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Contrariando o que seria esperado da moderna era das mídias e da informação, a corrente pandemia de coronavírus produziu enorme quantidade de desinformação, de propagação do uso de fármacos ‘milagrosos’ (o tal tratamento precoce com Ivermectina, por exemplo), de culpabilização do Outro por conta da doença em posturas acentuadamente xenofóbicas, de gestões desastrosas da crise de saúde. O cenário atual parece replicar o passado. Em 1665, a população londrina, assolada por uma epidemia de peste bubônica, viu-se cercada por anúncios de poções milagrosas, promessas de salvação divina, empreitadas culpabilizadoras acerca do território ou da nação responsável por tamanho mal. Nesta pesquisa de IC, por meio da avaliação do relato epidêmico de uma obra literária, buscou-se delimitar os comportamentos e os incidentes recorrentes frente a um quadro de saúde pública. O objeto de análise para este estudo foi o romance de Daniel Defoe, ‘Um diário do Ano da Peste’, cujo trabalho, além de examinar criticamente a epidemia de 1665 a partir de uma perspectiva documental, expôs condições de segregação social, isolamento e hostilidade contra os infectados, as crenças astrológicas acerca da epidemia, a visão da doença como praga divina, a propagação de curas mágicas ou milagrosas, o aprofundamento da pobreza e da divisão de classes, o extermínio de animais domésticos, a imposição de uma violenta quarentena e da vigilância hostil aos corpos doentes, o drama dos enterros sem cerimônia e na vala comum, a ineficiência do governo na gestão da epidemia. A partir de uma pesquisa orientada de natureza bibliográfica, certas chaves de leitura foram convocadas para a delimitação do domínio simbólico implicado à doença, discorrendo-se temas como paisagem do medo, doença e metáfora, biopolítica, vulnerabilidade humana, abjeção, monstruosidade, contaminação e necropolítica. Na análise narrativa do trabalho ficcional de Defoe, a observação do aspecto psicológico contraditório da personagem principal permitiu-nos constatar o confronto entre sua consciência de classe (um comerciante de posses, embora não da nobreza) e as influências dos discursos religiosos e de poder sobre sua mentalidade, algo que denota a repercussão das metáforas das doenças sobre o imaginário epidemiológico. Ainda que a higienização e o alcance do tratamento médico no século XXI seja distinto do século XVII, o que por si só produz notórias diferenças entre o momento atual e o contexto descrito por Defoe, pôde-se perceber que há a persistência de certas posturas em situações de crise de saúde, tal como a busca pelo inimigo viral originário, frequentemente na forma de um bode expiatório, a postura negacionista e o uso de farmacologia fantasiosa, não aprovada ou confirmada pela ciência. Como foi possível concluir, a paisagem do medo e o emprego metafórico das doenças nos discursos cotidianos são recorrentes porque estes expõem a fragilidade humana perante a natureza e as situações de caos/desordem. E diante da morte coletiva, os seres humanos buscam frequentemente nos astros, em deus, nos milagres e na culpabilização do outro as ferramentas principais para tentar sobreviver. |
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