e em 6 minutos tem-se uma hipótese correta em 75% dos casos. Como dizia, esses autores dedicam-se aos aspectos mais práticos e objetivos das dificuldades cotidianas dos médicos nos encontros com os pacientes e apenas rapidamente comentam porquê nesse momento histórico essa passa a ser uma preocupação, um tema candente para médicos, pacientes e pesquisadores. Referem-se geralmente a uma crise da medicina moderna e contemporânea, muito como efeito da excessiva fragmentação do cuidado e do uso excessivo da tecnologia e a uma RMP mais fria e distante. McWhinney (in: 133 STEWART e cols, 2010) é provavelmente o autor que se debruça mais sobre as perspectivas externas da insatisfação com a RMP tradicional. Para ele, o século XVII, com seus pensadores Galileu, Newton, Descartes, Locke e Bacon, dará as bases da medicina moderna, “a separação entre a mente e a matéria, sendo o valor inerente apenas à mente; a separação entre o sujeito e o objeto e a redução de fenômenos complexos aos seus componentes mais simples” (McWHINNEY, in: STEWART e cols, 2010, p. 35-48). Um novo método será necessário para suplantar esse, que McWhinney chama de moderno, um modelo que “não deve apenas restaurar o ideal hipocrático da amizade entre o médico e a pessoa, mas tornar possível uma medicina que possa ver a doença como uma expressão de alguém com uma natureza moral, uma vida interior e uma história de vida única: uma medicina que possa curar por meio de uma terapia da palavra e de uma terapia do corpo” (in: STEWART e cols, 2010, p. 35-48). O método clínico centrado na pessoa, desenvolvido por esse grupo de médicos de família e comunidade que atuam no Canadá apresenta seis componentes que, de acordo com os autores serve como um guia para ajudar a desenvolver a consulta, são eles: 1. Explorando a doença e a experiência da doença; 2. Entendendo a pessoa como um todo; 3. Elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas; 4. Incorporando prevenção e promoção de saúde; 5. Intensificando o relacionamento entre pessoa e médico; 6. Sendo realista. De um outro modo, mas que se aproxima do grupo de estudiosos canadenses, Pendleton e cols (2011) exploram o tema da RMP e das habilidades de comunicação. Ao trabalhar o contexto da consulta, o entendimento do paciente, o entendimento do médico e, por fim, o entendimento da própria consulta; os autores fornecem dicas e tarefas para melhorar a atuação dos profissionais de saúde. Há um reconhecimento, por parte desses autores, que trabalham em Oxford, Inglaterra, quanto à influência do grupo de Ontário, Canadá, em seu trabalho: Trabalhamos independentemente durante a mesma época com nosso grupo em Oxford, mas as duas equipes se alegram em reconhecer a grande quantidade de pontos em comum que há entre nós. O livro que publicaram [o do Método Clínico Centrado na Pessoa, 2010] é um relato imporessionante de um conjuno coerente de pesquisas e avanços pedagógicos e tem exercido 134 grande influência internacionalmente. (PENDLETON e cols 2011, p. 61) Ambos os grupos, no entanto, dizem ser devedores de Balint (2005), psicanalista de origem húngara que desenvolveu longo e profícuo trabalho com os general practitioners britânicos. Balint (2005) não chega a desenvolver um método ou algo muito prático. Em seu livro O médico, seu paciente e a doença analisa diferentes aspectos da RMP, utilizando sua base teórica que é psicanalítica, a partir de situações concretas relatadas por esses médicos nos encontros semanais que realizou por mais de 20 anos na clínica Tavistock, em Londres. Balint (2005) não chega a fazer uma análise histórica da RMP e atém-se aos aspectos do que chama “abordagem psicológica” das consultas. Percebe o imenso e desprezado potencial da implicação da RMP no desfecho desses encontros. Ao relatar o que considera inadequado na performance dos médicos oferece alternativas para lidar com esses casos. Enfatiza a importância da escuta, de entender melhor o contexto do sofrimento antes de oferecer apoio ou conselho, de vigiar as próprias emoções pois podem oferecer a resposta para a angústia do paciente, entre outras dicas. Da Catalunha-Espanha, há ainda o trabalho de Francesc Borrell i Carrió (2004) e o manual intitulado “Entrevista Clínica: Manual de Estrategias Prácticas”, lançado pela primeira vez em 1989 e reeditado em 2004. O autor não utiliza o conceito amplo de abordagem centrada na pessoa, apenas o cita em determinada parte como um método que aplicado e estudado desde a década de 1980 tem apresentado vantagens e desvantagens (BORREL i CARRIÓ, 2004, p. 22-23). Em seu manual o autor lança mão de um modelo chamado de emotivo-racional que, segundo explica, é um modelo: que entende a entrevista como um cruzamento de emoções e cognições, com uma fase de tensão (não sabemos) e relaxamento (resolvemos a entrevista). O profissional deve, em primeiro lugar, estabelecer o que se pretende dela (enquadre) e verificar umas primeiras hipóteses antecipadamente, com a ideia de aplicar umas condições de suficiência e resolver a entrevista: (“já sei o que se passa/já sei o que devo fazer”). Segundo este modelo, a grande dificuldade está em reenquadrar a entrevista (“vou por mau caminho”), e demorar sua resolução até 135 reprocesssar as condições de suficiência. (BORREL i CARRIÓ, 2004, p. 341) Borrel i Carrió (2004) parece trazer uma racionalidade mais objetiva para seu manual ao empregar uma série de exemplos concretos da prática do MFC e de antecipar um rol mais ou menos definido de possibilidades de resposta, emocionais e racionais, para as situações com que o profissional se depara. Desde aí teremos encontros em que o paciente “se apresenta com agressividade latente‟‟, o que “chega com expectativa de curações milagrosas”, ou o “imaturo que está cansado de sua enfermidade”, aquele “que acaba de perder um familiar ou alguém próximo”, entre outras situações. Do mesmo modo, haverá exemplos que se dirigem ao profissional de saúde como “quando escutar nos dói”, ou como lidar com “acompanhante invasivo”, ou das próprias dificuldades em lidar com “pacientes polidemandantes” ou em dar o “salto para o psicossocial”. Encontraremos o mesmo tema, da relação médico-paciente, trabalhado a partir de outro enfoque em estudos da sociologia. Nos últimos 40 anos cresce a idéia de uma relação médico-paciente menos autoritária, mais comunicativa e transparente e preocupada com a abordagem dos aspectos emocionais, que sintetizamos acima no termo medicina-centrada-na-pessoa, mas que como vimos pode ser apresentada também desde outros conceitos e racionalidades por parte dos estudiosos do tema. Para Willians & Calnan (1996) essa forma de diálogo com os pacientes deve-se a uma maior reflexividade institucional na modernidade tardia, a partir do trabalho de Giddens (2002), que fala do papel dos especialistas e dos consultores dessa fase da modernidade, que ajudam as pessoas a tomar suas decisões sobre os mais variados temas e, dentre eles, estariam os médicos. Willians & Calnan (1996) contrapõem essa relação mais aberta à antiga, centradana-doença e paternalista, como um exemplo de que não existe atualmente uma medicalização como previam os autores da década de 1960, em que os indivíduos seriam controlados pelas instituições, especialmente o estado. Por outro lado, May e cols (2006), fazem uma leitura mais ácida dessa mudança de postura dos médicos em relação aos pacientes. Ao associar a abordagem centrada na pessoa à medicina baseada em evidências (MBE) sugerem que se trata de um mesmo projeto de tecnogovernança. Para os autores, “a mudança de um modelo médicocentrado paternalístico (...) para um aparentemente mais democrático encontro centrado no paciente envolve a reconfiguração de ideias sobre 136 qual é o trabalho do encontro clínico” (MAY e cols, 2006, p. 1024). A crítica dos autores se aprofunda e volta-se para Balint, que como dizíamos é uma das bases dessa guinada na consulta médica: O paciente ainda é requerido para formar uma narrativa da experiência da doença, enquanto o médico traduz-na em modelos patológicos. Ao ponto em que a prática geral [do médico generalista], sob a influência de Balint e de seus seguidores, passa ao lado do modelo biomédico reducionista, para reclamar uma sensibilidade psicoterapêutica para a consulta, e a possibilidade de uma aliança terapêutica (MAY e cols, 2006, p. 1024). O problema, segundo May e cols é que para esse novo modelo precisam ser desenvolvidas novas habilidades e a relação entre médico e paciente passa a ser concebida como um “problema técnico de prática” (2006, p. 1024). E, complementam, “essas ferramentas podem ser identificadas, estudadas e auditadas – diagnosticadas, inclusive – por meio do uso de instrumentos observacionais (...). Central aqui é a mensuração quantitativa de comportamentos e interações encontradas na RMP” (MAY e cols, 2006, p. 1024). Para os autores, há ainda o apoio institucional, no caso de serviços nacionais de saúde (citam o exemplo do National Health System britânico), para que os profissionais se adaptem a esse novo modelo, já que implicaria em aumento da satisfação dos pacientes e melhora da saúde. E afirmam: “O ponto que é central aqui é a sensação de que o encontro clínico foi reenquadrado como um set de negociações de narrativas paciente-centradas, a ponto de a presença dessas negociações assumirem um grau de autoridade epistemológica na história do paciente” (MAY e cols, 2006, p. 1025). A relação entre a abordagem centrada na pessoa e a medicina baseada em evidências (MBE) surgirá, para May e cols (2006), da facilidade que esta última traz no momento de negociação e de escolha das opções de tratamento ou de investigação, “a MBE é um tipo de resposta institucional a isso, porque torna explícito o conhecimento, que forma um ponto de partida para as decisões sobre manejo e tratamento”. May e cols (2006) parecem se preocupar com duas situações, a primeira delas seria a excessiva racionalização e quantificação da performance do médico na RMP. O que de fato pode ser encontrado em algumas pesquisas, como as que avaliam condutas mais ou menos pacientecentradas ou a proporção de tempo que cada profissional utiliza para 137 escutar, para uma abordagem negociada, olhando nos olhos, etc. (ROTER, 2008; RABINOWITZ e cols., 2004). Apesar de haver uma série de estudos e publicações que caminham para esse lado, há muitos outros autores, como o próprio Balint e McWhinney, que ou condenam ou relativizam a utilização de métodos de entrevista ou fórmulas prontas para o encontro entre médico e paciente. Balint (2005), por exemplo, será um dos primeiros a condenar qualquer tentativa de utilização de ensaios clínicos sistematizados para o que chama de problemas psicológicos. O outro ponto trazido por May e cols (2006) parece mais difícil de abordar, que é o de que a prática de uma medicina centrada na pessoa de modo geral faria parte de uma espécie de tecnogovernança. Nesse caso, o medico se transformaria em um gestor que como um administrador observa esse paciente como um exemplo que ilustra variáveis maiores e trata-se de gerir esse corpo de acordo com normas já estabelecidas para casos semelhantes sem importar-se muito com as peculiaridades desse em concreto. Se May e cols (2006) procuram fazer uma abordagem contextual das recentes mudanças na RMP, podem ter deixado de lado em demasia os aspectos simbólicos e psicológicos que o encontro entre médico e paciente e, de modo mais amplo, entre curandeiro e demandante sempre têm e tiveram, independentemente do tipo de abordagem realizada. Para Levi-Strauss (2008, p. 213), há uma semelhança na eficácia simbólica da cura xamânica e das terapêuticas psicológicas como a psicanálise e uma distância em relação à “nossa medicina orgânica”. Ele diz em certo trecho: A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. (...) A paciente, tendo compreendido, faz mais do que resignar-se, ela fica curada. Nada de comparável ocorre com nossos doentes quando se lhes explica a causa de seus problemas invocando secreções, micróbios e vírus. (...) a relação entre micróbio e doença é externa ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito, ao passo que a relação entre monstro e 138 doença é interna a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente, é uma relação entre símbolo e coisa simbolizada, ou, como dizem os linguistas, entre significante e significado. Nesse sentido, a abordagem centrada na pessoa ao abrir a consulta para aspectos mais subjetivos dá um passo em direção ao pouco conhecido, o que certamente mobilizará maiores transferências (para usar um termo da psicanálise) na RMP. Balint (2005) dirá que o médico deve estar preparado para, na abordagem psicológica, trilhar um caminho em que não há causa e efeito como o que conhece das ciências biológicas. E os autores citados, que tratam da abordagem centrada na pessoa de modo mais pragmático não chegam a aprofundar em seus textos o como lidar com as demandas subjetivas que surgem nas consultas, talvez Balint tenha sido o único mesmo a comunicar-se com médicos de modo mais profundo sobre esse tema. O que me parece é que há uma diferença acentuada entre a abordagem médica tradicional, aquela que ainda é a mais utilizada na maioria das faculdades médicas e que se centra nos sinais físicos da doença (o olhar clínico), e a que tem sido chamada de centrada na pessoa. E por mais que haja uma técnica a ser desenvolvida e aperfeiçoada nessa nova comunicação entre médicos e pacientes, ela sempre se abre para algo que é contingente, que é o encontro de subjetividades. Ou como nos diz John Berger (2008, p. 79) que na década de 1960 acompanhou o trabalho de um general practitioner (MFC) rural inglês: Na enfermidade se rompem muitas conexões. A enfermidade separa e fomenta uma forma distorcida e fragmentada da identidade. O que faz o médico, por meio de sua relação com o enfermo e dessa intimidade peculiar que se lhe permite, é compensar a ruptura dessas conexões e reafirmar o conteúdo social da identidade quebrantada do paciente. Mas vejamos agora, como essa discussão mais teórica pode nos ajudar a debater algumas situações da observação de campo que, como já disse, serão divididas em quatro cenários: o da luta, o da dança, do sagrado e do profano. 4.3 A LUTA 139 Giovana, de vinte e poucos anos, consulta com a Dra. Fabiana, ela comenta: “não sei se a Sra. viu também mas eu vi uma reportagem que falava pra fazer o exame da tireóide” e continua com uma uma série de perguntas para ver se algum de seus sintomas relaciona-se à sua tireóide, mas antes mesmo de terminar esse tema solicita também algum outro exame para avaliar sua dor de estômago. E a cada novo problema apresentado por Giovana, Fabiana parece sentir um golpe, aparenta desconforto, procura rebater seus pedidos apontando para situações da sua vida que pudessem, essas sim, ter a ver com seu mal-estar. O encontro fica tenso, Giovana percebe que não terá suas demandas atendidas e Fabiana que não conseguirá convencê-la de que os exames são desnecessários. Enquanto acompanhava consultas como essas nos C.S., não foram poucas as vezes em que me lembrei do famoso livro de Norman Mailer, A Luta, que trata do grande desafio de boxe ocorrido nos anos 1970 entre Muhamad Ali e George Foreman. Mailer acompanhou os detalhes que antecederam o grande embate, a preparação dos boxeadores, a divulgação nos meios de comunicação, a agitação política em torno da figura de Ali e, por fim, a luta. Uma das coisas que me chamou a atenção, além da brilhante narrativa de Mailer, foi a ideia de que o boxeador não existe sozinho, sua existência é condicionada ao encontro com o outro no ringue. Sozinhos eles gastam a maior parte do tempo, preparando-se, e quando têm um combate agendado passam a treinar em função do oponente, antecipando estratégias para derrubá-lo, mas sua existência está condicionada a esse encontro em que ambos tentarão terminar o mais rápido possível, a seu favor. Provavelmente não se trata da metáfora mais apropriada, a de comparar uma luta entre dois boxeadores ao encontro entre médico e paciente. A relação entre os boxeadores é simétrica, por maiores que sejam as diferenças técnicas e físicas entre eles, ambos se consideram boxeadores. A relação médico-paciente (RMP) é assimétrica, por mais que o MFC se esforce em se aproximar da vivência do sofrimento ou das necessidades daquele paciente, não poderá se colocar verdadeiramente em seu lugar. E por mais que o paciente se informe e estude sobre sua condição de saúde, sobre sua doença, sobre seus sintomas e necessidades, não terá a autoridade legal para prescrever medicamentos ou solicitar exames. Por isso, é essencialmente uma relação assimétrica, diferentemente da relação entre os boxeadores (MENENDEZ, 1979, p. 192). De todo modo ocorre uma disputa tensa e conflitiva, apesar de não poder ser uma luta franca por sua própria assimetria. O que parece haver é uma disputa por espaço entre o 140 detentor oficial do saber e do poder e aquele que busca conseguir o que considera melhor para si mesmo. De acordo com Lazaro e Gracia (in: ENTRALGO, 2003, p. 27-8) a relação clínica democrática, a que assistimos hoje, propicia um encontro mais horizontalizado se comparado com o modelo paternalista, hegemônico no mundo ocidental desde os clássicos, passando pelo medievo. De todo modo, os autores destacam que: “a relação não é perfeitamente simétrica, nem sequer horizontal (...). A decisão final resulta de um processo (às vezes longo e conflitivo) no qual se convergem e se ajustam a informação técnica que o médico proporciona com os desejos e valores pessoais do paciente (...)”. Esse espaço de ajuste parecia estar por detrás dos muitos encontros conflitivos a que assistimos. Para Entralgo (2003, p. 41): Até começo do século passado, só excepcionalmente apresentava problemas essa relação: quando o médico faltava às regras do jogo ou quando o doente, por uma razão ou outra, chegava a perder a confiança no homem que o atendia. Porém desde há algumas décadas, não parece exagerado dizer que as coisas mudaram, e que a normalidade mesma da relação entre o paciente e o médico possui, em uma ou outra medida, algum caráter conflitivo. Os confrontos a que assistimos em algumas consultas ocorrem não somente porque a demanda do paciente pode não encontrar respaldo na avaliação do médico, mas também porque o demandante se sente no direito hoje de ser atendido em suas solicitações. Um dos motivos mais frequentes de consulta médica hoje em dia é o check-up, ou exames preventivos. Pessoas de todas as idades vão aos centros de saúde com uma lista de exames que desejam realizar. Se o(a) médico(a) não concorda com esses pedidos, inicia-se a luta, franca ou disfarçada. Para o demandante vencer é conseguir convencer o médico a atender o seu pedido. Para o médico, ou para alguns médicos, vencer seria fazer com que o paciente saísse sem o exame e satisfeito. Para Entralgo (2003, p. 41-2) o conflito da RMP atual é predisposto por algumas condições: 1. A tecnificação extremada do diagnóstico e do tratamento – radiografias, exames laboratoriais, traçados gráficos, etc. – impedem 141 com frequência que entre o médico e o doente se estabeleça um contato suficientemente humano. 2. A prática da psicoterapia – ou, mais simplesmente, a relação terapêutica com a “pessoa” do doente – dá lugar em outros casos à produção de fenômenos de transferência, no sentido em que os psicanalistas usam essa palavra, e tais fenômenos são sempre ocasião de conflito. 3. A crescente socialização da assistência médica e sua consequente massificação despersonalizam com frequência a relação entre o médico e o doente, acentuam seu caráter contratual e limitam abusiva e perturbadoramente o tempo que aquele pode dedicar a este. 4. Ilustrado pelos recursos da chamada “cultura de massas” – na qual tanta importância tem a propaganda dos produtos farmacêuticos – o doente costuma intervir em seu tratamento, não poucas vezes em colisão com o médico. Como aponta Entralgo (2003), a possibilidade de uma luta é um fenômeno muito recente e significa, entre outras coisas, que passa a existir uma comunicação mais aberta e horizontal entre médicos e pacientes. O progressivo incremento dos direitos (e também dos deveres) dos cidadãos que se vê na modernidade guarda uma relação com o tema da comunicação entre médicos e pacientes. O que percebemos, no entanto, é que por trás de muitas das lutas ou encontros tensos a que assistimos está a ideia do direito de um consumidor que considera que aquela conduta ou que aqueles exames são um produto que o médico deve lhe oferecer. De acordo com Potter E Mckinlay (2005, p. 467), houve uma transição na década de 1970, em que a “metáfora do consumidor cínico suplantou a metáfora do paternalistmo”. Na metáfora do consumo a relação médico-paciente passaria a ser avaliada como uma “transação de mercado em que as preocupações econômicas dão a base para perceber o sucesso ou o fracasso do encontro”. Para Potter e Mckinlay (2005, p. 468), nesse modelo: O paciente tem consideravelmente maior poder de barganha que na metáfora paternalista. Sob a metáfora do consumidor, as decisões e ações dos médicos são influenciadas pelas preocupações e 142 reações, necessidades e desejos dos pacientes. Essas preocupações afastam os médicos das decisões unilaterais características dos modelos anteriores de Parsons e Bloom. A autonomia do paciente é um tópico importante nessa nova consulta, em que é maior o poder do consultante. Segundo Pendleton e cols (2011, p. 42), diversas pesquisas têm demonstrado que “o estilo de consulta que funciona mais efetivamente é aquele em que os pacientes são completamente envolvidos em todos os aspectos, inclusive no estabelecimento do diagnóstico e nas decisões sobre o manejo do problema”. Os meios de comunicação, como vimos no caso da Fernanda que baseia seu pedido de exames nas informações colhidas na TV, tem um papel importante nessa relação, mas é preciso relativizar a influência do global no local. Para Menendez (2002, p. 147-171), o mais importante é a ressignificação local do global, há que se ressaltar o valor dos líderes de opinião de uma comunidade e de como eles ressignificam a informação que estão vendo no mundo e de como traduzem para pessoas de sua influência. Muitas informações médicas ou sobre saúde divulgadas em todo o mundo chegarão ou produzirão um impacto diferente em cada país e, mais ainda, em cada região de um país. A forma como está organizado o sistema de saúde, a cultura médica, o senso comum sobre saúde e também a forma como cada família lida com as informações que recebe entram nesse jogo. De acordo com Pendleton e cols (2011, p. 22), “as consultas ocorrem em um contexto social e profissional mais amplo, que também dá forma ao sistema dominante de cuidado à saúde”. E complementam: “a mais profunda influência da sociedade nas consultas talvez seja a própria estrutura do sistema de atenção à saúde.” E no Brasil essas constricções externas seguramente influenciam o desenrolar da cena no consultório. As características sociais das pessoas que frequentam o sistema público, notadamente, as classes mais baixas, e o perfil dos profissionais que ai trabalham, assim como a forma como são contratados são alguns exemplos. O status do especialista em relação ao generalista é maior em praticamente todo o mundo, mas o Brasil parece sofrer uma influência maior dos EUA do que da Europa nesse aspecto, o que coloca o médico de família em uma situação bastante difícil. O frequentador do sistema público de saúde é bombardeado diariamente com más notícias sobre o seu funcionamento e com muita 143 publicidade sobre as maravilhas da medicina privada, que passa a ser seu sonho de consumo. Os próprios políticos e a grande maioria dos funcionários públicos utilizam o sistema privado e, na maioria das vezes, co-financiado pelo próprio estado. Todos esses fatores, como dizíamos, entram nas consultas que acompanhamos e no trabalho das mais de 30 mil equipes de saúde da família brasileiras. Portanto, muitas das lutas a que assistimos e que eu mesmo vivencio como médico de família que atua no sistema público são germinadas a partir desse solo. Mas se pudessem ser neutralizados esses fatores, ainda assim haveria alguma tensão. Esse tensionamento próprio do encontro MFC-paciente é muito discutido por autores que trabalham o tema da comunicação clínica. Uma das formas de abordá-lo é por meio da ideia de distintas agendas, a agenda do médico ou profissional de saúde e a agenda do paciente. E aí teremos muitos autores que trabalham esse tema de modos distintos, como diz Pendleton (2011, p. 16-17): Por muitos anos a crença colocou em contraste as crenças dos pacientes e o conhecimento médico. (...) Para nós, a consulta é um encontro entre pessoas em que cada uma, em geral, tenta influenciar a outra de alguma forma. (...) cada uma tem ideias e crenças, sentimentos e motivos, valores e necessidades que traz para a consulta. Logo, para nós, o conceito principal para ambos, médico e paciente, é Entendimento: o resultado da aprendizagem formal e informal, da socialização geral e profissional, e da criação e experiência do indivíduo. É uma mistura de cognição e afeto: os pensamentos e sentimentos que determinam como o médico e o paciente se orientam para a consulta e que ajudam a dar forma a seu conteúdo. E esse entendimento mútuo, mas principalmente do médico em relação ao paciente, não é uma tarefa fácil. Uma das dificuldades adicionais na comunicação entre médicos e pacientes no Brasil é a diferença cultural das classes sociais a que pertencem, o que de acordo com Pendleton e cols (2011, p. 53-4) faz com que não possam facilmente “usar as próprias experiências para prever as experiências do outro”. E, ainda, citam outros fatores não relacionados ao paciente e que interferem no encontro: o ambiente físico, as tarefas administrativas 144 (que envolvem a fila de espera, o tempo de consulta, a forma de registro) e o humor e a saúde do médico (PENDLETON e cols., 2011, p. 53-4). Se a luta ou a disputa de agendas é frequente na consulta médica, muito mais raras são as situações em que os pacientes resolvem processar o profissional de saúde. De acordo com Pendleton e cols (2011, p. 44), “nem todos os eventos adversos resultam em processos, e nem todos os processos envolvem eventos adversos”. O que se lê em pesquisas sobre o tema é que a maioria dos processos de pacientes contra médicos deve-se a problemas na relação médico-paciente. 4.4 A DANÇA Em muitas ocasiões, observar uma consulta médica é como observar um casal dançando, há uma música no ar que parece levar os dois na mesma toada, às vezes com um tropeço aqui e outro ali, mas o que impera é uma vontade de um e de outro de que aqueles minutos transcorram da melhor maneira possível. Empatia, afeto, respeito, confiança, transferência e contratransferência são algumas das palavras-chave utilizadas para explicar consultas como essas. A situação que nos pareceu a que mais comumente levava a uma dança é a daquela consulta entre um médico ou médica jovem e um senhor ou uma senhora de idade. Nesse caso, a mútua identificação entre avô ou avó e neto ou neta parece pautar o andamento da consulta. Entre pacientes e médicos jovens ou de meia-idade costuma depender muito de encontros anteriores e do efeito que provocaram. Uma demanda que foi bem resolvida da outra vez pode ser o suficiente para gerar um clima de confiança e de respeito para muitas outras consultas. No caso de Mario, de 40 e poucos anos, o que faz com que ele e o Dr. Bernardo já iniciem a consulta dançando é o tema de sua moderna cadeira de rodas. Mario foi acometido por uma paraplegia espástica familiar há aproximadamente 15 anos e, desde então, vêm lidando com as limitações impostas por essa doença. Ao ser chamado por Bernardo, ele entra com uma cadeira de rodas nova, motorizada, na qual parece se integrar à perfeição. Ele entra rapidamente, movimenta-se com facilidade pelos caminhos estreitos e tortuosos da sala de espera e do consultório: 145 Bernardo – Em vez do carro poderia ter algo assim, atracado ao corpo e você ir com velocidade, se não tivessem os carros. Mario – O que vai ter, você viu o Fantástico, o peixe, o que o cardume do peixe faz, um não bate no outro né? No futuro vai ter um carro que senta e nem dirige, ele vai sozinho, com sensores, pequeno, pra uma pessoa, dá o endereço e ele vai sozinho. Bernardo – Julio Verne quando fazia aquelas coisas então... Mario – é, e todo mundo achando que ele era louco. Mario diz ter vindo não para uma consulta mas por questões burocráticas, precisa de notificação por acidente de trabalho. O tema é delicado, porque envolve alguns conflitos sobre de quem seria a responsabilidade por preencher o laudo, se o médico do trabalho ou outro, etc. Mas nada abalará o relacionamento bastante afetuoso e até amistoso que iniciou com a história da cadeira. A narrativa interessante de Mário sobre como vê seus problemas de saúde serviria ainda como combustível para um encantamento do Bernardo ao escutá-lo e, claro, essa sinalização é percebida por Mário, que se empolga ainda mais com seus relatos. Quando eu tive a primeira crise [de falta de ar] que eu pensei que eu ia passar para o outro lado, eu tava tentando dormir, meia-noite, uma da manhã e começou a faltar ar. Pleno inverno, há uns 2 anos atrás. Eu sentei na cama e não conseguia respirar, não conseguia falar, fiz sinal pro ventilador e a mulher entendeu a jogada. Eu tirei a roupa inteira no frio, pra tentar sentir o ar e... (respira profundamente) quando eu achei assim, eu brinco quando eu falo, eu cheguei a rir na hora, tá na minha hora! eu relaxei e o ar entrou. Não tava na minha hora. A crise de falta-de-ar de Mário o leva a uma pneumologista e a uma série de espirometrias. Bernardo parece muito entretido com o relato de Mario sobre como ele aprendeu a enganar a espirometria. Diz ele que na terceira vez que fez o exame, mesmo sem a ação de medicamentos para asma, conseguiu relaxar e executar a prova de tal 146 modo, adaptando-se ao jeito da máquina, que o resultado foi excelente. A narrativa de superação das suas limitações e dificuldades e de como consegue ir além dos prognósticos estabelecidos pela medicina se enriquece ainda mais com a história do neurologista que o atendeu e lhe deu a seguinte previsão: Vocês conhecem o médico João? (...) Eu o consultei há 12, 13 anos atrás. Ele chegou, me atendeu, estava com uma mulher do lado, médica também. Ele me atendeu e tal, fez os exames em mim, começou a falar sobre a doença [a paralisia] falou deu isso deu aquilo e tal. E aí chegou a hora de eu me vestir lá atrás, quando fui me trocar, eu ouvi ele dizer que ia dar uns 3, 4 anos e eu pararia total. Uns 3, 4 anos com o pouco exame que ele fez em mim! Quando eu cheguei na mesa, ele falou, é, deu isso, deu aquilo e tal. Bom, eu disse pra ele, como eu tenho um ouvido bom, eu ouvi o que tu falou, só que eu te prometo que eu não bato [as botas]. Eu tô ganhando tempo, eu sou teimoso que dói. Pra terminar a consulta, aponta para sua cadeira e nos diz: “e aí, vai comprar a cadeirinha pra usar aqui dentro agora? Já pensou o médico aqui, cadeirinha pra cá, cadeirinha pra lá no posto de saúde?” E seguem os dois falando dos diferentes tipos de cadeira e de suas vantagens em relação a todos os outros meios de transporte. 4.5 A CONSULTA SAGRADA Dr. Bernardo, novamente ele, chama agora Natália, uma jovem de 30 e poucos anos. Faz frio, mês de junho, enquanto ele acessa o prontuário dela no computador, ela aguarda retraída na cadeira em frente. Logo em seguida começa a lacrimejar e chora, e depois chora mais forte, copiosamente. Bernardo observa em silêncio por um tempo, depois pergunta, “o que houve?” E Natália diz: Me deu um nervoso, ansiosa... É que me perguntaram se tenho filho agora ali fora e... uma vez que eu vim aqui, lembrei agora, ele tinha alergia do leite, e foi quando me separei do meu marido. Nem vim por isso, vim por causa da minha gripe. Foi na hora assim que eu liguei uma coisa com a outra. Por que ele tá com 14 anos, na 147 fase que ele tá não é fácil, ansiedade, preocupação, tá numa fase malcriada, dá preocupação. Medo de que aconteça coisas sem esperar, cair na droga, preocupação de mãe, às vezes não consigo dormir pensando nisso. Eu sou muito agressiva com ele, fico alterada, quero fazer o bem e eu prendo demais. Não sei. (pausa longa) O que eu tô falando aqui foi uma coisa que veio de repente e desabafou, na hora queria conversar com alguém e não sabia com quem, e veio e explodiu aqui, mas tava incomodando, aí veio a gripe e aí eu me acalmei mais, fiquei calma eu acho e aí aconteceu isso. Será difícil reconstruir o caminho que levou, e quais fatores ajudaram, Natália a se abrir dessa forma e de repente. Bernardo não chegou a perguntar nada de especial antes de que ela começasse a chorar e os dois tampouco se conheciam tão profundamente que pudesse justificar essa abertura. Talvez o fato de recebê-la na porta, de ter dado espaço (ao fazer silêncio enquanto entrava no prontuário eletrônico), de ter sido empático ou acolhedor. Ou, como a própria Natalia disse, poderia ter sido toda a cascata de pensamentos que teve a partir de uma conversa na recepção e de muitas rememorações, e o ambiente do Centro de Saúde não lhe teria sido suficientemente aversivo para que a impedisse de chorar. Enfim, não chegaremos tão facilmente a alguma conclusão a esse respeito. Mas o que parece importante é que em momentos como esse, que pude presenciar desde a faculdade e nessa pesquisa e rotineiramente em minha prática, o encontro parece ganhar uma conotação diferente. O que vale a pena destacar aqui é que não se trata tão somente da reação catártica e das emoções que sente o paciente, o que já é estudado há muitos anos pela medicina, basta ver o que já se publicou sobre a histeria, p. ex. É necessário haver também uma mobilização emotiva do profissional que atende, o que não quer dizer uma saída da postura de terapeuta, mas viver uma sensação inesperada. Gervas (2009, p. 42), que trabalhou muitos anos como médico generalista em uma área rural da Espanha, escreveu um texto especificamente sobre os encontros sagrados, em que dirá: O paciente confia em seu médico, e expõe sua pele e sua alma em uns minutos de entrevista. O médico tem o consentimento tácito para explorar o campo aberto e ir mais além da superfície 148 corporal e do brilho espiritual. O que poucas vezes se revela, o que quase nunca se diz em outros contextos, é o conteúdo habitual do consultório médico. Da enfermidade sexual às misérias econômicas, do luto à dor ameaçadora, do desemprego à vertigem, da gravidez à morte, nada é alheio ao consultório do médico de cabecera. Por isso o ato clínico é sempre sagrado. Apesar de destacar a importância de qualquer encontro clínico, Gervas (2009, p. 42) nos dirá que “há consultas mais sagradas que outras”, em que o médico se depara com “situações, são pacientes, são problemas que exigem um respeito requintado, máximo”. Nesses encontros, para Gervas, destaca-se ainda mais a comunicação entre médico e paciente e esse respeito se transmite por “gestos, pela atitude geral, pela cadência do ritual, por uma concentração serena, pela empatia generosa. Trata-se de conseguir que a consulta sagrada pareça desenvolver-se em uma cápsula situada em um lugar sem tempo nem espaço, desenhada somente para a escuta” Ao falar das consultas sagradas, Gervas (2009, p. 43) nos remete ao tema da ciência e da arte: “ser médico geral ou de família não é fácil. É uma arte, pois é difícil manter um equilíbrio que não rompa a distância terapêutica nem confunda bom trato com amizade. É uma arte, também, combinar apropriadamente a consulta sagrada com as consultas habituais, sem que os tempos se ressintam em demasia. Convém combinar ciência e arte.” Ao valorizar um médico com essas habilidades ou com essa sensibilidade, Gervas procura destacar um papel especial para esse profissional na sociedade, talvez do mesmo modo que Mauss (2003, p. 68) define os mágicos como possuídores de uma situação social anormal, “uma condição distinta no interior da sociedade que os trata como mágicos”. Para Balint e Norell (1973), há três tipos de entrevista entre médico e paciente, a tradicional, que está centrada na doença; a do tipo detetive, que no exemplo que dá seria centrada-na-pessoa; e, finalmente, a entrevista flash, que de acordo com os autores seria: Ela voltou ainda mais deprimida, e o médico disse, "Minha cara, precisamos tentar de novo", dito o que a paciente explodiu num choro. A imediata reação do médico foi pensar que ela pa- 149 recia ridícula chorando com aquele chapéu que estava usando. Este pensamento o chocou, pois gostava de pensar de si mesmo como sendo simpático aos pacientes - mas percebeu de imediato que a paciente talvez tornasse as outras pessoas pouco simpáticas para si do mesmo modo. Ela começou se desculpando pelas lágrimas, mas ficou surpresa quando o médico se desculpou por sua vez, lamentando que não a fizesse sentir que podia chorar diante de si. Ela sentiu de imediato o novo relacionamento que este intercâmbio estabeleceu, e compreendeu o que o médico queria dizer quando este sugeriu que talvez ela estivesse mantendo as pessoas à distância graças às maneiras duras e inflexíveis. Ele referiu-se ao chapéu, que era algo terrivelmente elaborado, e a paciente aceitou a coisa com interesse e bom humor. Por fim, ela foi capaz de concordar que sua queixa inicial de sentir-se fria poderia dever-se ao fato de não haver ninguém que a aquecesse, mas que suas maneiras rígidas escondiam tal necessidade das outras pessoas. Várias tensões podem surgir com esse tema do flash ou do sagrado na RMP. Como profissionais que trabalham cotidianamente com uma racionalidade bastante objetiva lidam com essas situações ou explicam-na? De que tipo de conhecimento se trata se é tão pouco demarcável e previsível? O conceito de transferência e contratransferência da psicanálise abarcam-no suficientemente? Enfim, tanto as situações que observei em campo, quanto o relato de Balint suscitam inúmeras questões que merecem alguma discussão no que segue. Um conceito que pode nos ajudar é o de magia, que Mauss (2003, p. 174-5) aborda aprofundadamente, para ele não é tarefa simples situar a mágica ou a magia em relação à religião, à arte e às ciências, mas a define como um fenômeno social. Para o autor, “algumas técnicas de objeto complexo e de ação incerta, de métodos delicados, como a farmácia, a medicina, a cirurgia, a metalurgia, a arte de esmaltar (as duas últimas são herdeiras da alquimia), não teriam podido viver se a magia não lhes tivesse dado seu apoio e, para fazê-las durar, se não as tivesse mais ou menos absorvido.” E termina, “para nós, as técnicas são como germes que frutificaram no terreno da magia, para depois desapossá-la”. Mauss (2003, p. 175) prossegue: 150 A magia liga-se às ciências, do mesmo modo que às técnicas. Ela não é apenas uma arte técnica, é também um tesouro de ideias. Dá uma importância extrema ao conhecimento, e este é um de seus principais recursos. Com efeito, vimos várias vezes que, para ela, saber é poder. Mas enquanto a religião, por seus elementos intelectuais, tende para a metafísica, a magia, que descrevemos mais apaixonada pelo concreto, dedica-se a conhecer a natureza. Para Mauss (2003, p. 176), “A magia alimentou a ciência e os mágicos forneceram os cientistas”. Portanto, em vez de utilizar a categoria sagrado para definir esses encontros, ao modo de Gervas, é provável que Mauss (2003, p. 56-7) utilizasse o termo mágico: Outras artes são, por assim dizer, completamente capturadas pela magia. Tais são a medicina, a alquimia; durante muito tempo, o elemento técnico foi aí o mais reduzido possível, a magia as domina; dependem dela a ponto de parecerem ter se desenvolvido no interior da magia. O ato médico não apenas permaneceu, quase até nossos dias, cercado de prescrições religiosas e mágicas, preces, encantamentos, precauções astrológicas, mas também as drogas, as dietas do médico, os passes do cirurgião, são um verdadeiro tecido de simbolismos, de simpatias, de homeopatias, de antipatias e, de fato, são concebidos como mágicos. A eficácia dos ritos e da arte não são distinguidas, mas claramente pensadas em conjunto. Para Mauss (2003), o encontro entre médico e paciente, ainda hoje, é um ritual feito de ritos ao mesmo tempo mágicos e técnicos. No rito se destaca a parte técnica, em que o efeito é concebido como tendo sido produzido mecanicamente: “numa prática médica, as palavras, os encantamentos, as observâncias rituais ou astrológicas são mágicas; é aí que jazem as forças ocultas, os espíritos, e que reina todo um mundo de ideias que faz que os movimentos, os gestos rituais, sejam reputados detentores de uma eficácia muito especial, diferente de sua eficácia mecânica” (MAUSS, 2003, p. 57). Para o autor, ainda: 151 os ritos médicos, por mais que sejam representados como úteis e lícitos, não contêm nem a mesma solenidade, nem o mesmo sentimento do dever cumprido que um sacrifício expiatório ou um voto feitos a uma divindade curativa. Há necessidade, e não obrigação moral, no recurso ao médico-feiticeiro, ao proprietário de fetiche ou de espírito, ao curandeiro, ao mágico” (MAUSS, 2003, p. 60). De acordo com DaMatta (1987, p. 141), não se pode falar de um fim da magia, mas de um deslocamento dela para outras áreas, “está em zonas marginas muito críticas, onde o sistema ainda luta com o significado moral e social de tudo o que produz e de tudo o que não marcha muito bem”. Para ele (1987), no momento em que o que ocupa o centro dos espaços de legitimidade social é o indivíduo consumidor, cabe à magia aqueles destinados à fantasia, à inconsequência, “a tudo que situamos muitas vezes com extremo desdém no domínio do estético”. E assim, parece que o tema da relação médico-paciente vacila entre a técnica e a magia. 4.6 A CONSULTA PROFANA Muitos encontros vividos por mim como médico e presenciados como pesquisador são bastante protocolares, não parecem diferentes de uma consulta com um agente bancário ou de uma visita a um cartório. A grande diferença nesse caso é que parece não haver espaço para o inesperado, é o senhor que vem apenas para renovar uma receita de medicamentos para a hipertensão, a gestante ou a criança em uma consulta de rotina em que não apresentam demandas adicionais. Ocorre também quando procuram para trazer resultados de exames de rotina e não há maiores comentários a se fazer. São situações que mobilizam muito pouco tanto o médico como o paciente e parecem ser um refresco, um descanso, na pesada rotina de demandas difíceis e complexas. Por outro lado, esses encontros também podem passar a sensação de que esse é um trabalho menor, que poderia ser feito por outros profissionais ou para o qual não precisaria haver uma formação tão longa. A tensão que parece haver aqui e que talvez mereça alguma reflexão é a do balanço entre arte e ciência, criatividade e padronização, liberdade e rigidez. Se há pouco falávamos das consultas sagradas e de 152 sua singularidade, aqui se trata do oposto, do que é protocolar, da pergunta e da resposta já esperadas, da robotização que de algum modo parece ocupar um espaço cada vez maior na prática médica atual. Mesmo os casos de sofrimento, que estão carregados de biografias únicas e narrativas caóticas podem ser triturados e liquefeitos em uma substância uniforme e inteligível em qualquer canto do planeta, que são as entrevistas psiquiátricas padronizados, os diagnósticos e os protocolos de tratamento. E isso ocorre por muitos motivos, primeiro pela maior e mais fácil exposição que cada um de nós tem com um médico e com a medicina: os espanhóis, por exemplo, consultam em média 8 vezes ao ano e os ingleses entre 5 e 6 vezes. Outra razão pode ser a própria racionalidade médica, sua maneira de ser científica, que banaliza o encontro médico-paciente de duas formas: ao desvalorizar os efeitos da relação terapêutica quanto ao problema trazido pelo paciente; e por ser desprovida de explicações mágicas, herméticas, ao se abrir para a compreensão do público em geral e aproximar a linguagem de médicos e pacientes. A desvalorização da figura do médico nas últimas décadas também contribui para esse fenômeno, a exposição nos meios de comunicação de erros profissionais e crimes comuns cometidos por médicos, além da própria reclamação demasiado mundana da categoria por melhores salários e condições de trabalho retiram sua aura de especial. Outro fator que contribuiu para uma desritualização do encontro médico-paciente foi a era da especialização vivida especialmente a partir da segunda metade do século passado. Afinal, as pessoas passam a frequentar médicos por situações muito simples e pontuais que não geram grande apreensão, como ir ao oftalmologista para trocar as lentes dos seus óculos ou ao dermatologista para fazer um procedimento estético ou, ainda, por causa das consultas preventivas, de check-up, em que não há um sintoma, dor ou desconforto. Várias das consultas acompanhadas representavam o que acabei chamando de medicalização jurídica e que se refere àqueles encontros motivados não por algum desconforto do paciente, mas para lidar com situações trabalhistas, por exemplo. Todos os dias, muitos encontros são realizados entre médicos e pacientes para que sejam fornecidos atestados de doença, mais comumente para resfriados e gripes. O que ocorre é que o paciente sabe o que representa seus sintomas, sabe que não há muito o que fazer em relação a isso, mas como não se sente em condições de trabalhar busca o médico para que ele traduza em um atestado que, de fato, ele não se sente apto naquele dia. É uma situação 153 comum e que, fora a ansiedade do paciente por ter que passar pela burocracia de um atendimento no C.S. e do médico por ver sua sala de espera cheia com situações como essa, não chega a mobilizar muito nem um nem outro. Para Potter e Mckinlay (2005, p. 465), esse esvaziamento do mágico na RMP ocorre de modo mais amplo e profundo. Para os autores, “empregadores de médicos, companhias farmacêuticas e seguradoras com suas prescrições de protocolos de tratamento agora invadem a antes privada relação entre médicos e pacientes.” E continuam: “Conforme entramos no século 21, a interação médicopaciente torna-se crescentemente similar à „fugaz relação‟ entre um motorista de táxi e seu passageiro”. Sinal dessa mudança, para os autores, é a substituição dos termos paciente e médico, por provedor e cliente, o que refletiria a cada vez maior comercialização da medicina. Para os autores, o que chamam de fatores ambientais, que se referem à influência excessiva de reguladores externos da prática do médico interferem negativamente na RMP: no século 21, o âmbito da autoridade do médico está sendo infringido por entidades corporativas de saúde, o mercado de planos de saúde, o governo e trabalhadores de seguradoras sem formação médica que participam das decisões médicas. Comparado ao século 20 em que a RMP poderia ser caracterizada por profundidade e história, o século 21 tem uma RMP crescentemente caracterizada por superficialidade e focada no aqui e agora. Como pude observar na pesquisa de campo e também pela própria prática como MFC, talvez não haja espaço para tanto pessimismo em relação à RMP atual nem para tanto saudosismo em relação a do passado como declaram Potter e Mckinlay (2005). Talvez a principal característica da RMP, especialmente entre MFC e pacientes, ainda seja a da heterogeneidade e o que se vê sim, no século XXI, na prática do médico geral, se parece a um caleidoscópio, com a junção de fragmentos mal definidos da prática médica de diferentes momentos históricos. O que parece se destacar é a convivência de uma relação ora paternalista, ora bastante simétrica, ora passiva, ora conflitiva, ora sagrada, ora profana e que reverberará múltiplos significados para médico e paciente por algum tempo. Essa convivência talvez nos seja 154 melhor explicada pelo que tem sido chamado de pós-moderno ou modernidade tardia, por vários autores. 4.7 UM ENCONTRO E UMA CLÍNICA PÓS-MODERNAS? Mathers e Rowland já haviam considerado uma associação entre os valores atribuídos à pós-modernidade e a vivência do MFC, eles dizem (1997, p. 187): Felizmente, fica claro acima que os valores da teoria pós-moderna são aqueles da incerteza, muitas vozes diferentes e experiências de realidade, e descrições multifacetadas da „verdade‟. Isso, nos parece, mais próximo dos valores e da experiência da prática geral [MFC] que os „modernos‟ valores do racionalismo „científico‟. As diferentes situações vividas nas consultas que trouxemos acima e nos demais exemplos que circulam por toda a tese parecem mesmo demonstrar que esse espaço ocupado pela MFC e pelas pessoas que atende se abre para novas considerações sociológicas. Se como vimos antes, o clínico geral, figura importante na transição da prémodernidade para a modernidade, quase desaparece nas primeiras décadas do século passado, no auge da especialização médica e da fragmentação do conhecimento, o MFC surge na segunda metade carregando na mesma maleta: a medicina baseada em evidências, a valorização da RMP e a clínica de todas as idades. E não se trata somente da postura do MFC nessa fase da modernidade, mas de se analisar também o público que atende. Ao lidar com pessoas com perfis sociais muito distintos, o MFC que se abre para o encontro na consulta, convive intensamente com o que Velho (1980, p. 30-31) chamou de “extrema fragmentação e diferenciação de papéis e domínios” que dão à vida “contorno particular” na sociedade modernocontemporânea. Se a maioria das grandes áreas da medicina cresceu tendo como base as características da modernidade: do projeto, da hierarquia, do paradigma, da origem /causa, da determinação, da seleção, entre outras. A MFC convive com essa medicina, mas caminha para o pós-moderno ao abraçar (ou ser abraçada) o acaso, a indeterminação, a combinação, o mutante (HARVEY, 2006, p. 48). Para Bauman (1999, p. 289), a pós-modernidade é a: 155 modernidade que atinge a maioridade, a modernidade olhando-se a distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalisando-se, descobrindo as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade chegando a um acordo com a sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente. Não é difícil pensar em todas as mudanças que têm havido, por exemplo, nos currículos das faculdades de medicina e de outros cursos da saúde, no sentido de uma maior valorização da RMP, como uma inflexão da medicina moderna em relação ao próprio caminho que trilhava, da excessiva tecnologia e fragmentação do cuidado. Nesse sentido, a MFC pode representar para a medicina uma espécie de vanguarda, especialmente se permanecer atenta à voz que vem do seu espaço de prática. 156 Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então a outra pessoa punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando eu tomo calmante, eu não ouço o meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia. Clarice Lispector (trecho de A maçã no escuro) CAPÍTULO 5 - DO ENTORNO: SAÚDE MENTAL (SM), PSIQUIATRIA E ATENÇÃO PRIMÁRIA (APS), O SOFRIMENTO SOCIAL E SEUS LUGARES DE SABER-PODER Nesse capítulo o objetivo é descrever e discutir, especialmente a partir de algumas das observações da pesquisa de campo, como têm se estruturado instituições de saúde para atender os casos de sofrimento na Atenção Primária. Nesse espaço, a partir de alguns exemplos da pesquisa de campo, de documentos oficiais sobre a organização do sistema de saúde e de publicações da área, discutiremos o conceito de saúde mental e também como tem se dividido (ou se disputado) entre os diferentes profissionais de saúde o atendimento àqueles que chegam com diferentes formas e graus de sofrimento. A reorganização dos serviços de saúde mental e a fundação da APS em sistemas universais de saúde compartilham na origem um movimento político maior que foi o da reforma sanitária, mas que construíram nessas últimas três décadas seus próprios caminhos. Se há 30 anos ou mais as chamadas abrangentes por um estado de bem estar social, saúde para todos, acesso universal resumiam as principais demandas dos reformadores3 e congregava diferentes setores ligados à saúde, nos últimos anos com o avanço e consolidação do SUS aprofunda-se o debate em função de questões mais técnicas e práticas, do saber-fazer cotidiano, e como conseqüência aparecem mais claramente múltiplos e distintos entendimentos. É um pouco do que nos 3 Com o termo reformadores faço uma generalização, provavelmente inadequada, mas que não pretenderá aqui resumir uma pessoa em especial ou o pensamento de um partido, universidade ou qualquer grupo. Refiro-me a uma série de ideias e conceitos, relacionados a uma visão de mundo, que ajudou a construir o estado de bem estar social brasileiro e que permanece viva, de muitos modos, na organização do SUS. 157 fala esse documento do Ministério da Saúde (MS) brasileiro (2005, p. 6): O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo da eclosão do „movimento sanitário‟, nos anos 70, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Assim como a reforma psiquiátrica tem suas particularidades em relação ao movimento da reforma sanitária, da mesma forma ocorreu e ocorre com a organização da APS, que influenciada pelos modelos dos países da Europa ocidental, Cuba e Canadá também cria a partir da conjuntura política o seu híbrido brasileiro. Observar a experiência de outros países, como os que acabo de citar, em relação à criação de um sistema universal de saúde, à reforma psiquiátrica e à organização de uma APS, é interessante tanto pelas diferenças quanto pelas semelhanças, também bastante pronunciadas. Um dos temas mais discutidos, por exemplo, pela gestão da saúde na Catalunha-Espanha (local em que fiz meu estágio de doutorado) nos últimos anos não é diferente do que se tem discutido no Brasil, que é a aproximação das instituições denominadas de saúde mental das de APS, apesar de falarmos de sistemas de saúde com particularidades organizacionais e idades bem diferentes. O deslocamento de todos os tipos de demanda outrora exclusivamente hospitalares, a criação de uma nova demanda com o tema da prevenção e o intenso período de medicalização que vivemos (com mais e mais temas sendo traduzidos em linguagem médica ou de saúde) provocou um maior interesse de gestores, acadêmicos das ciências da saúde e das ciências sociais, e médicos de especialidades focais por aquilo que se faz e pelo que deveria ser feito na APS. Nesse capítulo procuraremos discutir esses entrecruzamentos de interesses, em última instância de disputas de saber-poder que se vê em torno do que tem se convencionado chamar saúde mental na APS. 158 O trabalho na APS, que já teremos apresentado mais detalhadamente em outro capítulo, tem como uma de suas principais características o fato de que os profissionais dessas equipes (que no Brasil envolve enfermeiro, médico, agente comunitário de saúde e técnicos de enfermagem) lidam com um determinado número de pessoas de uma comunidade circunscrita ao C.S. em que atendem. O fato de atender pessoas em diferentes situações de sua vida e por motivos variados dificulta, mesmo para os profissionais mais afeitos a sistematizações, a divisão das suas demandas em sub-campos, tais como saúde mental, saúde da criança, saúde da mulher ou qualquer outra. Essas divisões não estão tão presentes na rotina dos profissionais das equipes de APS, quanto nas instituições da atenção secundária ou terciária que prestam atendimentos fragmentados por especialidades, nas salas administrativas da gestão de saúde que também fracionam sua forma de trabalho e, por fim, na academia que por questões práticas costuma organizar do mesmo modo o seu método de ensino. Em relação ao que tem sido chamado de saúde mental na APS o que vemos é uma proliferação de textos, artigos, normativas, arranjos organizativos voltados para esse tema. E, claro, dependendo da origem apresentam leituras bastante distintas. Duas seriam as vertentes principais que influenciam hoje o trabalho na APS: textos dos próprios reformadores do movimento sanitário e da reforma psiquiátrica por um lado e, por outro, a influência exercida pela nova psiquiatria4 em uma aproximação com a APS. Uma terceira é o que tentaremos identificar no final desse capítulo, que é o que pensam os próprios MFC sobre esse conceito de saúde mental. Em duas das mais de 150 consultas em que estive no campo, em C.S., pude observar o encontro entre MFC e enfermeiro de uma das equipes de saúde da família com um psiquiatra e uma psicóloga da chamada equipe de matriciamento ou apoio matricial em saúde mental5. A partir desses dois encontros procuraremos desfiar a discussão que segue abordando os variados aspectos, políticos, científicos, culturais, organizacionais, que os envolvem. 4 Por Nova Psiquiatria denomino a Psiquiatria que se desenvolve a partir das últimas décadas, de base mais neuropsiquiátrica. 5 Arranjo estimulado pelo MS que visa “outorgar suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população” (Ministério da Saúde, 2003). Nesse modelo, em vez do MFC ou da equipe da APS encaminhar os casos que considera necessário para o psicólogo ou psiquiatra, estes vão regularmente ao CS interconsultas. 159 5.1 HONÓRIA CHEGA AO CENTRO DE SAÚDE. A SAÚDE MENTAL TAMBÉM. Honória é uma mulher de 50 anos que carrega sua desilusão amorosa e uma história de tentativas de suicídio até o Centro de Saúde Araucária para lá discutir seu sofrimento com o MFC (Bernardo), o psiquiatra (Egídio) e a psicóloga (Daniela) que faziam o chamado matriciamento, além deste pesquisador que registrava as falas e observava o drama. Compreender os caminhos que a levaram ao intento suicida é provavelmente mais difícil do que os que a trouxeram até aqui, ao C.S. e a uma pesquisa de Ciências Humanas. O arranjo que permitiu esse encontro de Honória e todos esses profissionais deriva a muita distância como já dizíamos da construção de um sistema universal de saúde, da organização de uma APS e, por outro lado, da desinstitucionalização da loucura que é conseqüência da reforma psiquiátrica. Há no Brasil, cada vez menos leitos de internação financiados pelo sistema público em hospitais psiquiátricos e mais aparelhos de atenção ambulatorial para esses casos, como o são os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Em todo o país e, como pudemos observar também em outros países como na Espanha, o que se discute são formas de apoio às equipes da APS que já atendiam e continuarão a atender a maioria dos casos. O município em que observamos as consultas é um dos que têm realizado esse matriciamento de forma mais ampla, continuada e homogênea entre todas as suas cinco regiões de saúde. Há várias curiosidades nesse encontro que pretendemos abordar. Esse arranjo do matriciamento é recente e influenciado por uma leitura sobre a temática que não é necessariamente compartilhada do mesmo modo pelos seus atores principais, MFC, psiquiatra, psicólogo e enfermeiro. Encontramos muitas referências recentes em autores das ciências sociais em saúde brasileira, mas também em experiências mais antigas, como a de Balint na Inglaterra do pós-guerra, que descrevem o encontro entre profissionais da APS e psiquiatras, psicanalistas ou psicólogos que servem como referência para casos específicos ou como suporte para discutir como lidar com determinadas situações. Esse encontro entre profissionais da área de saúde mental e os da APS é visto com bons olhos por vários autores, pelos motivos que nos apresentam, entre outros, Luchese e cols. (2009, p. 2034): Acreditamos que articulações entre PSF e atenção à saúde mental na lógica da Reforma Psiquiátrica podem ocorrer, uma vez que ambos 160 têm princípios e diretrizes que se convergem: a busca em romper com o modelo médico hegemônico, o desafio de tomar a família em sua dimensão sócio-cultural como objeto de atenção, de planejar e executar ações num determinado território, promover cidadania-participação comunitária, e constituir novas tecnologias para melhoria da qualidade de vida das pessoas. Assim como Luchese, vários autores vislumbram na APS e no PSF (Programa de Saúde da Família, agora rebatizado como Estratégia em Saúde da Família) um ideal (romântico) de práticas que envolveria o diálogo entre diversos profissionais de saúde em função da demanda de quem busca o serviço, a contextualização dessa demanda com a vida comunitária e familiar e que o contato com o serviço de saúde possa propiciar ao demandante uma vida cidadã e autônoma na seqüência. Para Figueiredo e Campos (2009), não apenas a autonomia do paciente é um objetivo final, mas também a das equipes da APS: “A partir de discussões clínicas conjuntas com as equipes ou mesmo intervenções conjuntas concretas (consultas, visitas domiciliares, entre outras), os profissionais de Saúde Mental podem contribuir para o aumento da capacidade resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção ampliada em saúde que contemple a totalidade da vida dos sujeitos.” Figueiredo e Campos (2009) nos situam ainda sobre o que representa o matriciamento em relação ao projeto da reforma psiquiátrica como um todo: Descentralizar a Saúde Mental para os territórios foi uma conquista cara à Reforma Psiquiátrica e consideramos necessário aprimorar esse modelo, vinculando cada vez mais a assistência com a análise e utilização do território e da rede social, a fim de desenvolver uma clínica implicada com a constituição de sujeitos mais saudáveis em sua afetividade e em suas relações sociais, e mais potentes para transformar a realidade. Honória já freqüentava a APS há bastante tempo, não consultava com Bernardo apenas por conta das tentativas de suicídio, mas pela primeira vez vem ao C.S. para uma consulta conjunta com profissionais da saúde mental. Após essa última tentativa de suicídio foi internada em um hospital geral, avaliada por um psiquiatra, que a 161 encaminhou para seguir o tratamento na APS. A novidade que pretendo destacar aqui inicialmente não é a presença de Honória nem os problemas que motivaram sua vinda ao C.S., mas a presença do psiquiatra e da psicóloga, ou seja, profissionais da saúde mental, nesse mesmo espaço. Existe uma intenção por trás desse arranjo que pode ser lida nos documentos ministeriais ou nas publicações de vários autores protagonistas da reforma psiquiátrica e sanitária que permitiu a construção política e a execução prática dessa proposta a que estamos assistindo. E a pesquisa de campo permite, a partir dos exemplos práticos, um diálogo entre as propostas e suas consequências. Jucá e cols. também apontam os caminhos esperados para esse encontro multiprofissional na APS (2009, p. 174): A assistência em saúde mental tem passado, no Brasil, por um processo de mudança, movido principalmente pela reforma psiquiátrica. (...) A proposta de criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ganha força e outra preocupação emerge – a de envolver a rede de atenção básica na assistência à saúde mental. Por esse motivo, o Programa de Saúde da Família (PSF) se torna um elo importante na identificação e acompanhamento de alguns casos em que o sofrimento mental estivesse presente. (...) ... mas no tocante ao que nos parece fundamental: desenvolver habilidades para realizar parcerias e construir uma rede que surge como a base para uma mudança estrutural no cuidado com a saúde mental. São objetivos, portanto, que se lê em muitos textos do próprio ministério da saúde e também em revistas de saúde pública e de ciências sociais em saúde, como: diminuir a necessidade de respostas médicas à maioria dos problemas, envolver um maior número de profissionais no processo, favorecer o atendimento das pessoas em um contexto mais amplo, envolver aspectos culturais e estimular uma leitura feita a partir de uma determinação social do processo saúde-doença, entre outros. Apesar das políticas de saúde caminharem nesse sentido, os resultados em saúde podem se traduzir de outra forma: aumento exponencial dos gastos, transformação contínua de necessidades em problemas de saúde, centralização da atenção no cuidado médico ou mesmo visão medicalizante por parte dos profissionais não-médicos. O 162 aumento do número de equipes de profissionais de saúde mental na APS passa, portanto, por esse dilema, o de resultar de propostas desmedicalizantes, mas que podem se revelar o oposto. No caso de Balint (2005), que descreve e analisa sua profícua e extensa experiência como psicanalista que discutia os atendimentos dos general practitioners (GPs, os MFC ingleses) nos anos 1950 e 1960, as referências são diferentes das que se vê nos textos dos reformadores, já que ele trabalha essencialmente a partir da psicanálise. Para ele os GPs precisavam aperfeiçoar a relação médico-paciente e a abordagem psicológica de todos os casos que atendiam, era o caminho que apontava para uma compreensão ampliada da queixa trazida pelo paciente. Para Balint (2005) tampouco parece haver a ideia de uma saúde mental. Um aspecto que gostaria de destacar, a despeito das diferentes visões sobre como lidar com o sofrimento na APS, é o quanto qualquer forma de atenção ao sofrimento social por profissionais de saúde, seja ela mais biomédica, psicológica ou voltada para os aspectos sociais (como se fosse possível separá-las) coincidem no fato de que valorizam a presença das diferentes formas de sofrimento nos C.S. e terminam por oferecer uma importância maior para essa Grande Saúde, que cada vez mais estende seus tentáculos em todas as direções. E aqui não falo da Grande Saúde de que falava Nietzsche em A Gaia Ciência (2002), “de uma saúde tal, que não somente se tem, mas que também constantemente se conquista ainda, e se tem que conquistar, porque se abre mão dela outra vez, e se tem de abrir mão!...”. E tampouco da Grande Saúde que nos apresenta Teixeira (2003, p. 71), em sua leitura sobre a filosofia de Spinosa: “Talvez, a melhor maneira de cumprir seu papel, seja praticando uma espécie de „maiêutica da alegria‟, seja ajudando a parir a Grande Saúde em seus pacientes, que deixam, assim, de ser pacientes, entrando na posse de suas potências...”. Justamente porque esses exemplos parecem buscar uma autonomia que dificilmente vemos hoje em nossos aparelhos da saúde. Ao falar de Grande Saúde me refiro mais àquela descrita por Illich (1999) e a neurose coletiva que assistimos hoje em busca da saúde perfeita, uma busca autônoma em certo sentido, porque parece partir do sujeito espontaneamente, mas que o deixa perdido e frágil frente a tantas recomendações estéticas, morais e preventivas. O mesmo movimento que coloca a saúde como um tema transversal em todas as políticas públicas e promove sua interferência nos mais variados setores, como alimentação, trabalho, transporte, justiça, educação de modo mais ético e político, é também o que abre as portas para a medicalização, a 163 transformação em uma linguagem e terapêuticas biomédicas, de novos temas. Já não é nenhuma novidade hoje que as pessoas procurem os CS ou os médicos para lidar com seus sofrimentos, mas parece ter havido um momento em que isso poderia causar alguma estranheza. E se ainda não havíamos falado da igreja (especialmente a católica) é preciso referir-se a ela para entendermos o início da transição para a modernidade. Pois se a igreja tem uma relação antiga com os doentes e com os sofredores, o que permanece ainda hoje, haverá um momento em que a medicina passa a fazer parte desse jogo em relação aos últimos, os “infelizes”. Situações para as quais havia um entendimento religioso, como no caso das convulsões ou da tristeza passarão a ter uma explicação científica Essa relação entre medicina científica e a igreja dá-se por meio de batalhas e alianças, em múltiplos campos, e ainda segue como se pode ver nos debates sobre a utilização de embriões em experimentos científicos, sobre o aborto e sobre o uso de preservativos. Um exemplo de uma dessas batalhas, que teria durado dois séculos e meio, nos conta Foucault (2001, p. 207-8) sobre a convulsão ou possessão: ... é o poder eclesiástico mesmo que vai apelar à medicina para poder liberar-se desse problema, essa questão, esse obstáculo que a possessão opõe à direção de consciência tal como se introduziu no século XVI. Apelação tímida, claro, contraditória, reticente, porque ao colocar o médico em assuntos de possessão, vai-se meter a medicina na teologia, os médicos nos conventos e, mais em geral, a jurisdição do saber médico nessa ordem da carne que a nova pastoral eclesiástica havia constituído como domínio. Em efeito, essa carne mediante a qual a Igreja afirmava seu controle sobre os corpos corre agora risco, devido a esse outro modo de análise e gestão do corpo, de que a confisque outro poder, que será o poder laico da medicina. Para Foucault (2001, p. 199) a melhor forma de compreender essas mudanças nos entendimentos e nas ações envolvendo situações que ora correspondem ao cuidado da medicina e outrora da igreja não se dá por meio de uma história das enfermidades, nem por uma história das superstições ou das mentalidades e sim por uma “história das relações 164 entre o corpo e os mecanismos de poder que investem nele”. Pois bem, podemos dizer que o sofrimento e suas múltiplas formas e interpretações, como: as crises existenciais, a tristeza, a ansiedade, a angústia, o desconforto, o mal-estar, a bruxaria, a possessão, só para citar algumas das definições possíveis para essa categoria, também são objetos de disputa de muitas áreas, como filosofia, religião e medicina, em suas diversas correntes. Antes de querer re(definir) o que representam e onde melhor se encaixam, julgo mais interessante e exeqüível que pensemos como a vida e corpo de Honória dialogam com categorias profissionais e instituições e que formas de relação de saberpoder brotam dessa história. Pois, voltemo-nos à ela, que como já dizíamos, é paciente de Bernardo há algum tempo. Ele nos relata que ela já teria consultado antes por outros motivos, mas que agora vem para essa consulta agendada com outros profissionais, psiquiatra e psicólogo, por conta de uma “tentativa de suicídio séria”. A partir daí Bernardo conta a sua história de sofrimento, boa parte de memória, algumas vezes consulta informações no computador a sua frente. Sua narrativa é cronológica, mas as marcações no tempo decorrem de situações de vida difíceis pelas quais teria passado Honória. Ela ouve sem interromper, mas parece se emocionar durante o relato, olha para baixo, olhos marejados, esfrega as mãos. Honória tem uns 50 anos, pele branca, cabelo curto, tem um jeito sério, daquelas pessoas que parecem não precisar falar alto para se fazer respeitar. Bernardo continua – ela é natural do interior de um estado do sul, mora há 9 anos nessa cidade, há 7 anos nesse bairro, trabalha como cozinheira, tem 3 filhos, mora apenas com o mais novo. “O que desencadeou a crise foi um processo de separação, que teve uma simbologia muito grande na vida dela. Ela carrega já na infância um trauma, aos 13 anos perdeu a mãe e o pai abandonou a família logo em seguida.” Todos ouvem atentamente a história contada por Bernardo, que chega ao relato da sua primeira tentativa de suicídio aos 16 anos: “... ela foi pipocando de parente para parente até que em uma dessas ela teve uma crise, aos 16 anos tentou o suicídio (...) ficou 30 dias internada numa clínica psiquiátrica...”. Bernardo segue sua linha de raciocínio, recontando (e reconstruindo) a história de Honória. Para ele, o contexto de vida dela parece determinante em relação aos acontecimentos trágicos que vivencia. Relaciona ainda mais quando nos diz que o último intento suicida ocorreu após a separação do marido, com quem viveu por 23 anos, a quem atribui um papel estruturante na sua vida. Bernardo nos conta: “foi na ocasião em que ela conheceu o marido dela 165 (...) o termo que ela usa (...) é que ela estava morta e renascesse de volta”. Em seguida descreve o momento da tentativa de suicídio: “ela estava no telefone no quarto dela (...) falando com o ex, então ela falou „que a única forma de vocês resolverem esse problema sou eu sumir ou morrer‟ e ela foi tomando, tomou várias cartelas (...) não tinha como ninguém entrar em contato com ela e a maneira como chegaram a ela foi que o ex ligou para um filho (...) que conseguiu entrar no quarto”. Bernardo conta que assim ela foi levada ao hospital, ficou vários dias na UTI, no respirador e que recebeu alta com a indicação de procurar um psiquiatra. Honória toma vários medicamentos e se queixa do efeito que têm causado, dificuldade para pensar, a fala pesada. O modo como Bernardo relata a história não me pareceu o modo tradicional de contar histórias médicas, que não costuma valorizar tanto o contexto nem os aspectos subjetivos. Em seguida o psiquiatra Egídio inicia um interrogatório que durará quase 20 minutos. Egídio mantém uma postura serena, suaviza sua voz, a fala é bem pausada e segue firme nas suas perguntas, sem desvios provocados pelas respostas de Honória. Ele passeia por uma plêiade de sintomas e de suspeitas diagnósticas6: Isso vem todos os dias (o intento suicida)? Já fez algum tratamento psicológico ou de remédio? Faz (ou fez) uso de bebida, drogas? Já teve alguma vez bem acordada a sensação de ouvir vozes que a senhora ouve e os outros não? Pelo menos uma vez, por pelo menos três dias, se lembra de ter ficado assim como se tivesse uma pilha, uma bateria no corpo? Alguém na família com problemas psiquiátricos, depressão, ansiedade? Mania, compulsão? A impressão de que alguém estivesse tramando algo contra a senhora? Após o interrogatório, conclui que se trata mesmo de uma depressão, acertam os medicamentos, agendam retornos. A psicóloga manifesta-se pela primeira vez nesse momento convidando Honória para uma psicoterapia em grupo. O que chamou a atenção na entrevista psiquiátrica é que não parecia se tratar de um diálogo, as perguntas vinham e não pareciam fazer muito sentido para Honória, que tentava responder, mas geralmente dizia coisas que não satisfaziam Egídio, que perguntava novamente e assim ia. Egídio é um psiquiatra novo, de pouco mais de 30 anos, que parece muito preocupado em exercer bem seu papel, por suas falas dá a entender que conhece bastante bem os diagnósticos psiquiátricos e os tratamentos medicamentosos, respondia rapidamente às perguntas sobre posologias, efeitos colaterais, melhores combinações 6 Nessa seqüência apresento as perguntas literais feitas por Egídio, destacadas das respostas de Honória, que na maioria das vezes limitavam-se a sim, não ou não entendi. 166 terapêuticas. Provavelmente, Egídio represente bem o perfil dos novos psiquiatras, da nova psiquiatria, no Brasil e no mundo. Esse relato ajuda a entender um pouco do que falávamos mais acima sobre como um arranjo organizativo pensado para um determinado propósito pode ter outras reverberações na prática, o modo como Egídio e a nova psiquiatria entendem a demanda de sofrimento social que chega ao C.S. é bastante diferente do entendimento que originou e ajudou a construir o encontro a que assistimos. Mas ainda não é tão simples, não falamos apenas de distâncias e diferenças. Um aspecto inicial é compartilhado de modo quase unânime entre os novos psiquiatras, parte dos profissionais da APS, os cientistas sociais da saúde e os gestores (especialmente os de saúde mental) que é o da relevância, o termo mais comum é prevalência, do „sofrimento psíquico‟ ou dos „transtornos mentais leves e graves‟, na APS. Há milhares de referências sobre isso, comecemos pela de Prince e cols. (2007, p. 860): Desordens mentais são uma importante causa de incapacidade e dependência. O relatório da OMS de 2005 atribuiu 31.7% de todos os anosperdidos-por-incapacidade à condições neuropsiquiátricas: os cinco maiores contribuintes para esse total foram depressão unipolar (11.8%), desordem por uso de álcool (3.3%), esquizofrenia (2.8%), depressão bipolar (2,4%) e demência (1.6%). (...) Desordens mentais também contribuem para mortalidade. De acordo com a estimativa do OMS 2005, desordens neuropsiquiatras representam 1-2 milhões de mortes todos os anos e de 1-4% de todos os anos de vida perdidos. Não será muito diferente do que se lê também nos artigos escritos nas revistas de ciências sociais ou de saúde pública em que se exalta a importância da saúde mental ou do sofrimento psíquico na APS. Apesar de coincidentes em relação à gravidade e importância do tema saúde mental para a APS, os reformadores e os novos psiquiatras discordarão imensamente em relação às suas causas. Não é fácil escolher um caminho para falar sobre o modo como a psiquiatria vem mudando sua perspectiva em relação ao seu objeto de estudo e muito já foi dito e escrito sobre esse tema desde as ciências sociais. Poderia começar por uma frase de que não me esqueço e que ouvi de uma professora de Psiquiatria que ministrava uma aula para alunos do internato em 167 medicina, em 2003, ela disse algo como: e não se esqueçam de levar seus guarda-pós ao visitar o hospital psiquiátrico, porque agora nós também somos médicos. Ela fazia uma provocação pelo fato de a psiquiatria ter uma história que andou muitas vezes longe da outra medicina, da clínica, da cirurgia e das áreas básicas. A pesar e a desmerecê-la diante da medicina, todos aqueles atributos que fundaram a medicina moderna, descritos por Foucault em O Nascimento da Clínica (2003, p. 99-102), quais sejam: O novo olhar ou o olhar clínico é, para o autor, resultado de um conjunto de fatores: 1) o apoio institucional, ou seja, a medicina foi legitimada para cuidar dos doentes, para entrar nos hospitais, nos quais vai se aprimorar, estruturar e se replicar; 2) é um olhar amplo, porque procura todos os sinais desviantes (classificatório) e que ganha profundidade com a anatomia patológica (olhar anátomo-clínico); 3) e um olhar calculador, porque delineia probabilidades e riscos (FOUCAULT, 2003, p.99-102). Procurei exemplificar nesse conhecido trecho do texto de Foucault algumas das características principais da medicina moderna, especialmente a possibilidade de classificar bem as situações clínicas, conseguir separar uma das outras nesse painel que Foucault chamará de espacializações da doença, e a anatomia patológica (e a fisiopatologia) que permitiram à medicina um novo discurso e uma base na qual se mantém até hoje. A Psiquiatria construiu uma outra história, também descrita por Foucault em várias ocasiões, mas sempre prescindindo de uma classificação fácil e clara e da lesão orgânica. Pois bem, ao que parece vive-se um novo momento, Egidio consegue demonstrar isso ao instalar por sobre Honória um painel de sintomas, sinais e situações que se referem sempre a doenças, que para ele existem como a mesa do consultório e que podem prescindir do marido que a abandonou, dos filhos que não estão em casa, das narrativas de sua vida relatadas minutos antes. Os melhores psiquiatras do Japão, da Inglaterra, dos EUA provavelmente teriam feito o mesmo. Ao mesmo tempo em que os sistemas nacionais de saúde se organizam, os hospitais psiquiátricos fecham leitos e a APS ganha destaque no manejo da maioria das situações de saúde, vemos também grandes mudanças em relação à psiquiatria. O fechamento de leitos em 168 hospitais psiquiátricos que ocorre em todo o mundo desde a experiência italiana com Basaglia, nas décadas de 1960-70, não representará uma diminuição da importância da psiquiatria, pelo contrário, com a uniformização dos critérios diagnósticos com os DSM III e DSM IV, o desenvolvimento de novos medicamentos e de novos diagnósticos (em última instância, a transformação de novas situações morais e comportamentais em diagnósticos médicos), ela ganhará cada vez mais o respeito dos seus pares médicos e crescerá na rede privada de saúde, na rede pública, na academia, no meio médico. Com a reforma psiquiátrica e a constituição dos sistemas nacionais de saúde em diversos países o que vemos também por parte dessa nova psiquiatria é um movimento de aproximação com a APS. Curiosamente, como dizíamos antes, no embalo de reformas pensadas e constituídas para promover abordagens alternativas ao modelo médico tradicional. Assim como vemos por parte dos defensores da reforma psiquiátrica uma série de encontros, artigos e propostas para a APS, o mesmo acontece em relação à psiquiatria e, também, em nível global. Em maio de 2008 pude participar em Granada, Espanha, de um congresso mundial realizado pela Associação Mundial de Psiquiatria e pela Organização Mundial de MFC (WONCA) e o que pude ver em primeiro plano foi a exaltação da APS como um espaço ótimo para prevenir, diagnosticar e tratar os principais transtornos mentais (comuns ou graves) e, também, muitas conferências com o objetivo de demonstrar os últimos avanços no diagnóstico e tratamento de doenças mentais, especialmente depressão e bipolar. O tema do contexto social também surge no discurso da nova psiquiatria e da epidemiologia psiquiátrica, que tem realizado uma série de estudos com esse fim, mas é uma construção bastante curiosa. Primeiro foi necessário isolar algumas situações de sofrimento ou dificuldade e definir a partir de um quadro subjetivo (pseudo-objetivo) de sintomas e distâncias temporais uma classificação diagnóstica que pudesse ser replicada em qualquer canto do mundo, trabalho dos dois últimos DSMs (CAPONI, 2009). A partir desse quadro diagnóstico, altamente questionável e muito sensível para incluir as mais variadas situações, especialmente para os casos de depressão e ansiedade, é que são construídos os estudos epidemiológicos. Aplicam às mais variadas populações questionários baseados nessas classificações para concluírem que, claro, muitas pessoas sofrem de doenças psiquiátricas, o que só aumenta a importância dessa área. A última novidade nos estudos epidemiológicos é a associação dessas doenças psiquiátricas com outras não-psiquiátricas, para concluir que quem sofre tem mais 169 chance de morrer ou de sofrer também por outras causas, como diabetes, doenças cardiovasculares, etc.. Essa construção procura reafirmar uma etiologia biológica para o sofrimento ao ponto de que essa teia causal orgânica explica a interação entre várias patologias. Nesse trecho, Prince e cols (2007, p. 870) explicitam melhor seus objetivos: Nosso primeiro objetivo é avaliar criticamente o modo como a carga de incapacidade e mortalidade prematura é repartida (...) para acessar se essas estimativas valem para uma contribuição total da desordem mental para mortalidade e incapacidade. Nosso segundo objetivo é rever evidências disponíveis para interações entre desordens mentais e outras condições de saúde (como sintomas somáticos não explicados medicamente, doenças comunicantes, condições maternas e perinatais, doenças não comunicantes e injúrias). Nosso terceiro objetivo é discutir as implicações desses links para a futura orientação de políticas de saúde, sistemas de saúde e serviços. Além dessa associação, o mesmo método de estudo, construído como dizíamos a partir de uma base muito frágil que é essa classificação diagnóstica hiper-inclusiva, é utilizado para descobrir perfis sociais dos pesquisados. Daí para a invenção do que vem sendo chamado de PREDICT (2009), que é uma espécie de calculadora de risco para depressão, não levou muito tempo. O PREDICT, o tema mais importante do congresso entre MFC e psiquiatras em Granada-2008, permite calcular de acordo com o seu perfil, homem, mulher, idade, profissão, estado civil, entre outros, qual a chance de nos próximos anos você vir a ter depressão. A despeito dos transtornos psiquiátricos prescindirem de um marcador biológico e de erigirem-se sobre uma frágil tabela classificatória, todo o processo restante de conversão de um tema, no caso o sofrimento, em jurisdição médica segue sem problemas. Quando falamos em nova psiquiatria é preciso dizer que de certo modo essa é uma tendência antiga da psiquiatria. Houve um momento, ainda nos primórdios dessa medicina, em que havia a esperança de localizar no cérebro os problemas chamados de psicológicos. Nesse período, provavelmente no embalo de várias descobertas na medicina decorrentes especialmente da fisiologia e da anatomia patológica, uma medicina dedicada à alienação mental e aos 170 problemas psicológicas buscava também no cérebro pistas que pudessem explicar fenômenos morais e intelectuais, como citado acima. O que não parece diferente da nova febre de pesquisa em neuropsiquiatria que é a utilização de tomografias e ressonâncias de crânio (neuroimagem) de pessoas que passam por situações distintas e previamente catalogadas para encontrar os chamados endofenótipos, que seriam características plásticas do cérebro comuns entre esses indivíduos. A forma como o cérebro reage diante dessas imagens poderia indicar para esses autores características biológicas fundamentais para auxiliar no diagnóstico e no tratamento das doenças psiquiátricas. Localizar a lesão na psiquiatria corresponderia ao item faltante para entrar definitivamente no mundo da medicina científica. Imagine submeter Honória a um exame de sangue ou mais provavelmente a um exame de neuroimagem e a partir daí determinar um diagnóstico com maior precisão (por que isso já é feito apenas com os sintomas) e explicar suas atitudes por meio desse diagnóstico e dessas imagens. O modo como a nova psiquiatria incorpora parte do discurso dos cientistas sociais é interessante, como nos demonstra Prince e cols. (2007, p. 870) nesse trecho: Contudo, o Cartesianismo dualista que é implícito nos métodos usado para gerar essas estimativas significa que o que começou como uma dádiva é agora, em alguns aspectos, uma perdição. Em realidade, as interações entre desordens mentais e outras condições de saúde são amplas e complexas. Desordens mentais são fatores de risco para o desenvolvimento de doenças comunicantes e não-comunicantes, e contribui para injúrias acidentais e não acidentais. (...) Para muitas condições de saúde, doença mental dá uma contribuição independente para incapacidade e qualidade de vida. Saúde mental está ausente do quadro político para melhora da saúde... Preocupação com a saúde mental precisa ser integrada em todos os elementos de saúde e política social, planejamento dos sistemas de saúde e atenção à saúde. Sofisticados argumentos baseados em evidência devem ser adicionados para justificar a maior importância e o aumento de recursos para a saúde pública. 171 Os mesmo autores, que parecem demonstrar no excerto acima uma certa distância em relação ao método utilizado para definir e medir as chamadas desordens mentais, demonstram logo depois como lidar com os dados que encontram: “nossos modelos indicam que até 20% das intercorrências infantis poderiam ser evitadas se a depressão materna fosse tratada mais efetivamente, e até 15% dos suicídios poderiam ser evitados por intervenções para tratar depressão maior” (PRINCE e COLS, 2007, p. 871). A psiquiatria que se aproxima da APS lança um olhar para o contexto social, como um dos itens que influenciam a distribuição e a causa dos transtornos mentais, mas não abre mão das suas classificações simplificadoras e biomédicas para entender esse mundo. Como nos aponta Martinez-Hernaez (2000, p. 250), “é um equívoco ver sintomas como um mero fato natural, não porque a psiquiatria clínica devesse abandonar seu intento terapêutico, mas porque, na ausência de conhecimento etiológico bem fundado, corremos um grande risco de confundir o cultural específico com o patológico universal.” Esse encontro que apresentamos entre Honória e os profissionais de saúde mental que poderia ser visto como uma tragédia em relação ao que planejavam os reformadores ao imaginar as potencialidades desse espaço, é pensado também para que o contrário possa acontecer. O espaço de práticas da saúde da família, próximo à vida comunitária, de expectadores privilegiados das narrativas de vida dos pacientes e dos principais acontecimentos dramáticos do bairro poderia ser um contaminador em potencial da visão biomédica, como nos dizem Figueiredo e Campos (2009, p. 136): ... consideramos essa tensão estabelecida entre os profissionais de Saúde Mental e as equipes de referência como uma força saudável, capaz de desestabilizar o instituído e pôr a prática em movimento em torno das reflexões nascidas da fertilidade desse encontro. Esse ponto de tensão situa-se onde o Apoio Matricial provoca e explicita uma intensa imprecisão das fronteiras entre o que é de responsabilidade de quem. Quando se trata de pacientes que apresentam transtornos psíquicos graves, não há desacordo sobre a necessidade da intervenção e do núcleo da Saúde Mental. Mas arma-se uma grande peleja quando o que está em jogo são questões 172 subjetivas que não se encaixam na rigidez dos diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas cotidianos ou outras necessidades que demandam orientação e escuta acolhedora. Nesses casos, a potência do Apoio Matricial está justamente em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação de fluxo, reverter o processo de “psicologização” do sofrimento. E aí nossa observação de campo parece concordar com a afirmação acima, em relação aos diferentes modos de se classificar e lidar com o sofrimento social, pois o encontro de vários profissionais de saúde mental com os da APS não é a priori o que se poderia esperar de uma abordagem menos medicalizante e mais contextualizada. Nesse trecho de um documento do MS, vemos que a APS é justamente valorizada por esse aspecto (Ministério da Saúde, 2005, p. 31-2): Assim, por sua proximidade com famílias e comunidades, as equipes de Atenção Básica se apresentam como um recurso estratégico para o enfrentamento de importantes problemas de saúde pública, como os agravos vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas outras formas de sofrimento psíquico. Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença, às vezes atuando como entrave à adesão à práticas preventivas ou de vida mais saudáveis. Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também – e sempre – de saúde mental, e que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde. Nesse sentido, será sempre importante e necessária a articulação da saúde mental com a Atenção Básica. Da mesma forma Luchese e cols. (2009, p. 2034), falam da diferença entre a abordagem da APS e a da saúde mental ou as dos hospitais psiquiátricos: ... observamos que os procedimentos realizados nos hospitais psiquiátricos são „procedimentos 173 simples e que tendem à simplificação‟ pois a própria vida do paciente nesses locais vai se conduzindo (...) numa lógica de perda da complexidade e padronização simplificada típica da institucionalização (...) De modo muito diverso, ao abordarmos a atenção à saúde mental no nível primário, assumimos o desafio de trabalhar com as pessoas em sofrimento mental no seu mundo real e esse cuidado é „ complexo, porque está situado no atravessamento do território geográfico com o território essencial e assim somos obrigados a fabricar mundos‟ ou a habitar mundos criados por pessoas que vivenciam experiências diferentes, como por exemplo, o mundo de quem usa drogas ou de quem apresenta um delírio numa certa comunidade. Enfim, são exemplos que nos ajudam a situar um pouco como a nova psiquiatria tem se debruçado sobre o campo da medicina ambulatorial após a queda do hospital psiquiátrico como recurso terapêutico, assim como qual o panorama visto e construído pelos reformadores. Se os últimos, como já dizíamos, também apontam para uma supervalorização do tema saúde mental e reforçam o discurso sobre a gravidade do quadro, sobre a alta prevalência de situações psiquiátricas ou sofrimento psíquico na APS, discordam em relação aos primeiros quanto à visão sobre os significados desse sofrimento, para eles menos relacionado à questões biológicas e mais aos aspectos culturais e sociais. Os riscos em relação às características próprias da APS, de fracionar a atenção integral característica do seu espaço de prática ao fazer essa aproximação com uma atenção à saúde mental ou mesmo uma atenção psicossocial também foram imaginadas por Figueiredo e Campos (2009, p. 135): Alguns riscos da formulação de políticas e de inclusão de ações de saúde mental no PSF podem ser expressos em fenômenos como a ampliação do saber-poder psiquiátricos, a psicologização dos problemas sociais, a ampliação e a ambulatorização da demanda. Dadas estas situações de difícil previsão e manejo, constatase que a implementação de uma política pública 174 especial que contemple os usuários em sofrimento psíquico no contexto das políticas da atenção básica em saúde envolve o reconhecimento de que ainda há a supremacia do modelo biomédico na organização das ações nesse setor. Sendo assim, enquanto política de saúde pública local, a inserção da saúde mental no PSF exige a ruptura destes antigos padrões assistenciais e a superação da racionalidade médica moderna, ainda hegemônica nas ações de cuidado que são conduzidas. Na parte que segue pretendo discutir não apenas os riscos da visão biomédica hegemônica citada por Figueiredo e Campos (2009) e expressas pela nova psiquiatria e sua potencialidade de influenciar a abordagem ao sofrimento social na APS, mas também falar dos outros riscos envolvidos na organização desse encontro e das representações desse conceito, cada vez mais falado e mais vago, que é o de saúde mental. 5.2 A HISTÓRIA DE NOÊMIA E A ABORDAGEM DO MFC Bernardo, o MFC, começa narrando para Egídio (psiquiatra) e Daniela (psicóloga), a história de Noêmia, antes que ela seja chamada ao consultório. A narrativa de Bernardo, e nessa parte focaremos mais na sua atuação do que nas dos demais profissionais, nos ilustrará um pouco sobre a visão do MFC em relação ao tema da saúde mental, seus aspectos conceptuais e práticos. A história de Noêmia relatada por Bernardo parece bastante caótica. Não me refiro à vida de Noêmia, que provavelmente também é, assim como as nossas, mas ao modo como ele narra, que não parece médico, nem leigo, nem psicológico, nem psiquiátrico. Por exclusão, talvez seja esse o modo como MFCs e demais profissionais da APS narram as histórias das pessoas que atendem. Bernardo nos diz sobre ela: ... o pai xingou o cara, o cara levantou, pegou a arma e matou na frente dela, e ela foi então criada pela mãe e seis (família grande) irmãos, mas tinha uma irmã, a mais velha, bonita (...), o que era pra ela cortava, rasgava, cara-feia, foi maltratada psicologicamente, ela não batia, não chegou a bater, dava presente pros outros irmãos, 175 eles tinham mais. Então, ela é uma pessoa que foi conduzida dessa forma, que tem essa história pregressa. Um dia ela teve uma crise, não sei se de pânico, e ela foi parar no HU, e lá avaliaram, tudo bem, mas lá um profissional que tava lá olhou a mão dela, tinha uns defeitos, aqueles cortinhos, resolveu encaminhar pro reumato e fez o diagnóstico de Lúpus, assintomático, não tinha queixa, não tinha nada. A partir daí o pânico dela piorou. Piorou depois que a médica medicou ela e ela teve uma reação adversa à medicação. E passou muito mal à noite com a medicação. Foi parar a noite no pronto-atendimento, voltou, tentou tomar de novo passou mal. Então ela tem o diagnóstico de Lúpus, não em tratamento, mas continua acompanhando com a reumato e a partir daí a vida dela mudou... Então era esse o diagnóstico que tinha... Ela veio uma vez com o Dr. Egídio, Dr Egidio passou para ela rivotril, fluoxetina e ela não quis tomar, abandonou, falei que era importante tomar, e ela resolveu experimentar o tratamento e ela resolveu então fazer o tratamento, só que ela deixava.... Ela vinha no grupo de relaxamento, eu tenho um grupo de relaxamento, e ela melhorou bastante com o relaxamento, e aí ela começou a ter um pouco mais de sociabilidade, que antes ficava mais em casa. Mas o humor tem flutuado muito. Na última vez que teve aqui, ela falou que agrediu a filha dela, eu falei vamos voltar para o matriciamento novamente, avaliar o diagnóstico. Mas ela falou, quero um tratamento com o psiquiatra mesmo. E eu orientei que ela continuasse com o mesmo. (...) Qual que é minha ideia, que ela fosse para você mesmo, que revisse o diagnóstico, bom é isso mesmo, dá alta e volta para o grupo de relaxamento. Ela tem que fazer as duas coisas, a psicoterapia e o relaxamento. Nesse trecho, Bernardo relatou a história que conhecia sobre Noêmia com algumas pequenas interrupções de Egídio e da Daniela, que foram suprimidas para facilitar nossa análise dessa introdução. Como dizíamos já no caso anterior que relatamos mais acima, Bernardo não faz o relato médico tradicional, que concentraria suas atenções na 176 sintomatologia e na cronologia desses sintomas, além dos tratamentos prévios e atuais. Em vez de dizer que, “Noêmia é uma mulher, casada, de 36 anos, 2 filhos, que tem um diagnóstico prévio (questionável) de Lúpus assintomático e uma história de flutuações de humor em tratamento irregular com rivotril e fluoxetina e para quem agendei esse encontro agora para avaliar melhor o diagnóstico de transtorno do humor”, Bernardo enfatiza aspectos no seu relato que o tornam bastante mais caóticos (e subjetivos) que seriam situações de vida da Noêmia que lhe pareceram importantes demais para não se comentar, como o fato de haver testemunhado o assassinato do próprio pai e o diagnóstico de Lúpus. Ao mesmo tempo em que ressalta esses aspectos não poderíamos dizer que se trata de um relato psicológico, porque Bernardo não chega a traçar um perfil de personalidade ou a refletir mais aprofundadamente sobre o pânico ou as variações de humor a partir das situações que resgata de seu passado. Do mesmo modo que parece crer que existe algo além de um diagnóstico biomédico baseado apenas nas variações do humor, pede ao psiquiatra que forneça um diagnóstico de modo bastante pragmático para que afinal possam continuar o seguimento que lhe parecia funcionar bem, o grupo de relaxamento. O que me surge é que Bernardo parece dialogar com o psiquiatra e com a psicóloga como um representante de Noêmia, como um tradutor médico de suas angústias mais confusas, caóticas e inclassificáveis e, ao mesmo tempo, de suas necessidades mais práticas e imediatas. A angústia de Bernardo, e ele parecia mais incomodado naquela situação de passar o caso para outros profissionais do que quando está somente com as pessoas que atende, não parecia ser tanto a do médico preocupado em traduzir bem uma situação de vida em linguagem biomédica, quanto a de explicar bem as dificuldades que Noêmia lhe contou e suas necessidades mais práticas para aquele grupo de profissionais. Tanto que nas duas vezes em que iniciou seu relato para os profissionais de saúde mental na presença da paciente, começava assim “Eu tava conversando com eles, expliquei seu caso já, porque a gente conversa antes de chegar e eu queria que você me corrigisse se eu falar alguma coisa diferente do que eu passei pra eles.” E também lembra à Noêmia ao iniciar esse relato que foi ela mesma quem demandou algo a ele, assim como esse encontro: “Bem, você na última consulta veio como uma demanda para mim, porque agrediu sua filha...”. O que pretendo destacar nessa parte é o quanto o espaço de trabalho do MFC ajuda a caracterizar seu modo de ver e de lidar com a demanda que recebe. Não pretendo generalizar e dizer que todos são assim, do mesmo modo que não quero fazê-lo com a denominação de 177 reformadores ou de novos psiquiatras, são termos que servem apenas para desenhar grosseiramente sensos comuns, ideias e conceitos mais gerais, que vemos em determinadas áreas. Mas assim como descrevi no capítulo sobre a MFC como uma subcultura, sempre haverá algum espaço de ação para o sujeito se mover dentro do contexto que o cerca. Agora gostaria de voltar para o tema ou conceito de saúde mental. Esse mesmo espaço que vai empurrando e moldando e lapidando o MFC e os profissionais da APS para um determinado saber-poder, um modo de ver e de entender o mundo, o coloca em rota de colisão com a ideia de saúde mental. 5.3 SAÚDE MENTAL, DO QUE SE TRATA? Para o médico de família e comunidade (MFC) é provavelmente difícil pensar em saúde mental quando se trata do encontro com o paciente. Miller (2008) também discute esse tema no seminário Coisas de Fineza em Psicanálise, para abordá-lo, claro, desde o ponto de vista da psicanálise. Para arriscar a fazer uma história de como o tema da Saúde Mental aparece (ou não) na prática desse profissional achei interessante convocar algumas figuras para essa conversa: Josef Breuer, Michael Balint e Ian Mcwhinney. Josef Breuer (1842-1925), clínico e fisiologista, que atuou em Viena, pode servir de exemplo de como os médicos lidavam naquela ocasião com o sofrimento e de como o próprio Breuer e Freud estimularão de alguma forma a entrada (reinvenção) do psi na medicina. A frase de Freud na carta endereçada à Istvan Hollos, que aparece no texto de Miller (2009, p.27) - “Será que não estou me conduzindo como os médicos de outrora com relação às histéricas?” - fala de um tempo em que o discurso sobre esses sofrimentos cabia à filosofia ou à religião e não havia legitimidade social para que por uma opção consciente chegassem aos médicos. Mas no momento em que esse sofrimento se manifesta no corpo e é preciso diferenciá-lo de outras síndromes médicas já estabelecidas fez-se a interface necessária para que a medicina pudesse se dedicar a eles e também para que as pessoas procurassem os médicos nesses casos. O inconsciente surge no discurso científico, portanto, por meio dos casos de sofrimento manifestados em uma linguagem corporal (os histéricos, somatizadores) que autorizaram o seu passeio pelo mundo da medicina. Mas a solução de Breuer e Freud, apesar da entrada ter sido via uma medicina oficial, será muito original, porque os dois davam os primeiros passos para a criação de um novo campo do conhecimento, com estatuto próprio: a Psicanálise. Freud, em A Questão da Análise Leiga, tratará de demonstrar muitos 178 anos depois o abismo que separaria a formação médica da de psicanalista. De acordo com Scheper-Hughes e Lock, o tema mentecorpo, promove um tenso debate entre clínica, psiquiatria e psicanálise no início do século XX, (1987, p. 9): O legado Cartesiano à medicina clínica e para as ciências sociais e naturais é uma concepção mecanicística para o corpo e suas funções, e a falência em conceituar uma causalidade consciente para os estados somáticos. Levaria uma luta entre psiquiatria e psicanálise e o gradual desenvolvimento de uma medicina psicossomática para no nascente século 20 começar a tarefa de reunir mente e corpo na teoria e prática clínica. Contudo, mesmo na psiquiatria mais psicoanalítica e na medicina psicossomática há uma tendência em categorizar e tratar as aflições humanas como se elas fossem totalmente orgânicas ou totalmente psicológicas em origem: ela está no corpo, ou ela está na mente. A ideia de trazer Breuer para cá, além de fazer uma ponte entre a clínica geral e a psicanálise, foi para demonstrar que para o clínico geral do século XIX havia uma divisão entre o que cabia àquela medicina fundada no início do século - centrada em uma concepção de doença a partir de uma lesão orgânica - e outras formas de mal-estar, que seriam descartadas como doença após exame clínico minucioso e encaminhadas para outros espaços disponíveis para a resolução de problemas existenciais: família, religião, filosofia. Outra questão que a lembrança de Breuer pode nos trazer seria: o que teria propiciado no trabalho do clínico geral (qual o terreno que permitiu) a abertura para essa escuta e compreensão da histeria que os levaria a todo o conhecido desenvolvimento posterior? Poderia ser o espaço que um médico, clínico geral ou MFC, ocupa, ao ser responsável pela atenção integral, continuada, próximo da vida familiar e comunitária, em uma sociedade, como diria Foucault (2003, p. 228), em que o “pensamento médico implica de pleno direito o estatuto filosófico do homem”? Ao mesmo tempo em que Michael Balint (1896-1970), psicanalista de origem húngara, filho de um clínico geral de Budapeste, desenvolvia seus seminários com MFCs na Clínica Tavistok em Londres no nascedouro do National Health System (NHS), a Organização 179 Mundial de Saúde (OMS) lançava sua definição de saúde: a do completo bem-estar físico, psíquico e social. Acho importante tratar desse momento, pós-guerra na Europa, porque desse arranjo complexo de posições político-econômico-científicas e sempre muito ideológicas ainda há muitas reminiscências no que se quer discutir aqui: um conceito de saúde e de saúde mental. O conceito de saúde que ganha força nesse período procurava se contrapor a uma medicina que se aprofundava no diagnóstico e tratamento de doenças, com a fragmentação do saber e o avanço das tecnologias de esquadrinhamento do corpo. Os custos dessa medicina curativa e uma reação política à idéia de que toda a solução estaria no manuseio do biológico fará com que em diversos países tenhamos reformas e criações de sistemas de saúde que procuravam ir além da negação da doença como definição de saúde. Ressaltavam esses reformadores uma noção de saúde ampla, biopsicossocial, como se cansou de dizer por aí. Esse conceito, portanto, germina no espaço político, em defesa de uma guinada econômica nos sistemas públicos para ações que não se restringissem ao tratamento de doenças. Essa saúde, biopsicossocial, reverberou de muitas formas, me parece, pois se ao mesmo tempo valorizamos hoje como saudáveis outros aspectos da vida que não apenas a ausência de uma lesão orgânica permitiu-se um saber-poder médico (aqui também me refiro a outras categorias da área da saúde) sobre mais aspectos da vida das pessoas, como as questões existenciais, mas também a alimentação, o sexo, atividade física, entre outros. O que talvez pretendesse uma maior autonomia das pessoas no cuidado com a própria saúde e uma melhoria nas condições de vida levou-nos também, como diria Illich (1999, p.28), a uma neurose coletiva em busca da saúde perfeita. Ou como aponta Gervas (2009, p. 4), “a saúde já não se define como uma experiência pessoal senão por parâmetros biológicos ou por escalas psicométricas que utilizam os médicos”. Se antes o paciente nos perguntava apenas “estou doente, Dr.?”, agora também nos pergunta “como é que está minha saúde?” Caponi (2009) dirá que: ...apesar de que esta definição bioestatística é posterior aos estudos desenvolvidos por George Canguilhem, podemos tentar compreender os argumentos explicitados em O Normal e o Patológico como uma resposta à definição de saúde-doença enunciada por Boorse. Para Canguilhem (1982) o recurso a médias 180 estatísticas ou a valores freqüentes pode resultar em auxílio, possibilitando uma informação complementar, mas não é possível reduzir a saúde aos parâmetros normais e nem a patologia aos desvios estatísticos. Concordando com a leitura de Miller sobre Canguilhem, Caponi (2009) nos diz que “somente se pode afirmar que um ser vivo é normal se o vinculamos com seu meio, se consideramos as soluções morfológicas, funcionais, vitais a partir das quais responde às demandas que seu meio lhe impõe”. Como afirma Canguilhem (1982): “O normal é poder viver em um meio em que flutuações e novos acontecimentos são possíveis”. Poderíamos dizer o mesmo em relação à saúde mental, termo que vem para ampliar o escopo dos profissionais da área da saúde para além da doença mental e que tem uma forte representação para muitos intelectuais, acadêmicos, usuários e ex-usuários de serviços psiquiátricos, gestores, trabalhadores ou profissionais de saúde que atuam e atuaram nos movimentos antimanicomiais e nas reformas psiquiátricas em todo mundo. Esses reformadores fecharam leitos psiquiátricos, ou acabaram com as internações psiquiátricas como na Itália, criaram serviços substitutivos como os CAPS, permitiram sim que milhares de pessoas que viviam isoladas, dessubjetivadas, voltassem a circular entre nós. Curiosamente, isso ocorrerá ao mesmo tempo em que assistimos a um grande crescimento da psiquiatria ambulatorial, dos psicotrópicos e da popularização de diagnósticos psiquiátricos, como a depressão. Como dizia no início, para o MFC que atende pessoas de todas as idades, com demandas variadas, por um longo período de suas vidas, é difícil pensar em termos de saúde mental na sua prática clínica. Esse mesmo espaço que tornou difícil para o MFC entender esse conceito de saúde mental permitiu o desenvolvimento do que chamamos medicinacentrada-na-pessoa. Balint, de quem falávamos mais acima, ajudou a desenvolver essa idéia. Para ele, existe um potencial psicoterapêutico próprio, específico, da relação MFC-paciente, que se deve ao espaço que ocupa esse profissional no sistema de saúde (1966). Esse médico ideal delineado por Balint e por McWhinney não é diferente do modelo de Canguilhem apresentado por Miller (2009, p. 45-6): Meu médico é aquele que aceita, de um modo geral, que eu o instrua sobre o que somente eu 181 estou fundamentado para lhe dizer, ou seja, o que meu corpo me anuncia por meio dos sintomas e cujo sentido não me é claro. Meu médico é aquele que aceita que eu veja nele um exegeta antes de vê-lo como reparador. A definição de saúde, que inclui a referência da vida orgânica ao prazer e à dor experimentados como tais, introduz sub-repticiamente o conceito de corpo subjetivo na definição de um estado que o discurso médico acredita poder descrever na terceira pessoa. O arranjo de influências que sofre o MFC, no entanto, é bastante heterogêneo, assim como heterogêneas acabam sendo as práticas na APS brasileira e em outros países. À diferença da época de Breuer, as portas dos centros de saúde estão abertas para as crises existenciais, que muitas vezes já vêm com o auto-diagnóstico de depressão e nem sempre há a inclinação do MFC para devolver o sofrimento ao contexto, aceita-se a medicalização, medicaliza-se. Quando o MFC ou a equipe da APS separa uma pessoa como sendo um “caso mental” podem se abrir caminhos para os diagnósticos psiquiátricos e para os encaminhamentos para esse subsistema de saúde mental. E assim o conceito de saúde mental pode ser contraprodutivo (ao modo de Illich, 1975), porque reforça o estigma mesmo quando diz não querer, porque tende a borrar o contexto, porque os psicotrópicos estão à mão, porque aliviar o desconforto, a dor, a angústia é bom para todo mundo, não? Em resumo, me parece que o conceito de saúde mental transita melhor, é mais inteligível, quando se refere à disputa por formas ideais de organização dos serviços de saúde e, em especial, de uma rede de saúde mental. O que, decerto, provoca efeitos na relação profissionalusuário/paciente, mas como vimos, para o MFC e outros profissionais da APS é mais difícil pensar em saúde mental quando se atende uma pessoa por muitos anos por demandas variadas. Da mesma forma, como é estranho pensar em saúde da mulher. Para aqueles que ocupam espaços de atenção já fragmentados na rede de serviços talvez faça mais sentido. De todo modo, por meio do exemplo de Breuer e da fala de McWhinney o que se vê claramente é que há um avanço da medicina sobre esse enorme mercado do sofrimento existencial, provavelmente com a ajuda de uma noção de saúde que talvez buscasse outro caminho. 182 Mas têm sido os Centros de Saúde, os ambulatórios médicos e psiquiátricos os mais procurados diante do mal-estar. Em alguns casos, escuta-se, dá-se um tempo para que a própria pessoa encontre formas de lidar com seu desconforto. Em outros, a fluoxetina pode ser a resposta que cala outras perguntas. 183 ... o alienista oficiara à câmara expondo: (...) 3º. que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e, portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto. Machado de Assis CAPÍTULO 6 – DAS REFERÊNCIAS NUMEROLOGIA DA DEPRESSÃO MÉDICAS, A Dentre todas as pessoas, de 2 a 15% serão diagnosticadas como depressivas em algum momento da vida (MOUSSAVI, 2007, p. 851). Das pessoas que procuram um Centro de Saúde ou o médico de família (MFC) por qualquer motivo, até 25% têm depressão naquele momento (KING e cols, 2009, p. 1368). Depressão é um transtorno que se caracteriza por tristeza, desmotivação, alteração do sono ou do apetite por mais do que 2 semanas (DSM IV, 2011). Se você é um homem de 55 anos, que vive na Espanha, com educação superior, dificuldades relacionada ao trabalho, experiência de discriminação em mais de uma área e história pessoal de depressão tem um risco de mais de 30% de vir a ter depressão no próximo ano (KING e cols, 2009, p. 1373). Após a melhora dos sintomas com antidepressivos é preciso mantê-los por pelo menos 6 meses (FLECK, in: DUNCAN, 2006, p. 877). Mais de 30% das pessoas sofrerão recaída em um ano e precisarão manter o tratamento por mais tempo (FLECK, in: DUNCAN, 2006, p. 877). Quase cinquenta por cento dos casos de depressão não são diagnosticados pelos MFC (GOLDBERG e cols, 1998, p. 1843). Noventa por cento das pessoas que cometeram suicídio faziam acompanhamento por problemas de saúde mental, mais de 90% dessas tinha depressão (MARIS, 2002). Estudos com corpos de pessoas que cometeram suicídios, especialmente os violentos e menos premeditados, identificaram uma relação com menores concentrações de serotonina, abaixo de 92.5nmol.L (MARIS, 2002). Todo capítulo de tratado médico ou artigo científico geral sobre o tema da depressão costuma iniciar com uma extensa exposição de números, como essa. Não é diferente com outros diagnósticos psiquiátricos e com os textos clínicos sobre suas entidades patológicas. A quantidade de pessoas com determinado diagnóstico, a quantidade de 184 mortes decorrentes, a carga de sofrimento, os custos com as faltas ao trabalho, com os tratamentos, além dos dados comparativos entre essa ou aquela terapia são as informações que mais comumente se vê na parte inicial dos textos acadêmicos. Essas informações traduzidas por meio de dados e de números procuram dar veracidade à existência de algo ou de um achado, de acordo com o velho e atual raciocínio científico galileico de reprodutibilidade, previsibilidade, exatidão e matematização dos eventos. A exposição, no entanto, a essa enorme quantidade de dados e de números nos afasta muitas vezes de uma análise mais profunda dos significados encobertos e das interessantes contradições que porventura escondem. No caso da depressão, por exemplo, há uma enorme fragilidade na sua existência como entidade nosológica, o que não impede que se construa todo um edifício sobre esse terrenoso arenoso (CAPONI, 2009). Todas as culturas categorizam e categorizaram de alguma forma o sofrimento social, mas no caso da sociedade moderna não se trata apenas de transformar coisas em números, mas de criar categorias que possibilitem e disparem o processo de enumerar. É o que nos diz Caponi (2011) ao narrar o momento em que a psiquiatria parece ter passado da contagem pura à quantificação, no final do século XIX: Ocorre que, esta nova modalidade de estudos estatisticos, supõe duas operações igualmente importantes e sucessivas: classificar e medir. Isto signfica, estabelecer convenções e transformar essas convenções em números. Primeiro será necesario unificar as nomenclaturas, estabelecer classes e categorias aceitas por todos os participantes do processo de quantificação, para logo, e somente então, poder começar o processo de medição. Essa característica, que se expande rapidamente para todo o planeta, é a de uma classificação que valoriza a ideia de doenças como entidades orgânicas, atemporais e universais, uma história que já leva mais de 200 anos em relação a maioria das especialidades médicas, mas que levou mais tempo para se fortalecer na psiquiatria. E o objetivo da Associação Americana de Psiquiatria a partir da elaboração do DSM-III, em 1980, foi justamente esse, o de superar a ausência de marcadores biológicos com diagnósticos psiquiátricos universais padronizados por meio de um quadro bem definido e delimitado de sintomas e do seu 185 tempo de duração. Sem a noção de reatividade ou de contexto do sofrimento, o caminho estaria aberto para que médicos de todo mundo chegassem aos mesmos diagnósticos a partir desse conjunto uniformizado de sintomas subjetivos (HORWITZ, 2007). Curiosamente, o psiquiatra responsável pela coordenação do projeto que levou ao DSM-III, Robert Spitzer, reconhecerá recentemente a possibilidade de sobrediagnóstico do manual e da necessidade (apesar das dificuldades técnicas) de que se leve mais em conta o contexto social na elaboração do DSM-V (SPITZER, in: HORWITZ e WAKEFIELD, 2007). O alerta de Robert Spitzer pode, de fato, ser levado em consideração, e vir a ser uma das tendências do novo DSM, assim como o movimento que se vê em direção à localização dos chamados transtornos mentais com a utilização da neuroimagem. E não seria nada contraditório esse duplo movimento. Já se percebe em muitos estudos, como o do PredictD (do qual falaremos mais adiante), a tentativa de estabelecer a correlação entre determinados aspectos de vida das pessoas e sua associação, maior ou menor, com os transtornos mentais. O avanço para uma psiquiatria social, não seria de modo algum, portanto, o caminho pensado por autores como Arthur Kleinman ou Thomas Szas, da cultura ou das condições de vida que desenham as categorias de sofrimento, o modo de sofrer e de uma base biológica que alimenta e que se alimenta da interpretação que fazemos do mundo e das coisas. Parece tratar-se mais de uma neuropsiquiatria que busca relacionar sua frágil base conceitual nosológica com o perfil sociodemográfico de determinados grupos populacionais. Nesse caso, poderá haver uma maior medicalização como veremos com o tema do risco e da depressão. Risco esse já apontado por Martínez Hernáez (in: COMELLES e PERDIGUERO, 2000, p. 270) ao comentar a abrangência maior do DSM-IV: Certo é que no DSM-IV há uma ênfase especial e até o momento inédita na análise do contexto social e cultural do afetado. Agora bem, dificilmente se pode levar a cabo uma contextualização cultural em toda a sua extensão quando se parte de critérios diagnósticos em que os diferentes atributos sociais e psicossociais tenham sido previamente biomedicalizados. De fato, os fatores psicossociais e socioculturais são convertidos neste manual em critérios diagnósticos e utilizados como realidades físicas 186 que respondem a uma ordem de realidade universal e reconhecível. O DSM-III, o IV e, em breve, o V tiveram, portanto esse papel, o de sedimentar um trabalho que vem desde Kraepelin, que é o de uma psiquiatria universal, com um painel de doenças baseado em sinais e sintomas encontrados em toda parte. E o que veremos nesse capítulo são as consequencias dessa padronização classificatória na prática médica, na APS, nos artigos das principais revistas médicas, nos livros-texto . Ao se validar cientificamente um padrão para identificação de um transtorno ou doença, que seja aceito pelos pares e divulgado para a população, há um efeito-cascata que é a produção de muitas pesquisas sobre o tema em diversas frentes. Estudos epidemiológicos sobre a distribuição desse distúrbio na população em geral e em grupos específicos. Estudos sobre suas consequências mórbidas, econômicas, sociais. Estudos sobre as formas de tratamento. E, claro, desde as ciências sociais também teremos estudos críticos sobre a validade ou não desse modo de definir diagnósticos. O objetivo nesse capítulo é realizar uma análise crítica desse edifício construído a partir do frágil diagnóstico de depressão. Tentaremos demonstrar que a partir de uma fragilidade epistemológica fundamental, que é a do modo como se estabelece e se configura a classificação das doenças psiquiátricas, marcado pelas dificuldades de estabelecer parâmetros de validação e de legitimação das categorias diagnósticas propostas, surgirão muitas outras como: as relacionadas às intervenções coletivas propostas por meio do rastreamento; o tema do risco com o PredictD; as brechas vistas nos ensaios clínicos que sustentam as intervenções individuais; e a tentativa de amarrar o suicídio como o desfecho da depressão. A divisão e padronização do sofrimento em transtornos bem delimitados influencia de diversas formas os profissionais que trabalham na APS. Primeiro, porque é o modo como aprendem na prática os estudantes de medicina a identificar esses problemas; depois, porque as principais referências bibliográficas médicas também classificam dessa maneira; e, por fim, há uma tentativa institucional de aproximação das sociedades de psiquiatria com as de medicina de família em que se ressalta o enfoque da neuropsiquiatria, como se pode ver na organização cada vez mais frequente de eventos internacionais conjuntos. Para realizar essa análise utilizaremos as publicações voltadas para médicos e profissionais da APS mais importantes e conhecidas. E, 187 por fins estéticos, seguiremos a ordem em que costumam aparecer os temas clínicos tanto em revistas quanto em tratados médicos. 6.1 UMA EPIDEMIOLOGIA DO SOFRIMENTO Ao apresentar um tema clínico qualquer, a maioria dos autores costuma iniciar com uma exposição da relevância, geralmente quantitativa, do problema. E para isso, trazem alguns dados sobre a incidência ou prevalência, sobre as particularidades da população envolvida, sobre a distribuição geográfica e, também, os impactos dessa entidade nosológica em termos de custos em saúde e de consequências para a economia. A Psiquiatria levará mais tempo do que outras áreas médicas para a utilização de estudos epidemiológicos. De acordo com Grob (1985), que faz um apanhado histórico da epidemiologia psiquiátrica norteamericana, somente a partir da segunda metade do século passado que se iniciam estudos populacionais como os que se vê atualmente, que tratam de apresentar a prevalência dos casos, por exemplo. A principal dificuldade dirá, é a de que os diagnósticos baseiam-se nos sintomas apenas, são descritivos, e não etiológicos, e completa: “Além do fato de que a linha de demarcação entre sintomas e síndromes é extraordinariamente vaga, permanece ainda o problema adicional de explicar a relação entre a classe social e a doença mental em outra que não uma base estatística” (GROB, 1985, p. 236). O principal livro utilizado na APS brasileira hoje, nos dirá, por exemplo, em relação à depressão que: “a mediana de prevalência de depressão em pacientes de cuidados primários em saúde de diversos países é acima de 10%” (FLECK, in: DUNCAN, 2006, p. 874). Esses dados de prevalência variam bastante e há vários estudos sobre o tema, que encontram de 3 a 47% dependendo da população estudada, se homens, mulheres, pacientes com câncer, populações pobres, etc.. De acordo com estudo do National Institute of Mental Health (NIMH, 2011), do governo norteamericano, em torno de 26% dos americanos com 18 anos ou mais sofrem de alguma desordem mental diagnosticada em um dado ano. Desses, aproximadamente 6% teriam desordens mentais graves, como a esquizofrenia, que afetaria aproximadamente 1.1% da população adulta. Os chamados transtornos de ansiedade formam o grupo de categorias que atinge o maior número de pessoas, algo como 18%, que costumam ter seu primeiro episódio aos 21.5 anos. A síndrome do pânico, por exemplo afetaria 6 milhões de americanos de 18 anos ou mais em um dado ano. Outros 7.7 milhões de adultos sofreriam por 188 transtorno de estresse pós-traumático e 6.8 milhões pelo transtorno de ansiedade generalizada. Fobia social poderia atingir 6.8% da população norteamericana em um ano, especialmente crianças e adolescentes em torno dos 13 anos de idade. Fobia específica, como medo de voar ou de tomar um elevador pode afetar 8.7% da população. E ainda teríamos os transtornos alimentares, o de déficit de atenção e hiperatividade e toda uma gama de transtornos de personalidade, como o de personalidade anti-social que é caracterizado por indivíduos que desconsideram as regras e normas culturais, comportamento impulsivo, e indiferença aos direitos e sentimentos dos outros. Aproximadamente 1% da população adulta é afetada por esse transtorno. Outros 5.2% portariam o transtorno de personalidade evitativa, que se caracteriza por extrema inibição social, sensibilidade à avaliação negativa e sentimentos de inadequação (NIHM, 2011). Kessler e col. (2005, p. 593) em um estudo populacional realizado entre 2001 e 2004 com mais de 9 mil pessoas, nos EUA, chegam a seguinte conclusão: “Aproximadamente metade dos americanos encontrará critério para uma desordem do DSM-IV ao longo de sua vida, com um primeiro episódio usualmente na infância ou adolescência.” De acordo com sua pesquisa (KESSLER e col, 2005) os transtornos mais comuns seriam os de ansiedade, com 28%, e a depressão o transtorno isolado mais frequente, com 18%. O grupo de problemas relacionados à ansiedade iniciará mais cedo, em torno dos 11 anos, e os de humor, mais tarde, após os 30 anos. Antes de nos alongarmos muito nesses ou em outros estudos com dados quantitativos sobre a distribuição populacional dos diagnósticos psiquiátricos, cabe a pergunta: como são feitos esses estudos de prevalência? Quais as suas limitações no caso dos diagnósticos psiquiátricos? O cálculo da prevalência é muito usado em saúde pública, porque ajuda a definir a magnitude do problema, a necessidade de recursos investidos, de profissionais, de medicamentos, além do impacto que esse problema pode causar para a economia pelos dias de afastamento do trabalho, por exemplo. Uma prevalência de depressão entre 10 a 20% da população significaria dizer que hoje no Brasil teríamos entre 20 e 40 milhões de deprimidos. No mundo todo, seriam mais de 600 milhões de pessoas. Mas como se calcula a prevalência? A prevalência pode ser estimada por amostragem ou calculada pela soma dos casos identificados. A prevalência do câncer de colo do útero é a razão dos casos identificados pelo exame anátomo-patológico 189 para um denominador que pode variar, geralmente em múltiplos de 100, como 1000, 10 mil ou 100 mil pessoas. Patologias que possuem uma identificação dura, um marcador biológico confiável, terão sua prevalência calculada pela notificação dos profissionais de saúde em sistemas de informação específicos. É o que ocorre com os cânceres e também com muitas doenças infecciosas, como cólera, tétano, sífilis na gestação, entre outras. O diagnóstico de depressão, assim como a maioria dos transtornos psiquiátricos não conta com um marcador biológico confiável ou com um quadro clínico suficientemente claro que permita a notificação imediata por qualquer clínico de um país ou do mundo (CAPONI, 2009). Assim como a maioria dos cânceres ou a presença do vírus HIV, a quantidade de pessoas pretensamente acometidas pelo que se chama depressão provém de estudos transversais em um determinado grupo populacional. No caso da prevalência de HIV estima-se por grupos populacionais que se submetem ao teste e se generaliza o resultado para a população. Em relação aos diagnósticos psiquiátricos, como o da depressão, é bem mais complicado. Há vários questionários validados para calcular a prevalência de distintos transtornos psiquiátricos em grupos populacionais. No caso da depressão o mais conhecido é o Inventário de Depressão de Beck (BDI). A primeira versão foi desenvolvida em 1961 e revisada em 1978 e em 1996. O BDI é composto por 21 questões, com pontuações que variam de 0 a 3 em cada uma delas, que abordam os sintomas e o tempo de evolução de acordo com o que indica o DSM. O BDI pode ser utilizado não somente para calcular a porcentagem ou prevalência de pessoas com depressão em um determinado grupo, bem como para se fazer diagnósticos individuais e, ainda, para acompanhar a pessoa e sua pontuação com os diferentes tratamentos. A pontuação é traduzida em depressão leve (14 a 19), depressão moderada (20 a 28) e depressão severa (20 a 63). O BDI, assim como a escala de Hamilton e outros questionários são validados por meio de um teste mais específico, que costuma ser chamado de padrão-ouro. É o que ocorre, por exemplo, com o teste de Papanicolau ou citopatológico do colo do útero, cuja sensibilidade e especificidade são calculadas por meio de um teste melhor, que é a biópsia e o anatomopatológico do colo do útero. A dificuldade no caso dos problemas psiquiátricos é não ter um marcador biológico confiável, portanto, esses questionários serão testados por profissional de saúde avaliando pessoalmente aqueles que o responderam baseando-se no DSM-IV ou no CID-10. 190 De todo modo, são questionários como esse que fornecem os dados sobre a prevalência de depressão. Dowrick e Buchan (1995) fizeram um interessante estudo em Liverpool em que aplicaram o BID para 1444 pessoas que aguardavam na sala de espera uma consulta com seu MFC. Dessas, 179 foram selecionadas por apresentarem um escore positivo para depressão, mais de 14 pontos. Os autores da pesquisa reaplicaram o BID para essas mesmas pessoas após 6 e 12 meses e, além disso, avaliaram os seus prontuários médicos para saber se o tema da depressão surgia de alguma forma nas consultas. Curiosamente, o grupo que obteve os melhores resultados no seguimento, ou seja, que a pontuação caiu mais no BID, foi aquele cujo diagnóstico de depressão não foi feito pelo MFC e nem sugerido pelo paciente. Os casos que foram diagnosticados e tratados, seja com psicoterapia ou com medicamentos mantiveram a mesma pontuação ou tiveram uma queda menor do que a do grupo não-diagnosticado. Por isso, Dowrick e Buchan (1995, p.1276) concluem nesse estudo que o: “Diagnóstico de depressão não-detectada não melhora o prognóstico. Um diagnóstico de depressão na prática geral (MFC) deveria ser considerado simplesmente como um marcador de severidade“. O que apontam os autores nesse estudo não é diferente do que nos diz Ian Hacking (1999, p. 113) sobre o impacto de um diagnóstico médico ou de uma classificação para uma pessoa. Ao darmos um nome ou um adjetivo a um objeto qualquer não haverá maiores consequências, mas quando se trata de um humano, inevitavelmente essa categoria passará a dialogar com ele e interferirá de algum modo em sua vida. No caso de um diagnóstico de depressão, especialmente da forma como a medicina e a psiquiatria o apresentam atualmente, muitos dos dissabores, frustrações e escolhas tomadas por essas pessoas passarão a ser atribuídas a esse estado patológico bastante delimitado e bem definido que habitaria algum lugar do seu cérebro. Os dados sobre a prevalência de depressão tem gerado, portanto, duas avaliações distintas. Uma voltada para os clínicos que atendem a maioria das pessoas em todo mundo, que é a do subdiagnóstico. Cruzam-se os dados dos estudos de prevalência com a quantidade de diagnósticos feitas por esses médicos e rapidamente se conclui que em torno de 50% de prováveis depressivos não estariam sendo diagnosticados. A outra, é uma crítica ao critério classificatório, que é a do sobrediagnóstico, que se baseia em estudos como o de Dowrick e Buchan (1995). Kessler (2005, p. 601), em relação a essa última crítica, rebate que a “alta prevalência estimada em estudos psiquiátricos prévios tem 191 sido fonte de duas preocupações de analistas de política em saúde mental. A primeira é que as estimativas são tão altas que seriam cientificamente implausíveis.” Sobre essa preocupação, Kessler (2005) concluirá que estudos de 12 meses de seguimento de quadros considerados leves ou moderados demonstraram “prejuízos semelhantes àqueles causados por doenças físicas crônicas”, o que tornaria difícil estreitar os critérios diagnósticos em futuras edições do DSM. O outro argumento oferecido por Kessler (2005) nesse texto para manter os critérios diagnósticos atuais, que colocariam até metade da população como afetadas por algum transtorno de saúde mental em algum período de suas vidas, é o de que não há que se preocupar tanto com o rigor da classificação diagnóstica porque afinal nem todos precisariam de tratamento. O que é uma explicação bastante curiosa, o critério não pode ser menos inclusivo porque os casos leves representam suficiente carga de sofrimento para precisar de atenção médica e o fato de incluir metade da população não chega a ser um problema porque há muitos casos que são leves e não precisarão de tratamento. Para Horwitz e Wakefield (2007, p. 128) é uma consequência ainda mais perigosa dessa descontextualização da categoria diagnóstica de depressão a utilização que é feita pela disciplina de epidemiologia psiquiátrica: “De fato, o problema é pior nesses estudos comunitários porque eles não levam em conta o grau de severidade, duração, e outros requerimentos – ou seja, o grupo de critérios extendidos – que o DSMIII teve trabalho para identificar.” Por conta disso, muitos outros estudos foram feitos para avaliar as consequências de haver uma intervenção médica ou não naqueles pacientes identificados por acaso como depressivos nessas pesquisas. Goldberg e cols. (1998, p. 1843), por exemplo, dirão que: Casos não reconhecidos de depressão em APS tem, como um grupo, doenças menos severas em relação a importantes aspectos: eles têm menos sintomas de depressão, experimentam seus primeiros sintomas mais recentemente, e seus episódios prévios duraram menos tempo. Nossa falha em demonstrar que a não-identificação de depressão tem sérios efeitos mensuráveis não quer dizer, claro, que não havia depressivos no grupo que teria sido beneficiado pelo tratamento; contudo, esses pacientes provavelmente ficaram escondidos pelos pacientes que não se beneficiaram do tratamento, e que posteriormente 192 contribuíram para um desfecho pior no grupo tratado. (...) Contudo, o grupo como um todo foi melhor que o de casos identificados, e, um ano depois, mais provavelmente não sofria mais de depressão. O que Goldberg e cols. (1998) encontraram, assim como já demonstramos por meio do trabalho de Dowrick e Buchan (1995) é que o critério diagnóstico do DSM e os questionários validados com base nele definem como casos de depressão, pessoas que de acordo com os mesmo critérios deixarão de ser depressivas em um ano sem que qualquer intervenção médica tenha sido realizada. Essa definição do diagnóstico de depressão e os posteriores cálculos de prevalência promovem ainda um grande efeito sobre os médicos, que é a mensagem reiterada de que casos de depressão estão escorrendo por entre seus dedos. A maioria dos tratados de medicina, dos artigos psiquiátricos voltados para o tema da depressão, assim como textos da Organização Mundial de Saúde (OMS), destaca no início a enorme quantidade de pessoas com depressão que não estão sendo diagnosticadas, especialmente na APS. 6.2 RASTREAMENTO: A BUSCA DE CASOS NA POPULAÇÃO O que se define como rastreamento é a aplicação de testes ou intervenções para determinados grupos populacionais com o objetivo de identificar problemas de saúde antes que haja uma manifestação clínica sintomática, ou seja, antes que o portador dessa alteração sinta algum desconforto ou algum sinal estranho em seu corpo. Essa é uma das estratégias da medicina preventiva e não é isenta de controvérsias, poucas são as situações clínicas que claramente são beneficiadas por alguma intervenção ou exame precoce. No caso dos transtornos psiquiátricos parece ainda mais complicado, mesmo assim há algumas propostas. Para tentar identificar pessoas com depressão, por exemplo, diversos textos voltados para profissionais da APS têm recomendado o uso de perguntas que seriam feitas para quaisquer pessoas que procurassem atendimento, independentemente do que tenha motivado a consulta. Assim como se pode orientar a uma mulher que venha consultar por dor de cabeça que faça o exame preventivo do colo do útero, seriam feitas perguntas para pesquisar se há ou não sintomas depressivos. As duas questões recomendadas para o rastreamento iniciam com “durante as últimas duas semanas, você tem”: 1. tido menor 193 interesse ou prazer em fazer as coisas? e; 2. se sentido para baixo, deprimido ou sem esperança? Um estudo demonstrou que essas questões apresentam uma sensibilidade de 97% e uma especificidade de 67% (ARROLL e cols., 2003), resultado que associado à prevalência do problema e às possibilidades de sucesso das intervenções têm feito com que diversas instituições recomendem o rastreio, como o americano United States Preventive Service Task Force (USPSTF). O USPSTF, em revisão de 2009 sobre o tema, faz as seguintes recomendações para os profissionais de saúde: O USPSTF recomenda o rastreio de adultos para depressão quando há profissionais assessíveis para oferecer suporte para depressão para garantir um diagnóstico acurado, tratamento efetivo e seguimento. Grau: recomendação B. O USPSTF recomenda contra o rastreio rotineiro de adultos para depressão quando não houver profissionais para oferecer suporte para os casos de depressão. Pode haver considerações que suportam o rastreio de depressão em um paciente individual. Grau: recomendação C. Novamente, o problema que vemos aqui é o da construção de hipóteses e intervenções a partir de uma fragilíssima base conceitual de doença. Nessa pesquisa, Arrolls e cols. (2003), utilizam as duas questões para uma população geral de consultantes da APS, separam aqueles cujas respostas foram positivas e negativas e aplicam para todos outros questionários já validados para o diagnóstico de depressão (como o BID, que já apresentamos acima). A sensibilidade resultará da fração dos que obtiveram resposta positiva no teste de duas questões e que verdadeiramente teriam depressão reconhecida por outros testes, como o BDI. E a especificidade seria a fração daqueles que obtiveram resposta negativa no teste de duas questões e que não possuem a doença, de acordo com o BDI. O que Arrolls e cols. (2003) nos demonstram, portanto, com sua pesquisa é que o teste de duas questões consegue detectar a maioria das pessoas com sintomas depressivos, mas uma terça parte delas não chegaria ao diagnóstico de depressão, apesar de apresentarem um resultado positivo no teste. 194 O problema aqui não se restringe apenas ao do conceito de doença, que abordaremos mais aprofundadamente ao discutirmos o diagnóstico, mas avança também em direção ao de intervenções coletivas. A proposta do rastreamento é calcada na ideia de abordagem populacional. Diferentemente das ações médicas que surgem como resposta a uma demanda individual de um consultante, o rastreio ou check-up é uma ação que vários profissionais de saúde realizarão ou proporão para um grupo de pesssoas independentemente do motivo de consulta ou de uma queixa específica. Essas intervenções coletivas de rastreamento ou de prevenção de doenças estão sujeitas ao seguinte enunciado: todos sofrerão as consequências negativas dos testes ou medidas mas apenas alguns serão beneficiados. Isso vale para a fluoretação da água, para o exame de Papanicolau, para a mamografia, etc. Em relação ao rastreio de depressão, além das fragilidades do critério diagnóstico daqueles que realmente apresentam sintomas depressivos, teríamos as consequências dos falsos positivos, ou seja, de sobrediagnosticar pessoas que nem passam por sofrimentos intensos e, ainda, o de ficar induzindo todos os consultantes a pensar que podem estar tristes e indispostos. Por todos esses aspectos, Gilbody e cols. (2006), que falam em nome do National Screening Committee, entidade britânica vinculada ao sistema nacional de saúde que define as recomendações de rastreamento para todos os profissionais de sua rede, consideram que não vale a pena rastrear para depressão: Rastreamento oportunístico e populacional para depressão não preenchem completamente os critérios do National Screening Committee. Contudo, assumiu-se que o rastreio para depressão deveria ser recomendado, baseado na prevalência da desordem, nas propriedades psicométricas das ferramentos de rastreio, e na disponibilidade de intervenções efetivas na forma de drogas. Os critérios do National Screening Committee provém um quadro analítico que ajuda a focar a discussão em como melhorar o inadequado manejo da depressão. Rastrear depressão é uma diversão inútil das questões mais fundamentais sobre as maneiras mais eficientes e efetivas de organizar e oferecer atenção à saúde. Rastreio deveria somente ser considerado como parte de um pacote de cuidado 195 ampliado. Sem isso, o movimento para implementar o rastreio estará associado com aumento dos custos sem benefício. Apesar da recomendação de diversas instituições para que se realize esse rastreio, na prática ele é pouco realizado, mas nos serve para sinalizar os caminhos que vêm sendo construídos em torno da depressão para legitimá-la como uma verdadeira entidade nosológica. 6.3 O RISCO DE VIR A TER DEPRESSÃO Como se não bastassem todas as dúvidas em relação à identificação da população supostamente afetada por esse rótulo diagnóstico, há uma investida ainda mais ambiciosa que é a da identificação precoce dos futuros casos de depressão. A exemplo do que já ocorre com o tema do risco cardiovascular em que se calcula a probabilidade futura de um indivíduo vir a ter um infarto do coração, o grupo em torno do projeto denominado como PredictD pretende o mesmo com a depressão. PredictD, termo que associa o verbo predizer com o “D” de depressão, é uma iniciativa conjunta de prossionais de saúde mental e da APS, como se pode ler na página que anuncia o projeto e em que se pode calcular o seu risco de depressão: O grupo de pesquisa predictD é formado por profissionais de saúde mental e acadêmicos da Europa e América do Sul que realizam pesquisa em predizer o risco de depressão. O estudo foi liderado pelos professores Michael King e Irwin Nazareth no Research Departments of Mental Health Sciences and Primary Care and Population Health at University College London, e foi financiado principalmente pelo Programa de Pesquisa da Comissão Européia (PREDICTD, 2011). O estudo (a coorte) que baseou o desenvolvimento dessa ferramenta foi realizado entre 2003 e 2005 em clínicas ou centros de APS em 6 países da Europa e no Chile. Os pesquisadores mediram inicialmente 39 fatores de risco conhecidos para depressão maior (de acordo com o DSM-IV) e desenvolveram uma calculadora em que a partir de dados gerais chega-se a um valor que é a probabilidade de ter depressão nos próximos doze meses. King e cols (2008, p.1368) que 196 realizaram a pesquisa concluem: “o algoritmo de risco para depressão maior se compara favoravelmente aos algoritmos de risco para a predição de eventos cardiovasculares e pode ser útil em prevenir a depressão em espaços de prática médica geral”. A comparação com o algoritmo de risco cardiovascular provém do sucesso (também não isento de controvérsias) do uso dessa ferramenta na prática clínica. Diversas intervenções medicamentosas, como o uso de medicamentos para baixar o colesterol ou anti-agregantes plaquetários, baseiam-se no cálculo do risco que cada indivíduo tem nos 10 anos seguintes de vir a ter um infarto do miocárdio ou um acidente vascular cerebral. O algoritmo para o cálculo do risco cardiovascular foi desenvolvido na famosa coorte de Framingham, que desde a década de 1960 acompanha milhares de pessoas com o objetivo de fazer associações entre estilos de vida, valores de exames laboratoriais e eventos cardiovasculares, como infartos ou derrames cerebrais. O cálculo do risco serve para o profissional de saúde discutir com o consultante as vantagens ou desvantagens de determinadas intervenções. Os principais fatores de risco identificados pelo PredictD estão relacionados à idade, sexo, história familiar de depressão, estado civil, condições financeiras e de moradia. A associação entre fatores socioeconômicos e sintomas de sofrimento é interessante e reforçaria a ideia de que não se trata de um problema determinado biologicamente, mas não é o que parece ocorrer aqui. A ideia por traz da ferramenta parece ser a de identificar qual é a população mais suscetível de ser atingida por essa doença, assim como se estudam fatores relacionadas ao desenvolvimento de doenças infecciosas. E isso ocorre porque apesar de haver um olhar para o contexto social, não se abre mão da ideia da depressão como uma entidade nosológica bem delimitada, tão real como a tuberculose. O enfoque aqui não nos leva a uma abordagem que valorize ou que aprofunde a análise de porque determinadas condições sociais provocam mais ou menos sofrimento e como poderíamos lidar com essas situações, mas trata-se simplesmente de procurar alertar os profissionais de saúde para não deixar passar diagnósticos de depressão e tratá-los. 6.4 ENFIM, O DIAGNÓSTICO O tema do diagnóstico de depressão esteve por trás de toda a discussão feita até o momento, porque é a partir dele que se constróem todas as possibilidades que vimos, de uma descrição da distribuição populacional dos casos, das propostas de rastreamento, do cálculo do risco e, ainda, das intervenções terapêuticas e dos desfechos 197 indesejáveis. Mas o principal é de fato essa categorização que em algum momento é feita entre um profissional de saúde e um consultante (ou feita pela própria pessoa que sofre, o que tem sido bem comum) em que se diz: “veja, o que você tem é uma depressão”. Como foi observado na pesquisa de campo, mas também em todos esses anos como profissional de saúde que atende muitas pessoas com sofrimentos diversos, as descrições de quem sofre sobre o que sente são bastante heterogêneas e complexas. A própria narrativa costuma ser bastante caótica, o que dificulta compreender o processo, à diferença de uma amigdalite ou de um trauma no tornozelo, em que não é difícil divisar o começo, a evolução, os sintomas. Balint (2005) já alertava para essa dificuldade ao dizer que na abordagem ao sofrimento o mais importante é o exame pelo paciente já que não dá para conduzir a consulta da mesma forma que em uma queixa pontual, mais bem delimitada. Vejamos um exemplo da pesquisa de campo que demonstra bastante bem uma situação de sofrimento comum da APS e, como de costume, com sintomas bastante variados e um contexto escorregadio demais para se pensar em termos de determinantes. No 9º minuto de consulta, Nilce traz um 2º motivo de preocupação para Dra. Suzana. O primeiro tratava da menopausa. Nilce diz: “e outra coisa que eu queria falar para a Sra, é que:” tô meio preocupada, falei com a menina da pressão, essa semana me deu uma falta de ar, tava com a minha família e eu, tipo assim, senti como se fossem umas formiguinhas no coraçao, ia e voltava, tipo uma bola, meu irmão ficou assustado, eu fiquei parada, queria respirar e não conseguia. Me dava aquele negócio assim, sabe? como se meu coracao [gesticula com as mãos, como se o coração batesse rápido]. Me disseram que se eu for no Rio Tavares, na emergência, eles fazem um eletro, e que se for encaminhar para fazer exame demora um pouco, pra eu poder tirar uma dúvida. Ontem tava no centro, como já estava com essa dor, comecei a me sentir mal, como se fosse desmaiar, e coração fazia um... Tô com medo. Como entrei na menopausa. Nunca senti nada no coração. Já me encaminharam pra fazer tratamento para deixar o cigarro. Suzana: Tinha acontecido alguma coisa contigo, em casa, você estava bem? 198 Nilce: Eu tava bem, comecei a fazer a comida e aí comecei a passar mal. Tá todo mundo preocupado. Eu tô preocupada com isso. Me disseram que lá no Rio Tavares, eles tem aparelhagem. Suzana: é.... Nilce: E a gente fica preocupada, já estou com 49 anos. Tenho dois pequenos. Ah, mas eu tenho muita coisa, eu enfrentei ó! Tenho uma angústia muito grande com a morte do meu filho, que perdi com 18 anos, e nunca tomei nenhuma medicação. Tenho tudo guardado. Acho que é muita coisa, muito sofrimento que eu tive. Nunca fui no psicólogo, nunca pude desabafar, diz que é bom, né? Tirar essas coisas que a gente têm dentro. Mas quem tem dois pequenos, né? Tudo da casa, é tudo em mim. Mas agora tenho que pensar um pouco em mim. A conversa de Suzana com Nilce foi bastante aberta, sem interrupções nem conduções demasiadas. Talvez essa postura tenha permitido que a própria Nilce pudesse saltar do seu mal estar físico, as sensações estranhas no peito, para todo um contexto de sofrimento: a perda precoce de um filho, a sobrecarga em casa, a dificuldade para extravasar seus sentimentos. A consulta terminou sem um pedido de eletrocardiograma, sem nenhum diagnóstico psiquiátrico, mas permitiu em parte o desabafo de Nilce, algo que ela mesma diz ser bom e raro. Essa mesma consulta poderia ter tido um desfecho bem distinto. Não seria difícil para um psiquiatra bem treinado classificar ao final a Nilce como portadora de um transtorno de ansiedade generalizada, um transtorno depressivo, ou um transtorno misto depressivo e ansioso. E nesse caso, provavelmente haveria um tensionamento entre o psiquiatra, um bom representante dessa nova psiquiatria e a Suzana. Ele(a) poderia dizer, e se estamos diante de um caso de depressão crônica persistente? Quais as consequências de não fazermos esse diagnóstico? Deixar essa mulher sofrer da depressão sem lhe dar a opção de tratamentos que são, comprovadamente, eficazes? E se ela pensa em cometer um suicídio? Qual o impacto de não se abordar isso na consulta? Na APS, quando vem alguém com um sofrimento intenso, a ponto de se tornar o motivo da consulta, a sua apresentação não costuma ser clara, nem direta. São dores no corpo, vagas, que não indicam nenhum caminho clínico específico, angústia, ansiedade, irritabilidade, 199 tristeza, falta de disposição, enfim, uma ampla gama de sintomas de desconforto. E aí há muitos recortes interessantes que poderiam ser feitos para análise, mas separemos dois: qual a influência dos padrões culturalmente aceitos para sofrer nos sintomas com que se depara? E como os critérios classificatórios interferem no olhar de quem separa os sintomas para eleger entre esse ou aquele rótulo? Seria demais explorar nesse espaço, mas onde foram parar os neuróticos, as histéricas, os hipocondríacos, os nervosos e nervosas com quem os médicos conviviam até há bem pouco tempo? Quanto dessa mudança é devida às transformações que vemos no modo de vida das pessoas, nos costumes, na visão de mundo? Quanto deve-se à própria biomedicina e a essa neuropsiquiatria? Para Roudinesco (2000, p. 17), o que tem se chamado depressão não é apenas resultado de ondas que se propagam desde um núcleo biomédico ou neuropsiquiátrico, mas dirá que: Às vésperas do terceiro milênio, a depressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo que se multiplicam os tratamentos para oferecer a cadsa consumidor uma solução honrosa. É claro que a histeria não desapareceu, porém ela é cada vez mais vivida e tratada como uma depressão. Ora, essa substituição de um paradigma por outro não é inocente. A substituição é acompanhada, com efeito, por uma valorização dos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente. Nesse trecho, vemos que Roudinesco (2000) faz uma breve análise tanto do momento do sujeito na sociedade, em que os sintomas depressivos parecem ser a manifestação mais legítima e privilegiada de manifestação do sofrimento, quanto de como a biomedicina e áreas da psicologia atuam diante desse que sofre. Seguramente, não é fácil encontrar como chegamos onde chegamos, mas o que se vê é que o que se chama depressão ocupou de forma hegemônica esse lugar fundamental em qualquer cultura, que é o lugar do sofrer permitido. E os porteiros destacados desse espaço são os profissionais de saúde, especialmente os médicos, mais especialmente ainda, os médicos de família. Há uma clara desculpabilização nesse processo, que deve ter seus efeitos terapêuticos. Assim como o que também ocorre com o 200 alcoolismo, que ao se transformar em doença, muda a relação profissional de saúde-paciente e retira a ideia de escolha moral do jogo, o mesmo se dará com outros diagnósticos psiquiátricos. Até há 20 anos ou menos, depressão era considerada, e ainda se ouve falar nisso, uma frescura, uma fraqueza, coisa de gente rica, diriam alguns. Não era portanto uma forma facilmente aceita pelos demais como legítima para sofrer. No momento em que se transforma em uma doença orgânica, uma alteração neuroquímica geneticamente programada para acontecer em algum momento da sua vida, a despeito de suas dificuldades pessoais, não há mais porque se esconder. Fortes e cols. (2008) realizou um estudo em vários CS de uma cidade do estado do RJ, utilizando um questionário padronizado (o General Health Questionaire 12 itens) que rastreia diversos problemas de saúde mental, diferentemente de outros questionários que separam os sintomas para classificar transtornos específicos. Qual não foi sua surpresa ao perceber que a maioria das pessoas poderiam ser classificadas em mais de um transtorno, especialmente os de ansiedade e os de humor. A sua conclusão foi que na APS, à diferença dos ambulatórios especializados de saúde mental, os problemas ainda são muito inespecíficos, por isso essa mistura. A conclusão de Fortes e cols. (2008), no entanto, é curiosa, pois não fala da construção desses frágeis edifícios nosológicos da psiquiatria, como parece demonstrar sua própria pesquisa. Os autores direcionam sua explicação sobre os próprios achados para outro lugar, ao dizerem que na Atenção Primária, nos Centros de Saúde, os problemas são mais indiferenciados e deveriam ser classificados como Transtornos Mentais Comuns (TMC), em que a regra é uma mistura, uma confluência, uma intersecção entre os transtornos psiquiátricos mais comuns. Não nega portanto toda a lógica subjacente à construção dos diagnósticos psiquiátricos, simplesmente sugere um rearranjo entre eles. Do mesmo modo, o NICE (National Guideline for Clinical Excellence, 2005, p. 18), principal referência britânica para orientações clínicas nos dirá em relação à depressão que: “A visão do grupo que desenvolveu esse protocolo é de que se trata de uma categoria muito ampla e heterogênea e tem validade limitada como base para planos de tratamento efetivos. O foco nos sintomas apenas não é suficiente porque uma ampla gama de fatores biológicos, psicológicos e sociais tem um significativo impacto na resposta ao tratamento e não são capturados pelo sistema atual de diagnóstico.” Parece haver um reconhecimento, portanto, entre muitos profissionais da saúde e pesquisadores sobre a excessiva abrangência da 201 categoria diagnóstica de depressão, mas porque apesar disso ela se mantém e ganha mais força? Veja, por exemplo, o que nos diz a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2011) sobre isso: Depressão é um transtorno mental comum que se apresenta com humor deprimido, perda do interesse ou prazer, sensação de culpa ou baixa auto-estima, perturbação do sono ou do apetite, baixa energia, e pobre concentração. Esses problemas podem se tornar crônicos ou recorrentes e lever a prejuízo substancial da habilidade individual para cuidar de si ou de suas responsabilidades. E o pior, depressão pode levar ao suicídio, uma fatalidade trágica associada com a perda de aproximadamente 850 000 vidas todos os anos. Depressão é a principal causa de disability como medido por YLDs e o 4o. contribuidor para a carga global de doenças (DALYs) no ano 2000. No ano 2020, depressão deve atingir o 2o. lugar no ranking de DALYs calculado para todas as idades, ambos os sexos. E o diagnóstico de depressão vai, desse modo, se tornando cada vez mais popular e já ocupa largamente o senso comum das pessoas de todas as classes sociais. Onde antes havia os nervos ou a melancolia, agora temos a depressão. A diferença é que para os nervos ou para a melancolia não havia uma medida ou um antídoto tão hegemônico como tem sido os antidepressivos para a depressão. Talvez esteja aí uma das explicações para a força desse rótulo diagnóstico a despeito de todas as fragilidades já mencionadas. Para Martínez Hernáez (2000), a psiquiatria avança na identificação com a biomedicina apesar das dificuldades de se situar em relação a essa: a) A dificuldade em estabelecer os processos fisiopatológicos específicos que produzem a maioria dos transtornos mentais. b) Os obstáculos a uma intervenção direta e precisa sobre as vias etiopatogênicas. c) A debilidade dos critérios diagnósticos e as taxonomias existentes. d) O enlace especial que se produz nos transtornos mentais entre o órgão alterado (o cérebro) e a consciência do paciente; um lugar em 202 que a realidade biográfica (relato do paciente) e domínio biológico (alterações neuroquímicas) parecem encontrar-se. E desse casamento que alia, como frisava Roudinesco (2000), o momento do sujeito na (pós)modernidade ao modo como a psiquiatria vem organizando seu próprio objeto de conhecimento e prática e, não menos importante, o interesse econômico que uma indústria como a de medicamentos para sofrimentos subjetivos gera vemos erguer-se cada vez mais o edifício da depressão e de outras categorias diagnósticas. 6.5 AS DIFERENTES CATEGORIAS A construção do diagnóstico de depressão não passa somente pela separação entre o que é e o que não é um caso, mas também por subclassificações internas, em relação à gravidade do quadro, o tempo de duração e a quantidade e frequência de episódios ao longo da vida. As categorias mudam de acordo com a instituição que classifica e as duas mais conhecidas são: o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM) e o Código Internacional de Doenças (CID). Além desses, mais utilizados em todo o mundo, há a Classificação Internacional de Atenção Primária (ICPC), que simplifica as subclassificações do CID e cria novas mais próximas da prática do médico geral. Segundo o DSM-IV, o diagnóstico de depressão poderia se subdividir de acordo com a gravidade e característica dos sintomas, em leve, moderado ou severo, com ou sem sintomas psicóticos e, ainda, se com características catatônicas, melancólicas ou atípicas. De acordo com o estágio do seguimento, se em remissão parcial ou completa. E, ainda, ao visualizar a distribuição dos sintomas ao longo do tempo, se se trata de um quadro crônico. O CID-10 utiliza a noção de episódios depressivos em vez da depressão maior do DSM, mas a mesma graduação para gravidade em leve, moderado e grave. Do mesmo modo, a diferenciação quando há ou não sintomas psicóticos. Em vez de depressão crônica, a classificação baseada em episódios do CID define os quadros persistentes como recorrentes. E em relação ao seguimento dos sintomas, utiliza a ideía de remissão. O ICPC, como dizíamos, parte do CID, mas simplifica todas essas variáveis classificatórias em apenas duas. A primeira baseia-se no motivo da consulta e revela principalmente a demanda do consultante, que no caso poderia ser a de tristeza ou a de sensação de depressão. E a 203 segunda, a avaliação do médico ou profissional de saúde que em vez de todas aquelas subclassificações dos códigos anteriores, colocaria apenas perturbações depressivas. Tanto o ICPC quanto o CID parecem mais preocupados em classificar apenas os sintomas sem partir daí para o estabelecimento de um transtorno ou síndrome mais concreta, vide a utilização de episódios ou perturbações depressivas. Já o DSM parte dos sintomas para uma síntese em torno da depressão maior. As subclassificações do diagnóstico de depressão seguem o caminho de reforçar sua construção como entidade nosológica. Como vimos, especialmente o DSM cumpre essa função ao buscar diferenciações concretas entre categorias de gravidade, de tempo ou de sintomas acessórios. O CID e o ICPC são menos medicalizantes nesse sentido, pois permitem aos profissionais lidar com os sintomas sem precisar de um diagnóstico. 6.6 SOBRE O TRATAMENTO Os estudos sobre as propostas terapêuticas para o diagnóstico de depressão acabam servindo como mais uma demonstração da fragilidade diagnóstica dessa categoria. Apesar disso, a WHO (2011) mais uma vez nos dirá que: Depressão pode ser facilmente diagnosticada na APS. Antidepressivos e formas de psicoterapia breves, estruturadas são efetivas em 60-80 % para os afetados e podem ser realizadas na APS. Contudo, menos de 25 % desses (em alguns países menos do que 10 %) recebem esses tratamentos. Barreiras ao efetivo cuidado incluem a falta de recursos, falta de provedores treinados, e o estigma social associado com os transtornos mentais, incluíndo depressão. Há uma série de controvérsias em relação às propostas terapêuticas para depressão que tentaremos demonstrar nessa parte. De todo modo, o excerto da WHO serve para ver que há uma pressão para a expansão do uso de antidepressivos. As psicoterapias breves, que aparecem também como efetivas nos ensaios clínicos, não são facilmente exequíveis na APS, diferentemente do uso de medicamentos, que restaria como a opção mais fácil para os profissionais de saúde. 204 Os principais estudos realizados para testar a eficácia das intervenções são os ensaios clínicos. O primeiro passo nessas pesquisas é separar as pessoas com um determinado diagnóstico e, em seguida, dividir em 2 ou mais grupos que receberão diferentes opções de tratamento. O mais comum é que um grupo seja o controle, aquele que não receberá nada ou algo que simule o tratamento para diminuir a influência do efeito placebo, e o outro grupo receberá a intervenção que está sendo testada. Um exemplo que reforça a fragilidade diagnóstica da depressão é o fato de que nesses ensaios clínicos, inúmeras medidas têm se demonstrado eficazes para a melhora dos sintomas depressivos, como atividade física, ervas e diversas formas de psicoterapias (vide tabela abaixo). Terapêutica Seguimento usual com MFC TRP Recomendação Estudos demonstram bons resultados a longo prazo Existem boas evidências que a Terapia de Resolução de Problemas(TRP) realizada pelo MFC é efetiva na melhora dos sintomas depressivos. Terapia Cognitivo Comportamental(TCC) é efetiva no tratamento da depressão. A Atividade física é uma opção de tratamento efetivo para depressão em adultos. Comentário A TRP em combinação com antidepressivos não é mais efetivo que cada tratamento em separado Estudos demonstraram que a TCC quando comparada ao placebo e ao não tratamento mostra-se superior. O exercício melhora os sintomas depressivos em pessoas com diagnóstico de depressão. Porém mais estudos devem ser realizados para obter estimativas mais precisas do tamanho do efeito, e para determinar os riscos e custos. TCC Atividade física Fitoterápicos- Erva de São João – Hipérico A erva de São João é superior ao placebo e de eficácia semelhante aos 205 antidepressivos no tratamento da depressão. E tem menos efeitos colaterais comparada aos antidepressivos padrão. ISRS Os antidepressivos inibidores da receptação de serotonina são efetivos no tratamento da depressão quando comparados a placebo Tricíclicos Os antidepressivos Baixas doses de tricíclicos são efetivos no antidepressivos tratamento da depressão tricíclicos são eficazes quando comparados a no tratamento da placebo. depressão. Tabela 8.1 Principais terapias testadas para sintomas depressivos e seus resultados (adaptado de Poli Neto, P e Lazzari Freitas, F. Tratado de MFC, 2011) Um dos principais vieses nos ensaios clínicos com medicamentos é que eles são patrocinados pelos laboratórios que desejam testar seus medicamentos e as condições em que são feitos esses estudos, em termos de seleção de voluntários, atenção clínica, seguimento são bastante diferentes dos espaços reais de prática (KIRSCH e cols., 2008, p. 261). Há pouquíssimos estudos que avaliam o uso a longo prazo desses medicamentos, em geral se restringem a 6 ou 12 meses. E vem daí uma das principais recomendações para o tratamento que é a do uso de dose terapêutica após o diagnóstico que varia entre 6 e 9 meses. Essa estratégia tenta passar a ideia de que o medicamento não será usado continuadamente e que funciona como um antibiótico que resolverá o problema em um tempo determinado e depois deixará de ser usado. Talvez seja útil lembrar que os antidepressivos surgem logo após a onda do uso dos ansiolíticos (especialmente os benzodiazepínicos) que caía progressivamente em descrédito junto aos médicos porque ficava cada vez mais clara sua ineficácia a longo prazo. Mas o que se vê na prática é que à diferença do esquema preconizado, de uso contínuo por 6 a 9 meses e retirada, a maioria das pessoas acabam usando-no por mais tempo e, muitas vezes, como um sintomático, como se o seu efeito resultasse apenas da ingestão daquela pílula e não do efeito acumulado ao longo do tempo. 206 É provável que estudos de seguimento a longo prazo, ecológicos, acompanhando situações reais possam nos trazer algum dia descrições mais próximas daquilo que temos visto na APS. E longe dos ensaios clínicos controlados, randomizados, a utilização dos antidepressivos, que se dá em larga escala, parece bem mais caótica do que os protocolos de tratamento preconizados nos tratados clínicos. Maior duração do que a prevista, menores doses, combinações de diferentes classes de medicamentos parece nos levar à conclusão de que os antidepressivos funcionam mais como sintomáticos do que como um antídoto à medida de uma doença concreta. KIRSCH e cols. (2008) estudaram todos os ensaios clínicos utilizados para a aprovação de antidepressivos pelo US Food and Drug Administration (FDA) e concluíram que mesmo para os casos considerados graves o efeito dos antidepressivos é muito pequeno. Para chegar a essa conclusão, os autores precisaram comparar o efeito do medicamento com outros grupos que recebiam um placebo que provocasse efeitos colaterais, pois perceberam que o grupo que recebia o antidepressivo era influenciado pelos efeitos colaterais da medicação e percebia que era o grupo-tratamento. Como se não bastassem as dificuldades em relação ao tratamento medicamentoso, o que os diversos estudos demonstram é que para aqueles casos classificados como leve ou moderados terapias muito distintas têm o mesmo desfecho. Erva de São João, atividade física, seguimento usual com o MFC e diferentes técnicas de psicoterapia como a de resolução de problemas, a cognitivo-comportamental ou o aconselhamento geral apresentam níveis de melhora semelhantes aos dos antidepressivos. Antes de provar a eficácia dessas distintas terapias, parecem apenas confirmar a fragilidade da entidade nosológica que se quer definir. 6.7 DESFECHOS O suicídio tem sido apontado como o desfecho indesejado de transtornos psiquiátricos. De acordo com Maris (2002), até 90% das pessoas que se suicidam teriam algum diagnóstico psiquiátrico e as perturbações depressivas representariam a maioria desses casos. Essa não é uma associação difícil se imaginamos que aquele que planeja ou efetivamente tenta o suicídio passa, na maioria das vezes, por situações de sofrimento intensas que seriam enquadradas facilmente em alguma das classificações de transtornos mentais. O problema, segundo o próprio Maris (2002), é que o valor preditivo desses diagnósticos e de outras escalas psiquiátricas é muito baixo, algo entre 2 e 8% em um estudo realizado com 4500 pacientes psiquiátricos graves, internados, 207 com 30% de falsos positivos e 44% de falsos negativos. A probabilidade de antecipar uma tentativa séria de suicídio na APS é ainda menor do que o encontrado nesse estudo. Pouco se sabe sobre as motivações de pessoas ou de grupos para terminar com a própria vida e não parece haver um denominador comum para uma questão que mescla aspectos morais, religiosos, familiares e psicológicos imbricados. O número de suicídios pode variar muito entre os países, mas tem sido mais alto no leste europeu (com taxas de 47 e 13.1 por 100mil, para homens e mulheres respectivamente na Hungria), seguidos pelos países da escandinávia (34.6 por 100mil entre os finlandeses) e mais baixo na américa do sul, com taxas entre 6 e 10 por 100 mil entre os homens. A análise dos dados sobre suicídio nos diferentes países é desafiante, há algumas informações que parecem pedir generalizações, mas é preciso cautela. Em praticamente todos os países são os homens que morrem mais por suicídio, em média 3 vezes mais do que as mulheres. A exceção nesse quadro é a China comunista, o que poderia ser atribuído ao papel diminuído da mulher na sociedade, a mesma explicação já é utilizada para o infanticídio de bebês femininos em um país com forte controle de natalidade. Sabe-se que, apesar da mortalidade por suicídio ser maior entre os homens, são as mulheres que tentam se matar mais frequentemente do que os homens, mas com menor eficácia (ou sem a mesma motivação ou decisão). Atrelar o suicídio como desfecho da depressão já impõe muitas dificuldades desde o início, se a prevalência do diagnóstico de depressão entre mulheres é maior do que entre os homens, por exemplo, e são esses os que mais se matam. A diferença na taxa de suicídio nos diferentes países provoca até mesmo a reflexão se o próprio sofrimento decorrente da miséria, da injustiça social, das guerras pode ser relacionado com um maior número de suicídios. Os países mais pobres ou em desenvolvimento, como Zimbabue e os da América do Sul têm taxas menores de suicídios do que os do Leste Europeu, ex-comunistas, e os países ricos da Europa Ocidental, especialmente os escandinavos. Algumas pesquisas sobre suicídio jogam sobre os profissionais da APS a responsabilidade para diagnosticar as pessoas deprimidas, perguntar a elas sobre intento ou pensamentos e planos suicidas. Um exemplo é o modelo que procura entender o comportamento ou a carreira do suicida a partir de múltiplos fatores para que possa haver uma prevenção primária, ou seja, evitar o suicídio antes de um primeiro intento. De acordo com MARIS (2002), os fatores que podem ajudar a 208 identificar um intento suicida antes da primeira tentativa, envolvem 4 aspectos principais: 1. o diagnóstico psiquiátrico, como história de depressão ou esquizofrenia; 2. aspectos biológicos, genéticos, neuroquímicos e história familiar; 3. personalidade e psicologia; 4. sociologia, economia e cultura que define em itens como isolamento, processo de separação, problemas no trabalho. Nesse esquema, portanto, há uma tentativa de englobar uma série de fatores que poderiam estar relacionados com o suicídio e que estão separadas em múltiplos fatores, como o diagnóstico psiquiátrico, as características genéticas e biológicas, a personalidade e aspectos culturais e sociológicos. Interessante perceber que todos esses fatores, mesmo os sociais, jogam seu peso sobre o indivíduo e caberá ao médico identificar essas pessoas com maior chance de atentar contra a própria vida. O que se percebe da leitura dos textos de clínica ou psiquiatria sobre esse tema é que o suicídio surge como o desfecho mortal de boa parte dos diagnósticos psiquiátricos, especialmente esquizofrenia, transtorno bipolar e a depressão. Essa associação aumenta a importância desses diagnósticos porque agora se trata de prevenir um risco de morte, ou seja, é preciso intervir nos menores sintomas antes de que a patologia se cronifique. Esse risco futuro, o do suicídio, acaba por garantir e legitimar os diagnósticos de depressão (assim como de outros diagnósticos psiquiátricos) e autorizar a intervenção sobre as mais variadas alterações de comportamento cotidiano. 6.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A exemplo dos livros-texto de medicina e de psiquiatria usamos a ordem tradicional de apresentação dos temas clínicos para fazer uma análise crítica do modo como se tem construído os diagnósticos psiquiátricos, em especial o de depressão. A partir da década de 1980, com o DSM-III, há uma guinada na classificação dos sofrimentos. A característica principal é a de padronizar em todo mundo as entidades nosológicas a partir de um grupo de sintomas e do tempo de apresentação. O contexto de sofrimento, o modo como aquela pessoa em especial lida com as situações adversas, ou mesmo, como define o que é um problema, quais são suas dificuldades, perde valor com essas mudanças. A psiquiatria, desse modo, aproxima-se muito da biomedicina. Com a aceitação e expansão desses novos diagnósticos psiquiátricos como verdadeiras entidades nosológicas abre-se espaço para que milhares de pesquisas confirmem essa verdade ao dar-lhe 209 prevalências, fatores de risco, subclassificações diagnósticos, impactos econômicos, relação com desfechos como o suicídio, etc... Para os MFC lidar com esses constructos é um desafio. As pessoas trazem sofrimentos bastante complexos, os profissionais da APS costumam conhecer suas condições de vida, mas chegam muitas vezes oferecendo o diagnóstico que viram na TV e pedindo um tratamento. A maioria dos textos que o MFC lê passa a mesma ideia e lhe coloca um peso enorme, de que não pode deixar de diagnosticar, de tratar e de evitar mortes por suicídio. Ainda assim, ao acompanhar a prática de muitos MFC, no Brasil e em outros países, o que se vê é que na Atenção Primária os protocolos e as guias de tratamento, que traduzem um mundo organizado em que todo sofrimento pode ser facilmente compartimentalizado, chocam-se com a vida real, cotidiana, que aparece com mais força e despida para esses profissionais. Será preciso um esforço muito grande de distanciamento do MFC em um exercício para oferecer rótulos estéreis a experiências de sofrimento tão complexas. Mas de tal modo as entidades nosológicas psiquiátricas popularizam-se e se naturalizam que passam, cada vez mais, a fazer parte do painel de doenças concretas com que os médicos lidam. E assim como a tristeza pode esconder muitas situações de sofrimento, de repente pode se achar que são as muitas situações de sofrimento que levam ou adornam a mesma depressão. 210 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao chegar a esse ponto, é provável que o leitor tenha percebido que ao mesmo tempo em que os capítulos (do 1º. ao 6º.) oferecem diferentes perspectivas sobre a temática geral, a (des)medicalização do sofrimento na APS, eles também podem ser lidos à parte. Cada um deles traz uma questão particular a ser trabalhada, lança mão ou parte de uma combinação de dados específicos e, por fim, tece suas próprias considerações finais. À guisa de conclusão, portanto, caberia apenas comentar algumas questões que ultrapassam os tênues limites que os capítulos se impuseram; e também destacar as principais constatações ou sínteses que cada um dos textos propiciou. As duas perguntas que foram apontadas na introdução como chaves para a pequisa podem servir para a retomada de uma discussão mais ampla, eram elas: 1. como as pessoas manifestam e descrevem o sofrimento que as levam ao C.S e ao MFC? e; 2. há uma maneira particular (ou distinta do modo biomédico) da medicina de família e comunidade (MFC) lidar com essa demanda? Em relação à primeira pergunta, que pede uma resposta mais descritiva, as narrativas dos pacientes ofereceram situações variadas que permitiram alguma generalização e análise. Ao contrário das pesquisas que procuram definir a quantidade de casos (prevalência) dos chamados transtornos mentais ou dos problemas de saúde mental em relação ao total de atendimentos na APS, a observação de campo (e a própria prática como MFC) aponta para os limites dessa tarefa. Qualquer recorte utilizado para separar as situações de sofrimento que chegam aos C.S. cria abstrações que precisam ser entendidas como tais. De um certo modo pode-se dizer que o sofrimento está presente em praticamente todos os encontros entre MFC e pacientes, por vários fatores, aqueles relacionados à demanda do consultante, ao encontro propriamente dito, ao MFC, aos colegas de trabalho, à organização dos serviços de saúde e à questões sociais mais amplas. Há, claro, momentos de extrema leveza e encontros bastante aprazíveis, como se pode descrever em alguma parte, mas a inclinação geral desse espaço de prática é a da tensão, do estresse, da preocupação, da ansiedade, do malestar, do medo, etc.. Não deve ser diferente em outros serviços de saúde, como um centro oncológico, nas emergências, em uma UTI ou em uma enfermaria qualquer, por mais que se inovem em práticas de humanização. Mas há pelo menos duas situações relacionadas a essa onipresença do 211 sofrimento na APS que convém analisar. Uma é a de como as instituições de saúde e a academia voltam-se para esse caldeirão e quais as suas consequências teorico-práticas. E outra, mais voltada para os usuários desse sistema, tem a ver com como entendem e interpretam a finalidade desses serviços em relação às suas angústias. Sobre o papel das instituições de saúde há que se separar pelo menos três grandes grupos que têm se debruçado sobre o tema do sofrimento na APS: 1. aqueles ligados ao que denominamos como Nova Psiquiatria (mas que poderia incluir além da maioria dos psiquiatras, médicos de diversas especialidades, parte dos profissionais de outras áreas da saúde como psicólogos, e a indústria farmacêutica); 2. os reformadores sociais, profissionais de diversas áreas, ligados a movimentos sociais e políticos que resultaram na reforma psiquiátrica e na constituição de sistemas nacionais de saúde; 3. e os próprios profissionais da APS e suas associações organizacionais. Claro que, ao fazer essa generalização, impõem-se barreiras que em muitas ocasiões não existem, as pessoas geralmente transitam entre esses espaços. De todo modo, muitos documentos, artigos científicos, textos de clínica foram utilizados para demonstrar que há um entendimento e uma apropriação diferentes dessa carga de sofrimento da APS de acordo com cada uma dessas instituições. Se para o que chamamos de Nova Psiquiatria, há uma grande preocupação com a definição correta dos diagnósticos psiquiátricos e com a utilização dos tratamentos baseados em evidências; para os profissionais que atuam na APS, as características do seu espaço de prática podem torná-los reticentes em relação à essas prescrições. Os reformadores, que soem ocupar espaços importantes na gestão da saúde e na academia, baseiam-se em textos que costumam rechaçar as classificações diagnósticas da psiquiatria, por outro lado parecem ter muita dificuldade para dialogar com os profissionais da APS sobre os desafios cotidianos desses em sua prática. O efeito é múltiplo e caótico. Há políticas que diminuem o número de leitos de internação psiquiátrica em sistemas públicos, que transferem a responsabilidade do cuidado àqueles que sofrem aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e aos C.S. e que estimulam o encontro dos profissionais da APS com os de saúde mental, e a mensagem de fundo dessas medidas ecoa dizeres anti-medicalização. Ao mesmo tempo, a maioria dos psiquiatras que compõem essa extensa rede traz da sua formação um olhar que pinta de explicações biomédicas as complexas narrativas e interações trazidas pelos pacientes. Vimos também que apenas uns 10% dos médicos que atuam nas equipes de saúde da família no Brasil possuem residência ou titulação em MFC, o 212 que poderia em tese significar um olhar diferente para essa temática. De todo modo, o espaço de prática daqueles que atuam na APS parece exercer algum efeito mesmo sobre os que não se identificam como MFC, já que de acordo com os critérios estabelecidos pela Nova Psiquiatria, aproximadamente 50% dos principais diagnósticos psiquiátricos não seriam reconhecidos e tratados por esse profissionais. Mesmo entre os MFC parece haver uma enorme divisão no que se refere ao tema da abordagem ao sofrimento, pois haverá uma extensa publicação muito crítica da medicalização e das classificações diagnósticas, bem como protocolos e tratados clínicos com indicações simplistas e reducionistas. Para aqueles que usam o sistema público e a APS os sinais também devem parecer múltiplos e caóticos. Há uma grande heterogeneidade em relação ao acesso das pessoas aos serviços de saúde no Brasil. Supostamente, as equipes de saúde da família deveriam ser a principal referência, mas a falta de fixação desses profissionais e a ampliação dos serviços de urgência dificultam a afirmação da APS como porta de entrada do sistema. Ainda assim, nos 4 C.S. que acompanhamos havia uma relativa facilidade no acesso e muitos dos encontros a que assistimos foram com pessoas que naquele mesmo dia haviam solicitado a consulta. O fácil acesso das pessoas à APS oportuniza uma dupla possibilidade com efeitos contrários. Se por um lado, a pessoa que leva algum desconforto ou sofrimento para essa consulta pode ter um espaço adequado de escuta, de contextualização e de ressignificação do seu mal-estar (e, eventualmente, o uso criterioso de algum sintomático); por outro, pode receber um diagnóstico e um tratamento medicamentoso que não só não modificariam sua situação, como trariam prejuízos pela rotulação que proporciona e pelos efeitos colaterais da medicação. A situação, no entanto, pode ser ainda mais complexa. As pessoas já não chegam aos C.S. carregando apenas seus misteriosos sintomas e algumas explicações causais, elas vêm muitas vezes com um diagnóstico biomédico. A comunicação entre as pessoas e as informações médicas não mais ocorre somente nos consultórios e como nos meios de comunicação brasileiros a indústria médica é muito poderosa, a pressão pelas medidas veiculadas na TV ou na Internet pode ser muito forte. Especialmente se levarmos em conta que no Brasil, as classes médias e altas utilizam majoritariamento o sistema privado de saúde, que oferece uma atenção à saúde sem APS, ou seja, com acesso direto à subespecialistas, como os psiquiatras; com todos os efeitos 213 perversos desse modelo já descritos por muitos estudiosos, como Barbara Starfield. O que pretendo destacar é que esse abismo que há, no Brasil, entre os desejos de consumo e as práticas das classes mais altas - que parecem optar por um Estado não-solidário ao utilizar a educação privada, o transporte individual e ao receber a restituição em impostos com gastos privados em saúde -, e as “opções que restam” às classes mais baixas tem um papel enorme na avaliação e no funcionamento dos serviços públicos. Simplificando, os desejos das classes médias e altas, que ocupam majoritariamente os meios de comunicação e a vida cotidiana, influenciam os desejos das classes mais baixas. Como as classes mais altas são muito mais medicalizadas que as mais baixas, por utilizarem um sistema de saúde baseado em um especialista para cada órgão, essa pressão (por exames, especialistas, diagnósticos e tratamentos) é levada para esses encontros no sistema público. Situação que é menos comum em países europeus em que entre 80 e 90% da população utilizam regularmente o mesmo sistema de saúde, fortemente regulado pela APS. Saindo um pouco da influência dos serviços de saúde e de instituições de saúde na demanda que chega aos C.S., pode-se dizer que as situações de sofrimento são bastante variadas em relação ao seu contexto e forma de manifestação. Observamos muitas situações agudas, em que as pessoas rapidamente sinalizavam um provável gatilho, como o luto, a separação, questões relacionadas ao trabalho, preocupações com filho(a), etc.. E outras bem mais complexas, antigas, em que pareciam se destacar “o lugar (familiar, laboral, social, etc) em que estou” e o “como eu lido com isso”. O que procuramos frisar no capítulo sobre a demanda, no entanto, é que a APS por sua proximidade com a vida cotidiana das pessoas que atende, é um espaço muito usado para lamentos. Dizíamos que por se tratar de um serviço de saúde e pelo fato da pessoa estar diante de um médico, as narrativas chegam a tocar no tema das doenças ou trazer alguma preocupação com elas (“será que é uma depressão?”), mas como se fora apenas um bilhete de entrada, porque se encontram espaço livre logo voltam a transitar seu próprio caminho de significados. Claro que os riscos são enormes, imaginar milhares de pessoas frequentando regularmente serviços de saúde vizinhos à sua casa para lamentos do dia-a-dia pode terminar (como de fato ocorre) em uma epidemia de prescrição de antidepressivos, ansiolíticos, etc.. Daí a importância de se entender o papel (ou a cultura) da APS e da MFC, ao que nos dedicamos no capítulo 3. Destacamos que a 214 amostra de MFC que escolhemos não poderia representar o universo de médicos que trabalham na Estratégia em Saúde da Família (ESF), mas que provavelmente representasse bem o de MFC com residência ou título nessa área. E o que se percebe é uma distância relativa da MFC com a biomedicina tanto por parte de cada MFC que acompanhamos e entrevistamos, quanto por parte dos principais textos dos cânones da área. A principal diferença parece mesmo ser o espaço de prática, se a biomedicina se constrói em torno de um eixo central em que estão as doenças e a partir daí brotam os especialistas em doenças por órgãos ou faixa etária, a MFC parte de outro ponto, que para McWhinney é o da relação com o paciente, Não à toa, como discutimos no capítulo 4, o tema da relação médico-paciente ganha um enorme espaço na MFC. As habilidades de comunicação, a empatia, a confiança, a vigilância das próprias emoções, a transferência e a contra-transferência, entre outros, são tópicos que passam a ocupar a maleta do MFC como uma de suas principais ferramentas, o que fica mais evidente na asserção de Balint ao dizer que “a droga mais frequentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico” (2005, p. 3). Nos encontros que acompanhamos essa postura parece ficar clara, o que os torna bastante dinâmicos e, muitas vezes, imprevisíveis. Diferentemente do encontro entre o paciente e um (sub)especialista, que costuma ser mais simples, afinal as questões giram em torno da decodificação dos sinais e sintomas em um diagnóstico, da identificação ou não daquele problema com sua área de atuação e das possibilidades ou não de tratamento, o espectro de possibilidades de um encontro com o MFC parecer ser maior. Utilizamos as metáforas, da luta à dança e do sagrado ao profano, mas é provável que outras situações ainda pudessem ser descritas. A abertura ou a amplitude do encontro MFC-paciente é o que se destaca, o fato de não ter a priori nenhuma delimitação das situações que podem chegar até o seu consultório. Essa relação mais próxima, aberta, contínua no tempo pode, em relação ao tema do sofrimento, reverberar de muitos modos. Pode facilitar a medicalização e a medicamentalização de lamentos. Pode propiciar a desmedicalização ou o desmanche de rótulos diagnósticos diante da complexidade da vida. Pode permitir uma relação MFC-paciente que passe longe, ou coloque entre parênteses, o tema da doença mesmo ao tratar de sofrimentos profundos. Pode relativizar ou diminuir o valor e o significado dos diagnósticos médicos e dos protocolos terapêuticos, mesmo quando esses se façam presentes. Apesar da intensidade do espaço de prática na configuração da identidade do MFC e dos demais profissionais da APS, vimos 215 (especialmente nos capítulos 5 e 6) que essa demanda que chega aos C.S. com seus lamentos e sofrimentos não está apenas sob sua jurisdição. Ela é disputada por saberes e poderes que estão além daqueles que trabalham nesse lugar. Desde a Organização Mundial de Saúde (OMS) que, reiteradas vezes, alerta para a magnitude dos problemas de saúde mental na APS, que precisam ser melhor diagnosticados e tratados, no que é seguida por vários autores da Nova Psiquiatria, até os próprios reformadores que mesmo com uma visão teoricamente desmedicalizante acabam valorizando e dividindo essa demanda que chega aos C.S. ao chamá-las de Saúde Mental. Como vimos, para os MFC, o que poderia ser estendido a todos os profissionais que trabalham na APS, é difícil dividir as pessoas que atende em saúde mental, saúde da mulher, saúde da criança, hipertensos, diabéticos, gestantes ou tuberculosos. De todo modo, essa tensão (para dividir e fracionar as pessoas que chegam à APS) é permanente e muitos C.S. acabam trabalhando de um modo mais fragmentado. Uma outra pergunta, feita na introdução, e que vagou por toda a tese aqui e ali foi a da relação entre a MFC e o que se tem chamado pósmodernidade. Questionávamos: a medicina de família e comunidade é uma área de atuação pós-moderna? Alguns sinais parecem dizer que sim, denotam algumas coincidências, principalmente se entendemos a pós-modernidade no sentido proposto por Bauman, de uma modernidade avançada que olha para trás e faz uma auto-crítica. Diversos aspectos que ajudaram a construir a APS e a MFC referem-se à correções de efeitos colaterais da expansão da medicina moderna, como a da superespecialização e fragmentação do conhecimento, do uso abusivo da tecnologia dura e da desvalorização da relação médico-paciente. Um outro aspecto é o da polissemia observada nos encontros que acompanhamos. A já ressaltada proximidade e o acompanhamento da vida cotidiana de pessoas de origens, idades, classes sociais, gêneros e, especialmente, visões de mundo muito diferentes faz com que esses profissionais abram-se mais para explicações menos sistemáticas, mais anárquicas, mais relativizadas. Eu mesmo, como um MFC que há 10 anos atua em C.S. e há mais de 4 anos no mesmo bairro, não poderia deixar de relatar como essa experiência prática do trabalho influencia (para não dizer molda) o modo de ver as coisas. Ao final, me parece que a própria tese (e não poderia ser diferente) bebe dessa fonte. Ao passear por todo o texto agora percebo que ele não é muito diferente de uma manhã qualquer em um consultório de um MFC. Há momentos em que o problema que se nos coloca é simples e a resposta é direta; outros em que uma explicação 216 plausível parece próxima, mas ao modo das caixinhas russas, ela se esconde sempre em um novo problema; e, ainda, aqueles enigmas insondáveis em que o único prazer ou sentido que resta é narrar e narrar. 217 REFERÊNCIAS AAFP. Family Medicine, Scope and Philosophical Statement. Disponível em: http://www.aafp.org/online/en/home/policy/policies/f/scopephil.html. Acesso em maio de 2009. AMARANTE, Paulo. 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